Fevereiro de 2021, o Brasil e o mundo, enfrentavam a pandemia de COVID 19 e em mais um dia de trabalho, no Serviço de Cuidados Paliativos do Hospital de Clínicas da Unicamp, durante uma visita aos pacientes internados, conhecemos o senhor Rafael, 37 anos, casado, pai de 2 filhos, procedente da cidade de Americana e natural da Bolívia. Foi internado em nosso hospital com diagnóstico de carcinoma hepatocelular avançado, fora de possibilidade terapêutica de cura.
Diariamente durante nossas visitas, o único pedido de Rafael para nossa equipe era “um tratamento curativo”, pois o mesmo tinha muitas necessidades, bem como uma família jovem que também precisava de cuidados. Mas infelizmente, a cura que Rafael tanto desejava e que gostaríamos de oferecer era impossível devido a história natural da doença.
Lembro-me como se fosse hoje, era uma terça-feira a tarde, retornei ao quarto de Rafael, o mesmo bastante cabisbaixo e com olhar distante, não queria conversar. Fiquei parada ali um tempo e antes de sair, ofereci um abraço. Nessa hora, ele olhou para mim e sorriu, abriu os braços e começou a chorar. Ficamos abraçados por uns minutos.
Após esse encontro, Rafael me contou seus medos e também suas dores. Eram muitas, que percorriam as dimensões físicas até as questões sociais e familiares. Nos próximos dias, quis saber um pouco mais sobre sua família e também sua casa, que era motivo de bastante preocupação para ele.
Conheci sua esposa e seus filhos durante uma visita que organizei na enfermaria que ele estava internado. Pedi autorização para fazermos algumas fotos e registros da família. Foi nessa visita, que descobri que seu filho mais novo estava completando um aninho. Corri até o restaurante do hospital a procura de um bolo, mas, a única sobremesa que remetia ao doce foi um brownie de chocolate. Entrei no quarto cantando “parabéns pra você...” Ele sorriu e saboreou pausadamente o primeiro e - no caso do Rafael - o último, pedaço de bolo comemorativo pelo um aninho de vida do filho mais novo.
A família de Rafael era extremamente pobre, arrecadamos alimentos, roupas e fraldas descartáveis para a criança. Fui até Americana conhecer sua casa e pude verificar toda a preocupação o qual Rafael me contou ao longo das nossas várias conversas no hospital.
A casa que ele, a esposa e os filhos moravam não tinha telhado, então em épocas de chuva, a água escorria pelos cômodos e também pela cama que eles dormiam. O chão era de terra batida, tinha emendas de fios elétricos que cortavam os cômodos e era necessário muito cuidado para não tomar um choque. As roupas ficavam armazenadas em caixas de papelão e os alimentos em prateleiras de madeira.
Começamos então uma campanha “boca a boca” pedindo dinheiro ou material de construção. Nesse entremeio, Rafael já com sintomas físicos da doença controlados, recebeu alta hospitalar. Conseguimos uma casa de fundos, o qual alugamos para ele e sua família permanecerem enquanto estivéssemos organizando a reforma da casa. E assim, conseguimos parceiros incríveis que se disponibilizaram a ajudar com mão de obra, entre arquitetos, engenheiros, pedreiros e eletricistas, e também, pessoas que colaboravam com algum valor em dinheiro, transporte para consultas médicas, remédios para o controle dos sintomas e pagamento das contas domésticas.
Sabíamos que Rafael corria contra o tempo, sua doença já estava bastante avançada e seu tempo de vida se resumia a meses e semanas. Organizamos algumas conferências via remota, para que Rafael pudesse conversar e se despedir dos familiares que ficaram na Bolívia. A igreja o qual ele e sua família participavam também se tornaram nossos parceiros. Compartilhávamos notícias boas e também
ruins. E os dias iam passando...
Organizamos novas parcerias para arrecadar fundos e finalizar as obras que nos propusemos a melhorar na casa de Rafael. Os amigos organizaram almoços e piqueniques para a família e, muitas pessoas se dedicaram a trazer mais qualidade de vida para os dias de Rafael.
Ao final de julho, cinco meses após o diagnóstico da doença, terminamos as obras de melhorias na casa. Já tínhamos um telhado, pisos no chão e rede elétrica com segurança em todos os cômodos da casa.
Adaptamos um carro para mudança de retorno da família, era um sábado cedo, nos dirigimos até a casa para ajudar na limpeza pesada pós-reforma. E logo após as 14h00, Rafael chegou na casa nova. Sem palavras, ele apenas assentiu com a cabeça, em sinal de gratidão. Ficou um tempo sentado na cadeira da cozinha e depois foi deitar-se.
Foi a última vez que vimos Rafael. Ele veio a falecer exatamente dez dias após a mudança. Acho que seu corpo cansado pela doença, resolveu descansar depois de perceber que sua família estaria assentada em uma casa que já não chovia mais.
Enfª Roberta Antoneli - Cuidados Paliativos