Durante este período de pandemia a importância dos profissionais da saúde tornou-se excepcionalmente maior. Desse modo, houve uma enorme demanda do trabalho desses especialistas, devido o crescente número de infectados — pelo novo coronavírus — e, assim uma significativa carência quantitativa desses trabalhadores. Portanto, não foi possível superar biologicamente essa crise sanitária somente com as equipes médicas locais em alguns territórios, tendo como exemplo a Itália. Por essa razão, diversos países voltaram-se para a importação de médicos cubanos.
Cuba já era reconhecida pela sua “diplomacia médica” ao enviar profissionais da saúde para trabalhar em missões ao redor do mundo — majoritariamente em situações emergenciais — e receber, em troca, bilhões de dólares a partir dos anos 2000. Desde a década de 60, o trabalho médico cubano no exterior é usado pelo governo do país como um símbolo de solidariedade, e é chamado em Havana de “missões internacionalistas”. O ex-ministro da economia, José Luis Rodríguez, ainda afirmou em 2017 que essa política rendeu US$11,5 bilhões por ano, em média, entre 2011 e 2015 (BBC, 2019) [1]. Tendo esses aspectos em vista, a imagem transmitida é de que o país está frequentemente disposto a prestar auxílio a quem necessita, ao mesmo tempo em que recebe, de maneira justa, recompensas pelos serviços prestados.
No entanto, essa interpretação é criticada e depreciada por muitos, como o atual presidente do Brasil, Jair Bolsonaro. A maioria dos argumentos contrários defendidos usam como base a forma como as equipes médicas são tratadas, alguns ainda fazem analogias à escravidão moderna, uma vez que as autoridades cubanas estabelecem regras rígidas para impedir seus cidadãos de abandonarem o regime quando estiverem no exterior. Assim sendo, de acordo com um relatório do Cuban Prisoners Defenders — ONG com sede na Espanha que advoga pelos direitos humanos em Cuba — , baseando-se nos depoimentos inéditos e testemunhos públicos de vários médicos cubanos que atuaram em missões internacionais, é possível levantar diversos transtornos enfrentados por eles, como o confiscamento de passaportes por autoridades cubanas ao chegar nos destinos, o constante monitoramento por agentes de segurança de Cuba durante a missão e pressão sentida para revelar informações sobre os colegas. Além disso, o salário que esses médicos recebem dos países só correspondem cerca de 10% a 25% do original dado, o resto é retido pelo governo cubano, segundo a Prisoners Defenders (BBC, 2019) [2].
Os médicos formados dessa ilha caribenha precisam cumprir serviço social obrigatório. Essa conjuntura se deve ao fato de, a partir da Revolução Cubana, o governo tenta ampliar e descentralizar a atuação médica no país, que antes ficava focada mais em Havana, assim a medicina comunitária ganhou força e orientou o sistema de saúde, mas articulada à atenção primária ( Navarro, 2009) [3]. Portanto, foi criada uma cultura de se ver a medicina como realização de vida e altruísmo professional, incorporada num projeto humanista da saúde (Terra, 2016, p. 2.833) [4]. Tendo em vista a atuação dos médicos cubanos no Programa Mais Médicos, criado em 2013 no Brasil, pôde-se constatar que esses profissionais possuem uma vocação internacionalista e que a solidariedade com outros países é constitutiva de sua formação (Silva, 2017) [5].
Em 2019, antes da OMS declarar a pandemia, havia cerca de 30 mil médicos em 67 países. E vale ressaltar que um dos principais importadores dos serviços médicos é a Venezuela, a qual já pagou por tais serviços com petróleo (BBC, 2019) [6]. Logo, Cuba obteve US$ 6,3 bilhões em 2018 através desse programa (Estado de Minas, 2020) [7]. Além do mais, o país é possuidor do ministério de saúde mais antigo do mundo, datando 1909, e um dos princípios que fundamentam esse sistema e o qual distingue-se de outros ministérios de saúde do mundo é o de “ a solidariedade internacional será prática dos serviços de saúde” (MARIMÓN TORRES; MARTÍNEZ CRUZ, 2008) [8].
À vista do evidenciado, torna-se essencial salientar que as missões médicas cubanas internacionais representam uma significativa fonte de renda para o país, apesar dela estar sendo prejudicada, desde 2018, pelas renúncias de contratos de envio desses profissionais a países como o Brasil e a Bolívia. Contudo, as missões tiveram suas relevâncias ampliadas durante esse período pandêmico, o que levou a maior circulação dessas pessoas pelo mundo. Consequentemente, os integrantes das equipes de saúdes que atuaram em países bastantes afetados pelo vírus, foram tidos como heróis pelo presidente cubano Miguel Díaz-Canel e utilizados para fazer propaganda do regime socialista, "Vocês representam a vitória da vida sobre a morte, da solidariedade sobre o egoísmo, do ideal socialista sobre o mercado" disse o governante (AFP, 2020) [9]. Em contrapartida, há aqueles que criticam fortemente essa postura, como por exemplo os Estados Unidos — os quais intensificaram o bloqueio econômico contra a ilha neste período. E existe também, a forma opressora que esses médicos são tratados pelo seu próprio governo. Todavia, nesta fase crítica da humanidade, poderia ser de benefício global o apoio a essas missões, visto que várias vidas foram salvas devido essa ajuda cubana.
[1] “ O mundo secreto dos médicos que Cuba exporta” - BBC News Brasil.
[2] “ O mundo secreto dos médicos que Cuba exporta” - BBC News Brasil. Idem.
[3] José C. Canton Navarro (1925-2008) e Arnaldo Silva Leon (1938) autores do livro “Historia de Cuba Tomo 3 1959-1999: Liberación Nacional y Socialismo.” Janeiro de 2009. Retirado de: “ Subjetivação dos médicos cubanos: Diferenciais do internacionalismo de Cuba no Programa Mais Médicos” de Luciano Gomes.
[4] Lilian Soares Vidal Terra, pesquisadora da Unicamp que escreveu “Análise da experiência de médicos cubanos numa metrópole brasileira segundo o Método Paideia.” Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro. Retirado de: “ Subjetivação dos médicos cubanos: Diferenciais do internacionalismo de Cuba no Programa Mais Médicos” de Luciano Gomes.
[5] Hilton Pereira da Silva, médico e biólogo formado pela Universidade Federal do Pará (1990, 1991), Mestre em Antropologia pela Penn State University, EUA (1993), Mestre em Saúde Pública (1998) e Ph.D. em Antropologia – Antropologia Biológica (2001), pela Ohio State University, EUA. Escreveu “O Projeto Mais Médicos para o Brasil: desafios e contribuições à atenção básica na visão dos médicos cooperados” 2017. Retirado de: “ Subjetivação dos médicos cubanos: Diferenciais do internacionalismo de Cuba no Programa Mais Médicos” de Luciano Gomes.
[6] “ O mundo secreto dos médicos que Cuba exporta” - BBC News Brasil. Idem.
[7] “ Luta contra coronavírus revitaliza missões médicas cubanas” - AFP Estados de Minas / Internacional.
[8] Nestor Marimón Torres e Evelyn Martínez Cruz (2008). Evolución de la Colaboración Médica Cubana en 100 años del Ministerio de la Salud Pública. Habana: Revista Cubana de Salud Pública, Vol. 36, N° 3. Retirado de: “ Subjetivação dos médicos cubanos: Diferenciais do internacionalismo de Cuba no Programa Mais Médicos” de Luciano Gomes.
[9] “ Cuba recebe como heróis médicos que retornaram de missão na Itália” - AFP Uol notícias.
Giovana Moreira Rodrigues, estudante caloura do curso de Relações Internacionais da UFG do ano de 2020. Tem 18 anos e possui bastante interesse na área socioeconômica e política da Ásia, mais precisamente dos países do Extremo Oriente. Além disso, foi a pessoa responsável pelos conteúdos sobre a Cuba.