Festas Móveis

Apresentado no Seminário Nacional de História da Matemática 2015 (Mértola)

Carlos Pereira dos Santos, Centro de Análise Funcional, Estruturas Lineares e Aplicações

Carlota Simões, Universidade de Coimbra

De acordo com o Novo Testamento, o Domingo de Páscoa celebra a ressurreição de Jesus Cristo, ocorrida três dias depois da sua crucificação. Esta celebração constitui a mais antiga e importante festa cristã e a sua data está relacionada com alguns outros importantes eventos. Entre eles estão a Sexta-Feira Santa, antecedendo o domingo de Páscoa e assinalando a crucificação de Cristo e a Quarta-Feira de Cinzas, antecedendo o domingo de Páscoa em 40 dias (não contando domingos) e assinalando a fragilidade da vida humana.

Figura 1: Ressurreição, Piero de la Francesca, 1460.

Sendo assim, por motivos óbvios, a determinação da data da Páscoa foi sempre um assunto muito importante. Um exemplo paradigmático desta preocupação pode ser observado na obra Regra geral para aprender a tirar as festas mudaveis do ano [1] do contista português do séc. XVI, Gonçalo Fernandes Trancoso (1520-1596). Embora mestre de humanidades (autor do clássico Contos e Histórias de Proveito e Exemplo, 1575), a preocupação com a «arte» de determinar a data da Páscoa não o deixou indiferente, escrevendo um documento dedicado ao assunto (1565, publicado em 1570). Segundo Trancoso, tirar as datas das festas móveis pela mão trata-se de «arte antiga», passível de ser executada por crianças pequenas.

Mais tarde, Luciano Pereira da Silva (1864-1926), matemático e lente catedrático em Coimbra, fez uma rigorosa análise da obra de Trancoso [2]. Nas suas próprias palavras, o trabalho desse tipo encontrado no Livro de Marinharia [3] estava «incompletamente redigido e desacompanhado de figuras, necessitando por isso de maior explicação.».

Figura 2: Luciano Pereira da Silva (1864-1926).

Na modernidade somos invadidos por uma vasta gama de soluções tecnológicas. Temos computadores, relógios e calendários digitais, capazes de nos dar de forma imediata a resposta à questão da data pascal. No entanto, o assunto continua a ter importância histórica e cultural. Sendo assim, pretende o presente texto utilizar as tecnologias, não para responder instantaneamente à questão em causa, mas para melhor ilustrar a explicação de Luciano Pereira da Silva. Além disso, indicaremos a forma de usar as mãos para determinar a Páscoa nos nossos tempos, sob alçada do calendário de Gregório.

Primeiro Concílio de Niceia

Em 325 d.C., em Niceia (actualmente Íznik na Turquia), reuniu-se uma assembleia, representando toda a cristandade. Foram procurados alguns consensos, sendo um deles a fixação da data da Páscoa.

Figura 3: O Concílio de Niceia, Mary Yonge.

A esse respeito, fixaram-se as seguintes regras:

1) A lunação pascal calculada através do calendário juliano é a lunação cujo 14º dia (Lua cheia) cai no dia 21 de Março ou depois.

2) A Páscoa celebra-se no primeiro domingo posterior ao plenilúdio pascal (Lua cheia pascal). Se este cai num domingo, deverá celebrar-se a Páscoa no domingo seguinte.

NOTA: Para acertar no intervalo de tempo certo, o novilúnio (Lua nova) não pode ter lugar antes de dia 8 de Março nem depois de dia 5 de Abril.

Ao observar estas regras, facilmente se percebe que os factores determinantes são o estado da Lua e a indexação dos dias da semana ao ano em causa. Trancoso explica três conceitos fundamentais a serem tratados com as mãos, o Número Áureo, a Epacta e a Letra Dominical. Os dois primeiros relacionam-se com o primeiro factor e o terceiro relaciona-se com o segundo factor.

Número Áureo

Imagine o leitor que ocorriam as duas situações seguintes (não ocorrem):

Duração do Ano = 365,25 dias

Lunação (tempo decorrido entre duas luas novas consecutivas) = 29,53085106 dias

Se isto fosse verdade, uma simples conta permitiria ver que 19 anos corresponderiam exactamente a 235 lunações. Ou seja, a mesmíssima situação lunar no início do ano repetir-se-ia de 19 em 19 anos.

Acontece que a realidade é a seguinte:

Duração do Ano = 365,256363 dias

Lunação (tempo decorrido entre duas luas novas consecutivas) = 29,530589 dias

Mesmo assim, o ciclo de 19 anos é uma fantástica aproximação para a periodicidade com que se repetem situações lunares no início do ano. Este ciclo foi descoberto pelo astrónomo grego Meton em 432 a.C.. e é denominado Ciclo Metónico.

Devido a este facto, atribui-se um número de 1 a 19 a cada ano, correpondente à sua ordem no ciclo metónico. Devido à difícil problemática do ano zero, atribuiu-se o número 2 ao ano 1 d.C. Esse número de ordem chama-se Número Áureo. Eis os primeiros números áureos da era cristã.

O leitor com espirito aritmético imediatamente compreende que

Número Áureo (Ano) = Resto da divisão inteira de Ano +1 por 19 (se 0, considera-se 19).

As questões que se colocam em seguida são as seguintes:

1) Como determinar de forma expedita o resto de uma divisão inteira por 19?

2) É possível fazer isso com recurso aos dedos de uma mão?

Trancoso responde afirmativamente a ambas as questões. Repare-se que o resto da divisão de 1000 por 19 é 12; o resto da divisão de 100 por 19 é 5; o resto da divisão de 20 por 19 é 1. Sendo assim, para números da ordem de grandeza das datas, o critério de divisibilidade por 19 é enunciado da seguinte forma:

Troque-se cada milhar por 12, cada centena por 5 e cada vintena por 1. Em seguida, pense-se no resultado como se de o número original se tratasse. Se necessário, efectue-se nova remessa de substituições.

EXEMPLO: Considere-se o ano de 1498 que, adicionado de 1, resulta em 1499. Após substituições, ficamos com 55. Após novas substituições, temos 17. O número áureo de 1498 é 17.

Acontece que temos 19 juntas numa mão. Após a primeira remessa de substituições, transformando 1499 em 55, o resto de 17 pode ser alcançado contando as juntas, como se mostra na Figura 4.

Figura 4: Determinação do número áureo pela mão.

É claro que é capaz de ser mais simples efectuar as substituições até ao fim, em vez de utilizar a mão. No entanto, não deixa de ser uma coincidência curiosa.

Epacta

Se considerarmos que uma lunação corresponde sensivelmente a 29,5 dias, podemos concluir que 12 lunações correspondem a 354 dias. Há um desfasamento de cerca de 11 dias entre a duração de um ano e 12 lunações completas. Se o momento inicial do ano zero corresponder a uma Lua com 11 dias, o início do ano 1 corresponderá a uma Lua com 22 dias, o do ano 2 a uma Lua com 3 dias, etc. A esta «idade» da Lua no início do ano, medida em dias, chamou-se epacta. Ilustremos novamente a progressão com auxílio de uma tabela.

Atribua-se aos desanove números áureos, por ordem, os números 10, 20 e 30 - ou seja, a sucessão 10, 20, 30, 10, 20, 30,... (a expressão 10x[1+Resto(Áureo+2;3)] é o termo geral).

A determinação da epacta correspondente a cada número áureo pode ser obtida somando-o ao número 10, 20 ou 30 que lhe competir, subtraindo depois 30 a essa soma sempre que exceda 30. A fórmula é a seguinte:

A -> Epacta=Resto(A+10x[1+Resto(A+2;3)];30)

Dada a complexidade da fórmula, os dedos são uma preciosa ajuda. Trancoso propõe uma engenhosa utilização do dedo polegar. Marcando os símbolos X, XX e XXX, basta contar sobre ele o número áureo, somando-o ao valor da junta final (retirando 30 ao resultado, se necessário). Continuando com o exemplo de 1498, a que corresponde A=17, ilustramos o método na Figura 5.

Figura 5: Determinação da epacta pela mão.

Relativamente ao ano 1498, a epacta é 7 (após retirar 30 a 37).

O que fazer com o número áureo e com a epacta?

Calendários juliano e gregoriano

Naturalmente, o número áureo e a epacta servem para a determinação dos novilúnio e plenilúdio da lunação pascal. Para levar isso a cabo, é necessário tecer algumas considerações prévias sobre o calendário.

O Calendário Juliano foi implantado pelo imperador Júlio César em 46. a.C. Com as alterações feitas pelo imperador Augusto em 8 d.C., este calendário continua a ser utilizado pelos cristãos ortodoxos em vários países. A regra fundamental do calendário juliano é a seguinte: Os anos bissextos ocorrem sempre de quatro em quatro anos, quando o ano é divisível por 4. Sendo assim, o calendário juliano assume que a duração de um ano é exactamente 365,25 dias.

O Calendário Gregoriano foi promulgado pelo Papa Gregório XIII (1502-1585) em 24 de Fevereiro de 1582, pela bula Inter gravíssimas. É hoje oficialmente utilizado pela vasta maioria dos países. Este calendário tem em conta o facto do ano não ter 365,25 dias exactos e faz um ajuste. A regra de ajuste, única diferente em relação ao calendário juliano, é a seguinte: os anos seculares (1600, 1700, 1800, etc.) só são considerados bissextos se forem divisíveis por 400.

Figura 6: Detalhe no sepulcro papal: o calendário é apresentado por António Lilio.

Todo o processo exposto por Gonçalo Trancoso está pensado para o calendário juliano.

Nesta parte do texto vamos seguir Trancoso e determinar a Páscoa do ponto de vista juliano. Como visto anteriormente, o ciclo metónico não corresponde a 19 anos exactos. Em cada 312 anos e meio há um atraso de um dia. Na altura da reforma de Gregório, o atraso ascendia a 4 dias, pelo que é tradição eclesial efectuar uma soma de 4 aquando a feitura dos cálculos. Chamaremos ajuste a este incremento de 4.

Fora isto, no que diz respeito à translação de juliano para gregoriano, observe o leitor que, por haver mais dias no juliano, o calendário gregoriano vai acumulando uma diferença. Nos dias de hoje (1900=<A<2100), a diferença é de 13 dias; na época (1800=<A<1900), a diferença era de 12 dias; na época (1700=<A<1800), a diferença era de 11 dias; na época (1500=<A<1700), a diferença era de 10 dias. Na altura da reforma gregoriana, foram omitidos dez dias, deixando de existir os dias entre 5 a 14 de Outubro de 1582. A bula ditou que o dia seguinte à quinta-feira, 4 de Outubro, fosse sexta-feira, 15 de Outubro. Actualmente, se quisermos pensar na data ortodoxa em termos do calendário de Gregório, temos de somar um incremento gregoriano de 13 dias. Na época de Trancoso, o incremento era 10. Resumindo tudo numa lista de regras práticas:

1) A epacta (designada por E) traduz o estado da Lua no início de Março.

2) 30-E é o que falta para completar a lunação e atingir o novilúnio pascal.

3) Deve somar-se um ajuste de 4 a 30-E.

4) Normalmente 30-E resulta num número maior ou igual a 4 e, após ajuste, o resultado cai no intervalo de tempo imposto. Só há dois casos em que isso não acontece: 30-E=1 e 30-E=2 (30-E nunca resulta em 3, uma vez que E=27 não ocorre). A esses casos, correspondem os novilúnios 31 de Março e 1 de Abril. Após o ajuste, esses casos são 4 de Abril e 5 de Abril.

5) Para determinar o plenilúdio, basta somar 13 dias (ou 14, contando com o próprio, correspondendo sensivelmente a 1/2 lunação).

6) Por fim, se quisermos passar para o calendário gregoriano, devemos somar 10 no tempo de Trancoso ou 13 nos nossos tempos.

Consideremos novamente o caso de 1498, com A=17 e E=7.

Pensemos agora em 2015, com A=2 e E=22.

Se quisermos pensar 2015 em termos de calendário gregoriano, temos de somar 13. O plenilúdio dá-se em 7 de Abril nesse calendário. Esta data é a data utilizada por cristãos ortodoxos.

Letra Dominical

A Letra Dominical é uma letra do alfabeto utilizada para indicar a primeira ocorrência de um domingo num determinado ano. Se a letra for A, o primeiro dia do ano é um domingo; se a letra for B, o segundo dia do ano é um domingo; se a letra for C, o terceiro dia do ano é um domingo, etc. As letras utilizadas vão de A a G. Aos anos bissextos são atribuídas duas letras consecutivas. Esta singela informação permite saber a distribuição dos dias da semana no ano em causa.

Devido à perturbação dos anos bissextos, a mesma situação não se repete ao fim de sete anos, mas sim ao fim de 4x7=28 anos. Esse período é chamado de ciclo solar e é ilustrado na Figura 7.

Figura 7: Ciclo solar.

A cruz marca o momento 0 da era cristã. O ano 1 d.C. tem a letra dominical B. Escrevendo o ano na forma

(Nx7 + q) x 4 + d,

temos que N são voltas completas, q indica o que tem de se andar de 4 em 4 (roda interior) e d indica o que tem de se andar de 1 em 1 (roda exterior). Trancoso propõe uma forma de se passar este dinamismo para a mão. Considere-se novamente 1498=(53x7+3)x4+2. Temos de andar 3 na roda interior e 2 na exterior, como é exemplificado na Figura 8.

Figura 8: Determinação da letra dominical pela mão.

Através deste processo, descobre-se que a letra dominical de 1498 é G. O primeiro domingo de 1498 foi o 7º dia do ano. Com uma translação simples, ficamos a saber que os domingos de Abril foram 1, 8, 15, 22 e 29. O domingo após o plenilúdio pascal de 9 de Abril foi no dia 15 de Abril. Essa data foi o domingo de páscoa de 1498.

Luciano Pereira da Silva esclarece que o dia glorioso em que a armada portuguesa chegou a Melinde foi um domingo de Páscoa, dia assinalado na obra camoniana.

Era no tempo alegre, quando entrava

No roubador de Europa a luz febeia

Quando um e outro corno lhe aquentava

E Flora derramava o de Amalteia

A memória do dia renovava

O pressuroso sol que o céu rodeia

Em que Aquele, a quem tudo está sujeito,

O selo pôs a quanto tinha feito.

Os Lusíadas, II, 72

É dado bem conhecido: os portugueses chegaram a Melinde no dia 15 de Abril de 1498.

Determinação da Páscoa da cristandade ocidental

Os cristãos ortodoxos continuam a fazer os cálculos à maneira de Trancoso, baseando-os no calendário juliano. Esta forma de realizar o cômputo está um pouco desfasada da realidade astronómica (basta pensar que o ajuste continua a ser 4). Com o advento da bula Inter gravíssimas, uma nova forma foi proposta, mais fiel ao dinamismo astronómico. Os católicos romanos, protestantes e anglicanos (cristandade ocidental) mudaram de processo; a cristandade oriental manteve-se fiel ao processo juliano e tradição eclesial de Niceia. Existem inúmeras referências que explicam o processo ocidental, estando o assunto fora do âmbito deste texto, que é dedicado ao trabalho de Gonçalo Trancoso. O que é certo é que, hoje em dia, muitas vezes a Páscoa ocidental e oriental não é celebrada no mesmo dia. No entanto, o acto de «tirar pela mão» é aproveitável, com algumas mudanças que podem ser listadas da seguinte forma, para anos no intervalo 2001-2099:

1) O número áureo é calculado da mesma forma.

2) A letra dominical continua a ser útil para trabalhar o dia de semana (com o incremento adequado na passagem de juliano a gregoriano).

3) A Epacta Gregoriana tem de ser determinada de forma diferente. Mas não totalmente diferente, o processo é na realidade muito semelhante. Em vez de se contar de 1 ao Número Áureo sobre o dedo, conta-se de 0 ao Número Áureo-1 sobre o dedo. Em vez de se começar a contagem na junta «X», começa-se a contagem na junta «XXX». No final da contagem subtrai-se 1 e ajusta-se a epacta gregoriana somando ou subtraindo 30, de forma a que esta fique um número entre 1 e 30 (inclusivé).

A Figura 9 ilustra o caso do ano 2016, cujo número áureo é 3.

Figura 9: Determinação da Epacta Ocidental pela mão, para anos 2001-2099.

A epacta gregoriana pode ser pensada como sendo a situação no primeiro dia de Março. Se, por exemplo, EG=10, a Lua nova ocorrerá em 21 de Março e a Lua cheia em 3 de Abril. Há apenas dois casos particulares que se devem a ajustes necessários.

1) Se EG <=23, a Lua nova será simplesmente no dia 31-EG de Março. Trata-se apenas de andar com os dias para a frente.

2) Se EG>25, a Lua nova será no dia 30-EG de Abril (se 30-EG=0, será no dia 31 de Março). Trata-se apenas de andar com os dias para a frente.

3) Se EG=25 e NA>11, a Lua nova será no dia 30-EG de Abril. Trata-se apenas de andar com os dias para a frente.

4) Os casos especiais são EG=24 ou (EG=25 e NA<=11). São os únicos casos em que se faz um ajuste de um dia e a Lua nova será no dia 29-EG de Abril.

A Lua cheia é obtida somando 13 à data da Lua nova. No exemplo de 2016, EG=21, consequentemente, a Lua nova Pascal acontece no dia 10 de Março e a Lua cheia no dia 23 de Março. Como o primeiro domingo depois de 23 de Março ocorre no dia 27 de Março, essa é a data da Páscoa em 2016.

Calculador

O leitor pode verificar todo o processo no calculador que aqui disponibilizamos (clique na imagem seguinte). A melhor forma de o utilizar consiste em seleccionar os pontos e usar as setas «->» e «<-». Existe um selector principal para mudar de assunto. A data pode ser alterada. Escolhendo uma data entre 2001 e 2099 (inclusivé), também pode testar-se o processo exposto na secção anterior.

Figura 10: Calculador.

Pode conferir-se tudo aqui.

Referências

[1] Gonçalo Fernandes Trancoso. Regra geral pera aprender a tirar pola mão as festas mudaueis, que vem no anno, a qual ainda que he arte antiga está per termos mui claros, Lisboa: Francisco Correa, 1570.

[2] Luciano Pereira da Silva. Obras Completas de Luciano Pereira da Silva, Volume III, Faculdade de Ciências da Universidade de Coimbra, Divisão de Publicações e Biblioteca : Agência Geral das Colónias, 1946.

[3] Livro de Marinharia, copiado e coordenado por Jacinto I. de Brito Rebelo, Lisboa, 1903.