PEDRO GOMES

URBE

I

A exposição URBE, que Pedro Gomes apresenta na Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva, em Lisboa, desenvolve-se em torno de dois pontos centrais no seu trabalho – a prática do desenho e a percepção do espaço. Estes são tópicos recorrentes no percurso do artista que, de cada vez que os aborda, reinventa o seu funcionamento e questiona os limites da prática artística.

Nas obras de Pedro Gomes há, também, uma forte referência à esfera urbana. Nesta exposição isso surge pelas características das imagens apresentadas, que reportam a ambientes citadinos, apreendidos no exterior.

A exposição é formada por dois painéis de grandes dimensões, que se criam pela junção de várias partes e se distanciam no tempo por 10 anos. Estes elementos instauram uma relação de complementaridade e, enquanto um promove a leitura de uma imagem única, que existe sobre um fundo negro, o outro desenvolve a leitura de uma imagem múltipla, de fragmentos e justaposições, marcada sobre um fundo branco.

A disposição que ambos assumem, colocados face-a-face, comporta uma condição de instalação que reforça o lado imersivo da exposição.

O painel negro (Finisterra, 2008) é composto por quatro grandes elementos e adopta uma posição de canto, criando um espaço que nos chama mas que é, também, de limite. Trata-se de um registo feito de forma invertida, perfurado de dentro para fora, onde a expressão advém da escala do gesto, da materialidade do papel e da força da perfuração. Este é um desenho que rompe a superfície, revelando a cor do outro lado da folha e marca uma imagem, de olhar panorâmico, sobre um contínuo da mancha urbana.

O painel branco (Sem título, 2018) situado no outro lado da sala, é disposto numa única parede e afirma-se, frontalmente, sobre o observador. Trata-se de um grupo de oito desenhos, agregados numa única obra, que se cria de forma oposta. Contrariamente à ideia de um gesto único, que é repetido e lacera o suporte, há um depositar de sucessivas camadas, que congestionam o papel e tornam o desenho uma variação de múltiplos registos.


II

Pedro Gomes apresenta-nos imagens que partem de edifícios modernistas e de antigas estruturas metálicas. Apesar da sua configuração inesperada, estes espaços ambicionam um olhar anónimo e evitam a vertente icónica da construção. São elementos que se posicionam como uma leitura banal, ou quotidiana, mas que assimilam um lado lúdico, invocado pelas rodas dos parques de diversão. No conjunto, ora se aproximam de um ambiente nostálgico, ora se fundem num registo mais abstracto.

Estas imagens de origem complexa e sobreposta, cruzam-se ainda com uma mancha de vegetação composta por folhas, ramos e troncos de árvores. O cruzamento entre o ambiente urbano e a vegetação que o envolve, traz à mente o confronto entre cultura e natureza. Aquilo que associamos à natureza corresponde a uma ideia primordial de verdade mas aqui cumpre o papel contrário, ao dissimular e esbater o ambiente que está a cobrir.

Trabalhando com pontos de vista que reforçam a presença do observador, o artista aponta perspectivas que surgem de um olhar sediado no corpo. Apesar da figura humana estar ausente, o corpo está implícito e subentende-se pelo tipo de vista que as imagens definem. Trata-se, assim, de promover um olhar que fita os contornos sobrepostos e invertidos de uma paisagem urbana, que está assente numa ideia de camuflagem e numa vincada efabulação do espaço. Algo que testemunha um lugar vazio, ou desocupado, que se reconfigura a cada camada e nos coloca perante algo que gravita entre o figurativo e a abstracção.

Em todos os casos, há uma sobrecarga do papel que denuncia a vontade de ao mesmo tempo revelar e ocultar. Esta é uma experiência de ecrã saturado, onde se alimenta uma relação de impossibilidade e não de escrutínio. Trata-se de propor a experiência enquanto elemento significativo, evitando a procura do objecto enquanto exercício de representação.

Note-se contudo, que todos estes desenhos são figurativos, apesar de não haver neles uma procura de figuração. Há antes um caminho de sentido oposto, onde se destaca a experiência de vaguear simultaneamente pela imagem e pelo suporte.

Curiosamente, de forma contrária ao deambular a que convidam, estas são obras que se planeiam, obedecendo a uma marcação de várias etapas. Deste modo as decisões são tomadas com antecedência e, do preparar da base à evolução da imagem, há um conjunto de momentos que vão sendo cumpridos. O desenho é programado e detém um raciocínio que é projectual mas, ao mesmo tempo, determina-se uma última pele que para o autor e para o observador, deixa as figuras em aberto.

Cada imagem tem um tempo e uma expressão próprias, que vai da construção estratificada (cobrir da base; riscar sobre papel químico; desbastar/perfurar a superfície), à sua apreensão gradual.

A espessura dos traços desvenda o contorno, os vários níveis da superfície e o fundo, mas a sua intensidade não revela um registo emocional. Com uma expressão constante, as imagens sobrepõem-se, fundem-se e tornam-se impossíveis. E, em cada camada que se intervenciona, deturpa-se a clareza e desmembra-se a figura.

No fundo, Pedro Gomes procede a uma operação complexa de construção e desconstrução da imagem que, ao mesmo tempo, questiona o desenho e a entendimento que dele temos.


III

A criação de excertos e desvios aproxima-se, no âmago, à lógica de um pensamento barroco. O modo como se cria uma pendularidade entre a ordem e o caos, entre a luz e a escuridão, ou entre a clareza e a imperceptibilidade, demonstra uma vontade de vertigem que é tida pelo excesso, ou pela saturação. Nesse sentido, funcionando por etapas que se cruzam e entrelaçam, que se reforçam e contradizem, há também uma filiação do desenho na lógica da pintura.

O registo de aproximação e distanciamento, que é inerente à constituição da obra, reclama a atenção do observador. Esse movimento, que acontece no desenho e no espaço, ou na obra e na sala de exposições, surge quando o olhar se solta. Assim, quando o observador se envolve na imagem o último sedimento é na verdade um registo do seu olhar.

Focar e desfocar diferentes coisas, em vários planos, implica um movimento que é trabalhado com a consciência da distância. Quando recuamos abarcamos uma leitura do todo, quando avançamos detemo-nos sobre os pormenores que carecem da nossa atenção. Neste movimento de entrada e saída da imagem, torna-se difícil apreender a técnica e o assunto ao mesmo tempo. Mas esse é também o modo aliciante como as obras nos envolvem.

Tome-se o exemplo do painel branco, de traços esbatidos, que se revelam à medida que nos aproximamos. Nele a densidade de cada parte afirma-se com a proximidade das outras e, no modo como elas se conectam, há um padrão que lhes dá unidade. Por outro lado, a posição do que na imagem fica atrás e à frente torna-se difícil de discernir. Na verdade o conjunto é formado por um grupo de filtros que, simultaneamente, se sobrepõem, anulam e sublinham.

Pedro Gomes constrói um campo visual animado por uma dinâmica própria. Uma dinâmica assente na elasticidade formal da composição, que se expressa na relação entre o fragmento e o conjunto. Mas ao trabalhar o dinamismo das imagens naquilo que elas são e naquilo que elas geram, ou na forma que têm e no olhar que promovem, há algo que as põe em fuga.

O desejo de estreitar a distância, ou de melhor conhecer as figuras, nunca chega a concretizar-se. Na dinâmica que se estabelece as imagens estão em fuga e a relação que com elas temos nunca chega a ser plena, pois nunca as apreendemos por inteiro. Esse desencontro é aquilo que gera a inquietude que, por vezes, perpassa as obras. No fundo esta é uma experiência ansiosa, que procura uma relação mais imediata, que nunca chega a ser cumprida.

O trabalho de Pedro Gomes funciona como um processo de inversão a uma arqueologia das imagens. Isto é, há nele uma vontade de procura que é permanente e que funciona por estratos, mas a maneira como isso acontece, ergue e desmembra, em paralelo, a possibilidade de um encontro. Assim, a capacidade de perceber as imagens é contrária a um processo de revelação. Trata-se de uma ocorrência onde não há um momento de parar, mas onde existe uma gestão de equilíbrio no estado actual.

Dir-se-ia que a lógica do olhar em movimento e da imagem em transformação, aponta para a destruição da configuração cartesiana do espaço. As obras de Pedro Gomes não tratam de revelar a existência das imagens, mas sim de nos convidar ao encantamento da sua descoberta.


Sérgio Fazenda Rodrigues

Março 2018