PEDRO GOMES

UM QUARENTA


Considerando a coincidência das dimensões dos desenhos com que o artista Pedro Gomes (Moçambique, 1972) habitualmente trabalha e a medida modular da arquitectura do espaço da Galeria Diferença – um metro e quarenta centímetros – a exposição UM QUARENTA revela-se uma ocasião pertinente para indagar sobre o modo como os múltiplos ecrãs interagem na percepção visual. Através do desenho de modelos expositivos específicos utilizados nos gabinetes de curiosidades, antigas pinacotecas e salões do século XIX, bem como da invenção modernista do panorama e do cubo branco, o artista questiona o modo como estas arquitecturas museológicas interferem com a multiplicidade de pontos de vista e com o conhecimento que advém dessa experiência visual e sensorial. Assim, os desenhos destacam-se das paredes, numa instalação em dispositivos duplos, que proporciona uma nova experiência que tende a desfazer o carácter único da obra de arte.

A Galeria Diferença, em Lisboa, inaugurada em 1987, é um projecto dos arquitectos Nuno Teotónio Pereira e Artur Rosa em que a textura da cofragem de madeira é visível no chão e entra em diálogo com as caixilharias de ferro das portas de vidro, que dão para um pátio interior. Estes materiais - cimento e ferro - duradouros e austeros, contrastam com as precárias estruturas de madeira projectadas por Pedro Gomes, que sustentam as frágeis folhas de papel dos desenhos. Esta relação contraditória, aliada à não utilização das paredes da galeria, denota uma procura por uma experiência sensorial e visual que contraria a arquitectura desenvolvida com o propósito de expôr obras de arte. Um dos primeiros espaços museológicos desenhados exclusivamente para o efeito foi a Dulwich Picture Gallery, no sul de Londres, projectada por Sir John Soane. Inaugurada em 1817, a pinacoteca usava um método inovador de iluminação que, através de luz zenital, permitia iluminar por igual toda a sala expositiva. Posteriormente, este modelo foi usado nas galerias de arte europeias onde se realizaram os populares salões de pintura e escultura. Apesar dessa inovação, o modo de expor não sofreu alterações e as pinturas continuavam a ocupar grande parte das paredes das salas das galerias, tal como era comum desde os gabinetes de curiosidade ou quartos das maravilhas, muito populares desde a época dos descobrimentos no século XVI. Estas salas dos palácios imperiais e, posteriormente, da nobreza e da alta burguesia, apresentavam as colecções de uma grande variedade de objectos raros e estranhos à sociedade europeia. Assim, as esculturas, pinturas, desenhos, animais, pedras, objectos, entre outras coisas, amontoavam-se em espaços que encenam de múltiplas realidades em diversos ecrãs de conhecimento científico, artístico, religioso e místico. Esta espécie de enciclopédia visual revelava-se um poderoso modelo das contradições e diversidades que as imagens continham em si mesmas.

Os desenhos que o artista Pedro Gomes apresenta na exposição UM QUARENTA são referências directas a estes espaços expositivos que privilegiaram um modo multi-lateral do olhar. Contudo, os desenhos não apresentam as pinturas propriamente ditas. Nesta ausência, as molduras delimitam o espaço pictórico e edificam o espaço arquitectónico em que são expostas. Ao criar uma multiplicidade de ecrãs vazios, a percepção do espaço expositivo torna-se pertinentemente questionável e inquietante. A discussão sobre o modo como as galerias influenciam a unicidade das obras de arte também está presente, na instalação de desenhos intitulada Panorama que o artista recentemente apresentou na Drawing Room, em Lisboa. Esta obra desenvolve-se a partir da ideia moderna do cubo branco e das pinturas panoramas do fim do século XVIII. Ao expandir a disciplina de desenho, estas obras indagam as fronteiras interdisciplinares e questionam como o modo de fazer é pertinente à realidade que a imagem em si tenta abrigar. O conceito white cube aponta, criticamente, para como as leituras das obras de arte podem ser experimentadas num espaço normativo como as galerias e museus modernos e contemporâneos. O artista, ao ocupar todas as paredes brancas com desenhos brancos subverte este paradigma e transforma o espaço asséptico numa câmara de um ruído infinito numa aproximação ao white noise. Este ruído é construído através da sobreposição de diversas imagens de trabalhos recentes que dão continuidade à investigação encetada pelo artista sobre o modo como a imagem pode ser uma exaustão perpétua de realidades indiferenciadas em que o olhar se perde na superfície inebriante do desenho.

As pinturas panorama desenvolvidas em grande escala até ao fim do século XIX eram estruturas semi-circulares ou circulares que, através da pintura realista, narravam uma história, bem ao género da glorificação das pinturas históricas. Neste sentido, a técnica de trompe-l’óeil favorecia a veracidade e a emoção dos espectadores que convinha ao enaltecimento da história narrada. O projecto Panorama de Pedro Gomes, através da ocupação total das paredes com desenhos, vem intrometer-se na re-leitura dos pressupostos que os panoramas históricos faziam veicular. Através da utilização de um desenho tipo-padrão utilizado para esconder textos privados, os desenhos intensificam a invisibilidade do que é representado e não permitem a sua identificação. Considerando que a experiência desta proposta artística já não se encontra no campo do reconhecimento, pode-se referir que a perda e a desorientação são os focos que norteiam este trabalho. O artista socorre-se de linhas escavadas, com diferentes intensidades, directamente na folha de papel, para desenhar percursos nos quais, posteriormente e com alguma dificuldade, podemos reconhecer edifícios e plantas. Contudo, as camuflagens de ambas as realidades representadas parecem confundir o seu espectador e, assim, promovem uma multiplicidade de possibilidades e de caminhos a percorrer. Neste sentido, os desenhos revelam uma experiência, tanto intelectual como sensorial, como se fossem apenas ecrãs saturados de imagens e de realidades. Numa última instância, a saturação pode reencaminhar para o excesso de imagens e, consequentemente, para o seu próprio fim. A obra Panorama de Pedro Gomes relaciona o modo de fazer meticuloso, paciente e aparentemente mecânico com a realidade fria e inóspita que nos rodeia. Em jeito de instalação, esta obra remete o seu espectador para uma sublime paisagem, entre o deslumbramento e o temor, que exacerba o mundo em que vivemos.

Tomemos em consideração que tanto os modelos clássicos - gabinetes de curiosidade, salões de arte e pinacotecas do século XIX - como os modelos ditos modernos - panoramas e cubo branco - expõem as fragilidades e imposições que a arquitectura produz sobre as obras de arte. Neste sentido, o trabalho que o artista Pedro Gomes tem vindo a desenvolver, e que tem mais uma etapa na exposição UM QUARENTA, remete para um certo tipo de experiência visual que privilegia a relação entre uno e múltiplo, ou seja, em que modo e em que medida a homogeneização dos espaços museológicos são em si mesmos ingerências para a fruição de obras de arte. As frágeis estruturas que suportam os desenhos desta exposição remetem o espectador para um percurso múltiplo sobre o espaço e sobre o modo de ver as obras. Estas estruturas ao albergarem dois desenhos, como se de uma frente e verso se tratassem, duplicam, numa primeira instância, a visão que, posteriormente, no seu conjunto, multiplica os ecrãs possíveis de uma dada realidade. Neste labirinto espacial as imagens sucedem-se em relações estridentes e inebriantes que revelam outras visões e outras possibilidades, talvez, como se um fosse quarenta.


Hugo Dinis

Outubro 2018