PEDRO GOMES

Sítios específicos


Pedro Gomes constrói e encadeia temas que têm sempre a ver com a presença humana - sejam as recentes paisagens naturais que surgem desertificadas (“Paraíso”), mas cuja realidade depende sempre de um prévio olhar humanizado, sejam objectos e espaços que evocam o corpo como entidade ausente que pode regressar a qualquer momento - recordem-se peças como “Sem título”, 1996 composta por uma colecção de malas de viagem ligadas por cabo plástico, por exemplo. A montagem desta exposição começa e termina com representações da figura humana (na sala 1 e na última peça da sala 4), preenche-se com representações de lugares de ocupação humana (na sala 2) e de utopia do natural (na primeira peça da sala 4) e tem um “intermezzo” que parece ser festivo, onde esse mesmo corpo é celebrado ou pelo menos citado sem recato (na peça da sala 3).

Nas nove cabeças de alumínio fundido de 1997 (“Sem título") a figura humana surge como fragmento recuperado de imagens massificadas pelos jornais. Recolhidas em recortes mais ou menos aleatórios, cabeças inicialmente identificáveis ou já anónimas, protagonizam, segundo um novo reordenamento espacial, a ideia de multidão e de cena pictórica.

Os rostos originais foram reduzidos até à ilegibilidade e, feito um molde em plasticina, a forma é depois fundida em metal. Não há uma nota sequer de subjectivismo que assista estes rostos que nem sequer funcionam como esteriótipos - são sim identidades perdidas, imagens seriais cujo destino é o de complementarem um jogo meramente visual de verosimilhanças com um género que, por acaso, é o género humano.

Os rostos referem uma regressão do tempo subjectivo - não um regresso para a fronteira do divino e do tempo divino mas uma queda na indiferenciação dos seres. Esse conjunto de cabeças disperso pela parede é o que resta ou o que se vê da humanidade.

Através delas afastamo-nos de Giotto e Masaccio - que podem ter estabelecido o paradigma humano da modernidade ocidental - para chegarmos a um arquivo de cenas fotográficas ou cinéticas que a nossa memória de espectadores contemporâneos regista: dos jornais nas trincheiras da primeira guerra, dos filmes nos campo de extermínio nazis, das televisões nas novas guerras africanas ou caucasianas ou balcânicas.

As paisagens de ferro cromado e ferrugem que constituem a série “Paraíso” surgem em simultâneo como realidades globais e como fragmentos. São devidas também a uma recuperação de imagens previamente existentes, aqui a paisagens massificadas pela indústria do turismo popular, esteriotipadas no imaginário empobrecido dos cidadãos dos países ricos, sem peso algum daquilo a que poderíamos chamar realidade local. Cada um desses cenários paradisíacos esconde uma inatingível verdade histórica, social, política, económica, ecológica de que nenhum turista suspeita ou em relação à qual manifesta qualquer interesse.

Aqui, podemos evocar os fundos cenográficos de Giotto, onde a natureza aparece fixada e tipificada. Mas sobre esses fundos sucedem-se cenas temporais, revelando rostos marcados pelas grandezas e as misérias dos estados de alma, articulando personagens que perdem o hieratismo do divino. Giotto trabalha na fronteira entre as representações sem tempo da Idade Média e a temporalidade humana da pintura renascentista. Ora as cenas de Pedro Gomes estão desertas, desarticuladas das representações humanas - e estas (os rostos fundidos em estanho, por exemplo) negam qualquer humanidade.

As paródicas paisagens turísticas de René Bertholo usavam do mesmo mecanismo de repetição de fórmulas típicas (onde a palmeira era elemento essencial) mas a sua articulação era bem-humorada e crítica. As paisagens de Pedro Gomes são desertos deceptivos que acentuam o lado "kitsch” do catálogo de referências do imaginário popular - uma apresentação ideal destas peças incluiria, segundo o autor, um chão alcatifado em “dégradés” de rosa. Estas paisagens referem uma perda de aura, perderam a referência e perderam a narratividade - o tempo que sobre elas actua é, no entanto, um tempo real, natural mas invisível, lentíssimo, o tempo da ferrugem que come o metal e define o desenho (confronte-se adiante a violência e rapidez do fogo com que o artista realiza outra das séries apresentadas).

O conjunto destas paisagens é obtido através de recortes de prospectos de turismo onde a paisagem de férias é esteriotipada como imagem de um paraíso atingível. O lugar individual transforma-se em lugar único (universal) e esse lugar único é afinal um não-lugar - uma paisagem como um aeroporto ou um viaduto. Isso é, exactamente, o que a longa série de vistas de cidades e de interiores urbanos que realizou, e de que aqui se apresenta apenas um exemplo (Sem título - Série Habitar, 1996), refere. Cidades tipificadas, com tomadas de vista de lugares que são lugares-nenhuns porque são lugares-quaisquer, mas num sentido deceptivo e desesperançado. Desenhos que parecem iludir o realismo de uma fotografia ou de um monitor de vigilância do trânsito urbano que, por muito ampliada ou devido ao grão de uma má retransmissão, se torna afinal num cenário irreal. Ao mesmo tempo, estes desenhos, feitos a esferográfica e segundo uma manualidade repetitiva e circular, introduzem uma vibração de superfície que nega a frialdade da recente fotografia não expressiva cuja tradição parecem citar e nos atiram para as experiências visuais do desenho pós-impressionista de Seurat.

Finalmente, o corpo inteiro e real é evocado num objecto tridimensional (chamemos-lhe escultura). Em “Light, diet, etc." oito balanças referem o corpo e o seu peso, um espelho refere o corpo e a linha da sua silhueta, um cruzamento de fitas coloridas embala o volume total numa alegria que se adivinha artificial, resultado da encenação espectacular e permanente que a sociedade ergue em redor dos temas relacionados com o corpo. Portanto, o corpo referido é um corpo artificializado e virtual.

As balanças/espelhos/fitas de cor referem o corpo e culto do corpo na actualidade das sociedades de consumo. Mas esse culto facilmente o podemos remeter aos cânones mais arcaicos definidos nos “kouroi” gregos - só as linhas esguias desse efebos cujos sorrisos não têm tempo caberiam no espaço estreito do espelho utilizado – e levá-lo até à fascinação de Duchamp pela definição de “étalons” desajustados das medidas esteriotipadas pela legislação social e prática, o metro, o quilograma, etc.

Como pesar um corpo em balanças verticalmente expostas? As balanças erguem-se como uma coluna infinita brancusiana e esta peça confirma o universo apropriacionista quer de Pedro Gomes quer no seu (nosso) tempo criativo. A atitude duchampiana de apropriaçao torna-se, desde os anos 60 na soluçao mais recorrente como método de produção de imagens. Uma realidade tão sociológica como estética a que os anos 70 e 90 deram conteúdos mais reflexivos e menos celebrativos. É nestas continuidades multiplicadas que se situa o trabalho de Pedro Gomes: apropriacionista mas simultaneamente celebrativo e crítico.

E é no âmbito do corpo, do corpo representado em acção (não do corpo reflectido - espelho, nem no corpo reduzido ao anonimato - cf. as já referidas “cabeças”) que Pedro Gomes conclui o circuito fechado da sua montagem. Os seus vídeastas, desenhados a fogo sobre papel, (“Sem título”, 2000) podem concentrar todas as metáforas do estatuto da imagem nos dias de hoje, podem justificar o título que o artista deu à exposição e mesmo o título deste texto - ambos, ironicamente, traduzem, e ao traduzirem desviam ligeiramente o sentido, expressões que a gíria artística mantém no inglês original: “remote control” e "site specific".

Nos videastas, Pedro Gomes representa uma acção de registo de imagens. Não são personagens de uma acção específica, porque o registo de imagens se democratizou até atingir os excessos que entopem os canais de informação, mas referem um tempo e um sítio específico de acção que aqui se abstrai. Tanto podem ser cidadãos em “actos” de turismo, como jornalistas actuando na recolha de "(f)actos” alheios, como artistas em pleno acto criativo . São personagens que ficcionamos estarem a recolher imagens familiares, imagens documentais ou imagens artísticas.

Ao mesmo tempo, são imagens que podem ser metáforas de auto-representação: o artista que, ao representar artistas se representa a si mesmo (à sua acção de fixar e criar imagens) - e assim se repete o eterno ciclo de "l'arroseur arrosé”.

Mas não podemos citar nem Dürer, nem Velasquez, nem Courbet, nem Picasso - com os seus afirmativos auto-retratos - antes os humildes disfarces dos primeiros renascentistas, a camuflagem final sob a qual Warhol encena um rosto que já anuncia a morte ou as metáforas do "Três de Maio" de Goya ou da morte de Maximiliano, de Manet.

Aqui, o personagem esconde-se atrás do instrumento que lhe serve para registo do real, esse instrumento é uma máquina que pode estabelecer com o real precisamente uma relação de controlo remoto. O artista vê o mundo, o mundo não o vê. O olho que vê está(-nos/-lhe) ve(n)dado. O artista esconde a sua identidade atrás de uma máquina. E temos ainda a questão da manualidade, da reproductibilidade, da morte do artista ou da morte da arte. O artista que fotografa (outra importante série de 1999 que antecede a aqui apresentada) ou que filma torna-se membro de um pelotão de fuzilamento que dispara sobre um alvo, ou é um caçador, captura o que o rodeia.

Aqui chegados Pedro Gomes inverte uma vez mais a situação, em pleno gozo de ironia e crítica: o momento de registo da imagem torna-se um momento de destruição da imagem; as personagens entram em combustão, as máquinas explodem em fogo, a materialidade do próprio desenho fica em perigo. Barbara Kruger, ao reunir alguns dos seus escritos sob o mesmo lema, "Remote control", assume uma atitude denunciatória em relação ao poder, à cultura e ao mundo das aparências ("Power, Culture and the world of appearances"). O controlo remoto que o artista aqui evoca parece exercer-se (exercê-la) sobre a própria realidade artística - e ser a partir desta que se inscreve a sua crítica aos diversos outros contextos do real. Evitando demarcar moralmente (ou ideologicamente) os terrenos do que pode ser a aparência (mentira) e do que pode ser a realidade (verdade) a autoridade do artista reafirma-se assim de modo inequívoco no sítio específico da obra de arte.


João Lima Pinharanda

Lisboa, 4 de Dezembro de 2000