PEDRO GOMES

Sinais Exteriores


As heranças que carregamos são sempre fardos pesados. São muitas vezes ilusões que se desfazem de um momento para o outro. É dessa presunção que nos fala este obra de Pedro Gomes. A forma que desenhamos no nosso imaginário pode não corresponder a um valor efectivo e real. Da memória dos nossos ancestrais trazemos momentos de grandeza envoltos em autênticos ouropéis desgastados pelas sombras negras da realidade. O brilho das pratas, o polimento dos móveis, os reflexos das loiças perde-se para dar lugar apenas aos recortes dos nossos desejos. E assim eles serão sempre aquela preciosidade cultivada por anos de tradição familiar.

Mas este trabalho de Pedro Gomes é o resultado de um percurso de gradual exposição onde as memórias se confundem com o corpo representado. Primeiro são memórias difusas que se projectam em sombras vagas de exteriores, paisagens longínquas em busca de referências, para logo de seguida se dar um salto gigantesco para o interior de si próprio. Trata-se de um momento primário de ostentação da mais singela incorporação. O que importa neste momento é que se encontram as fronteiras para a continuidade do trabalho. Os horizontes foram aí estabelecidos, a verdadeira paisagem é o corpo.

O passo seguinte é demonstrar que o corpo é a sua casa. Ele é não só suporte mas também memória “coisificada”. A herança materializa-se e funde-se numa só pessoa. Deixa, portanto, de se distinguir herança genética e herança material. As duas ocupam lugar dentro do mesmo corpo e ele assim reencontrado fecha-se sobre si próprio impondo mais largos horizontes.

O que torna mais extraordinário este novo trabalho de Pedro Gomes é a consciência, mesmo que empírica, dessa realidade. É a auto-satisfação do corpo que se encontra sem limites e que torna tudo o que o rodeia parte de si próprio. A silhueta do corpo, muitas vezes pouco perceptível num retrato que se quer escuso, funde-se com os objectos. Este estado “fusicional” entre corpo e objecto transporta todo um mundo de referências. São as memórias familiares, as ilusões, as fantasias e mesmo os desejos concretos de uma materialidade sem grande sentido.

O corpo surge assim numa latitude simbólica com os seus troféus que não passam afinal de verdadeiros clichés, espécie de mitos da burguesia. São estes sinais exteriores de riqueza que, numa atitude mimética, tentam apropriar-se dos signos de esplendores passados. Uma cadeira em estilo D. José, uma cafeteira que no seu recorte lembra o desenho de um serviço do grande ourives Firmo da Costa pode muito bem ter como matriz original, no caso da peças que serviram de base ao trabalho de Pedro Gomes, apenas um objecto comum, não sendo muitas vezes sequer num material precioso. Este jogo de engano remete para uma realidade muito nossa onde apenas importa a ostentação e exteriorização da riqueza. É ainda hoje bastante comum surgir no mercado de arte antiguidades, que não se tratando de falsificações, são no entanto puras mistificações. A burguesia, muitas vezes desinformada, buscando referências que lhe são estranhas, olha mais para o aspecto formal das peças do que propriamente para o real valor da arte. Por isso mesmo as artes decorativas foram sempre no nosso país a grande arte. Quer dizer a arte de fazer de conta, da exteriorização de desejos incomportáveis para um país de parcos recursos tanto financeiros como estéticos. Foram sempre estas artes da ilusão que fizeram surgir ouro onde ele não existia, o brilho das porcelanas sobre matérias pobres, os modelos sem o verdadeiro sentido do original, os falsos brocados, a pintura de fingimento enfim toda uma experiência assente somente no improviso. Assim os recortes desmaterializados das sombras dos desenhos de Pedro Gomes também não deixam entender a verdadeira essência das coisas. Esta confusão ainda mais se estabelece quando os desenhos foram colocados a par das melhores peças de artes decorativas que em Portugal se conservam. As porcelanas europeias do século XVIII, a Baixela da Coroa Portuguesa da oficina Germain, o mobiliário francês do século das luzes, as tapeçarias de Bruxelas ou flamengas do Museu Nacional de Arte Antiga têm como cenário estes desenhos provocando desta forma um verdadeiro mar de enganos que as peças originais credibilizam. O que importa é acentuar este efeito de tromp l’oeil. Há um engano propositado para o olhar mais incauto, da mesma forma que se pretende enganadora a observação do corpo com que as peças se fundem. Mais ainda, o corpo esconde-se por detrás destas sombras e o poder contaminador que estas produzem acarreta uma ilusão sobre a verdadeira identidade do representado.

Será adequado, neste ponto, chamar à colecção a própria essência do desenho em que se baseia todo este trabalho de Pedro Gomes. O desenho como fundamento, como estádio primário da criação, teve em Portugal desde sempre grandes cultores seja a nível do estudo académico, seja como momento básico do processo criativo. Veja-se, a título de exemplo, o rico acervo que o Museu Nacional de Arte Antiga guarda nas suas reservas. Foi tomando mão desta tradição que Pedro Gomes quis direccionar este seu novo trabalho usando o desenho ou a como elemento de pureza ainda não desvirtuada, essencial, onde a verdade parece surgir sem filtros, onde a criação deveria ser mais espontânea. O facto é que neste trabalho do artista o desenho serve apenas como suporte e, mais uma vezes, estes conceitos são apenas utilizados para conferir credibilidade a uma realidade que em boa verdade está longe de ser autêntica.

Daí que da fusão completa entre os elementos característicos dos desenhos de Pedro Gomes nasça um novo conceito. Podemos dizer que espaço interior, ou melhor, a casa, os objectos, o corpo e a identidade fundem-se definitivamente neste trabalho criando algo de muito novo que parece perscrutar apenas o início de um longo caminho.


Anísio Franco, MNAA, 2005