Projecto Calçada da Ajuda 222
Alexander Portnoy, em Portnoy's Complaint de Philip Roth, diz que ninguém o masturba melhor do que ele próprio. Dito isto, fica terminada a referência à masturbação nestas últimas obras de Pedro Gomes. É um assunto banal, quotidiano que o pintor tematiza na globalidade das obras expostas, tornando-o um assunto evidente e que não necessita de especulação demorada. Não que sem antes faça uma referência a três fotografias por demais conhecidas, que têm a masturbação como uma distinção explícita da sexualídade: «Fuego en la obscuridad», 1988, de Daniel Hernández, em que a figura masculina surge sob um claro escuro carregado de uma dramaticidade caravaggista; «Bobby Masturbating», 1980, de Nan Goldin, sob um pathos, por vezes próximo das imagens deste Projecto Calçada da Ajuda 222; e «AA Breakfast», 1995, de Wolfgang Tillmans, tomada como uma descida na profundidade de um imaginado e imediato prazer capaz de se concretizar dentro do mais comum quotidiano.
A porta do prédio em que Pedro Gomes fez o registo dos seus frescos situa-se numa transversal à Calçada da Ajuda. É um prédio de dois pisos, além do andar térreo, logo ali, ao virar da Calçada, bem perto da igreja da Boa-Hora. Casa erguida na transição do séc. XIX para o séc. XX. Os dois andares encontram-se devolutos. Numa penumbra de poeira e de cheiros, as paredes das suas divisões vivem das boas e más memórias da família que durante um século aí viveu.
Não se pressente um chão de ruína e de abandono; e neste «projecto» quase se organizam imagens de despedida, sobre as quais se erguerá proximamente uma reconstrução, um restauro que levará a um novo desenho e redimensionamento de toda a casa. Se subirmos ao último piso, um sótão, sentimos vontade de rasgar um grande vidro nas águas do telhado viradas ao Tejo. O olhar de próximos moradores vai poder descer então até ao rio e perder-se no tempo largo do azul-verde das suas águas, como quem desce a calçada da Ajuda até Belém pode evocar o tempo curto de um ocre da índia, de que vai restando uma ou outra mancha no muro de um aquartelamento. (Ainda resistiam, há uns anos, não muitos, em toda a extensão desse muro que ladeia à esquerda de quem desce a calçada, algumas sombras dessa cor pretérita obtida com os pigmentos vindos de Goa e que cobriu, durante séculos, as paredes de fortes e quartéis. Nunca mais se conseguiu um ocre com essa tonalidade quase açafrão ou quase a exaltada cor da flor do tojo. Nas fortificações erguidas sobre o mar, quando a luz de Julho aquecia, era preciso fechar os olhos para guardarmos o esplendor da sua fuga nas vagas do Atlântico.)
Em cada um de cinco dos quartos da casa está uma pintura. Figuras masculinas de corpo inteiro (100x100cm). Sob o branco e o negro, sob a poalha de um pó sintético - poeira libertada na própria casa, pela própria casa -, que se deixa confundir com a negra poeira púbica das imagens. As pinturas estão directamente nas paredes. Inscrevem-se sobre a patine rosa e bege sujo. Trazem consigo uma carga de «frescos», sem que tenham sido pintadas segundo a técnica do fresco . Mas qualquer intenção que queiramos encontrar num grafitti está ausente delas. De certo modo, as figuras erguem-se do espírito da própria casa. Sobrelevam-se das marcas e das manchas que o correr macerado dos meses e dos dias prendeu às paredes. São o sinal de um, de vários personagens masculinos que entre as paredes desses quartos viveram o sentimento mais íntimo das suas vidas; o mais guardado dos seus corpos. Sob os estuques caídos, sobre um soalho de madeira, ainda em relativo bom estado, terão vivido por longos períodos, terão estado somente de passagem ou terão subido, recentemente, as escadas de degraus um tanto gastos. (Tudo isto respira no imaginário de Pedro Gomes.)
Não é difícil supor aquele que as está neste momento a subir. Alguém que pertenceu, em sangue e nervos, a essa casa. Alguém que dormiu nesses quartos e que regressa a revisitar o seu passado. Quase podemos sentir, um a um, o ritmado lugar do seu subir; e a sua mão direita tocar, de leve, a madeira do corrimão assente numa guarda de ferro, onde se repete uma sucessão de vulgares arabescos sibilinos. Não façamos qualquer ruído. Ele está a escolher uma chave. Está a abrir a porta. Entrou; e no escuro da casa não tem qualquer hesitação - todas as janelas estão fechadas -, procura os interruptores de todos os compartimentos e vai acendendo, uma a uma, as lâmpadas. No extremo dos fios, uma luz fraca ilumina um tecido de erro e de virtude, tenaz, solidário e solitário no silêncio do coração da casa.
Uma única lâmpada pendurada ilumina, sem qualquer ruptura, uma e outra configuração. Retrospectivamente reconhece os saberes dessas figuras . Conduz o processo sensível da individualização material de um corpo e de um debruçar sobre si mesmo, enquanto consciência e domínio da sua fala de corpo. Espécie de limite que foi aberto sobre a unidade do livro do corpo: inscreve-se na útil poeira escura, e logo negra, dos quartos da casa. Existe fora de qualquer olhar - na dependência do olhar dos outros, de um outro corpo apenas ou, somente, no rigor exigente de todos os músculos e explícitos sentidos do próprio corpo? Fora de qualquer olhar, na intimidade das páginas que dão forma à sua biografia (i .e., à escrita dos dias da sua vida) determina um traço de emocionado prazer.
A partir de si reconhece-se como obra. Como um livro de excitabilidade, simultaneamente contido e expansivo, que encerra nas suas páginas um sistema complexo de autonomia e de heteronimia. De si para si mesmo e de si para mais dentro de si mesmo, para o exacto lugar onde se movem múltiplas e espelhadas sombras, no silêncio do tépido abandono da parede, a pintura desce um Ecce homo. Sobre a textura magoada das paredes, o pó sintético agregou a figura. O contorno masculino estira-se na sua mancha e projecta-se dentro e fora do seu íntimo espaço como uma descrição dos factos do seu desejo: de um corpo que é o (próprio corpo) da desenhada figura e do prazer (in)contido no gesto que recomeça e oculta obstinada presença.
Há duas imagens fotográficas que me ocorreram quando percorri as divisões desta casa. Uma, do japonês Masahisa Fukase, pertence a uma longa série - Corvos - que produziu entre 1975-85. A circunstância que rodeia um jovem não é explícita. Trata-se de um rapaz vestido com a farda de uma academia militar. O rosto está desfocado no meio de outros rostos, muito próximos, de camaradas.
Regista uma suspensão, semelhante à de quem espera na gare de uma estação a chegada de um comboio. Guarda o sentido de uma ave negra; de um corvo preste ao início de um interminável voo. Tratando-se, não exactamente de um corvo, mas de um rosto humano, esse voo, essa viagem será de dentro de si para mais dentro de si ainda.
A outra fotografia guarda um desses instantes fotográficos de repórter, em que o acaso parece ser o principal responsável da sua raridade. Tirou-a em 1964 (e o verbo tirar tem consigo o sentido de coisa que se rouba ou que não se mostra a uma imediata realidade) o fotógrafo britânico Gerry Granham durante um jogo de futebol - O guarda redes do Spurs, John Holiowbread, dá um grande salto quando a sua equipa marca um golo em Tottenham. A expansão do salto (o seu ímpeto ejaculatório), dá-nos somente o contraste de uma figura a negro que se sustém no ar, sob um céu iluminado por fortes holofotes. O guarda redes eleva-se de um campo igualmente negro, rodeado de bancadas de carregado cinza, onde se pressente a presença não visível de uma multidão por certo seduzida em si mesma.
São imagens que irrompem no tempo do mundo dos seus protagonistas - o guarda redes e o jovem fardado - como um aqui e um agora, como um rasgão nas suas vidas, sem nenhuma história. Falta-lhes de um modo necessário um momento antes e um imediatamente depois. São, no entanto, um presente. Um presente de um nunca foi e de um nunca será dito, pois têm consigo, essas imagens, um sentido de recomeço e de ocultação e, também, de vertigem (como se o guarda redes, de um modo ininterrupto, saltasse um número incontável de vezes e o estudante da escola militar se dispusesse a um contínuo sair de si, para em si mesmo se ver, enquanto numa gare esperava um comboio). Nas paredes da casa que recebe o Projecto Calçada da Ajuda 222, a imagem parece resultar de uma projecção. Tem a mobilidade de quem se eleva num salto; e tem a imobilidade de quem aguarda, expectante, numa gare de estação.
As pinturas deste Projecto têm uma relação de continuidade com os trabalhos iniciados em 2002, Piscinas e Montanhas (tinta sobre ferro) e continuados em 2003 com Masturbações (técnica mista sobre tela). Também nessas pinturas se procura um limite: o que vai além de um excluir, de um interdizer; e, todavia, piscinas e montanhas guardam uma apaziguante história de relação. Com o outro, com os outros e, sobretudo, com o desempenho da sua mais íntima natureza, quando esta se desdobra, desde o seu mais remoto silêncio, braçada após braçada, com a natureza da água; ou com a visão do branco nas alturas de uma montanha coberta de neve. Pertencem, pois, piscinas e montanhas a uma história de relação. Provavelmente não passam de um longo monólogo. Mas serão sempre um relacionar, i.e ., uma certa maneira de olhar. E não será, também, mediação do olhar, o que encontramos nesses torsos das pinturas da série Masturbações?
Regressemos às pinturas que estão, temporariamente, no prédio à Calçada da Ajuda. Em breve elas irão desaparecer, no restauro da casa. Olhemos, por ora, para uma dessas figuras masculinas que parece mover-se abaixo e acima dos dois traços de estuque, em relevo. Num movimento continuado, febrilmente e, logo, mais lento, seguindo um ritmo de um trabalho secreto. Uma interior e secreta luz - não se reduz o prazer a uma continuada luminosidade e não é o desejo uma profundidade pictórica de onde ressalta um horizonte reversível? - lança o seu rosto sobre todas as sombras dos quartos.
Os estuques do tecto, por vezes, abrem-se em ferida e deixam ver as fasquias de madeira de um espírito (ainda) pombalino. O abandono da casa e o soalho sujo são em si mesmo um desejo cheio de obscuridades. Tal como as pinturas, também esses quartos em que todas as portas estão abertas, se encontram disponíveis a que qualquer estranho os percorra. E o mais interessante é que poderá não querer encontrar um imediato desejo nessas imagens. (Talvez mesmo a poeira negra que teceu as pinturas e que tanto se aproxima da veracidade do negrume do sexo, nos afaste de uma explícita eroticidade e conduza o desejo ao prazer inconsequente da memória.)
As Montanhas e as Piscinas representavam já um espaço de desejo; tomado como uma dimensão geográfica, como uma amplitude que, em termos do quotidiano, corresponde a um ir de férias e a uma fuga de um imediato e vivido real. Depressa, aquele que quebra a rotina do seu espaço de todos os dias com a vastidão de uma montanha ou com a superfície de água de uma piscina conclui que esse chão de viagem não o levou a parte nenhuma e que continua fechado em si e sobre si mesmo. Também, depressa, qualquer fuga dos sentidos para o terreno movediço do erótico se esvai para o que nem é presente nem é passado e a que chamamos memória. E o que perdura numa espécie de restos, sob a poalha negra (do pó da casa que o aspirador todos os dias recolhe) é, ainda, desejo; um vago resto de coisas desejadas, imaginadas e queridas na distância de um presente que vive no presente e que uma palavra resume: visão.
Visão de uma temporalidade, de uma corrente física pensada na corporeidade e que desliza pela pele mental desse mesmo corpo, tal como por ele resvala o frio, o calor, o bem estar ou o mal estar, o sofrer e todo e qualquer sentido de acção. Esta é a visão que conduz o presente até ao território de um espaçamento futuro, onde a expectação se resume a uma imagem fugaz de desejo. Desejo que em si mesmo se esgota, para não dizermos que, sem sobre ele termos qualquer forma de domínio, inesperadamente se refugia nesse mais eterno que em nós trazemos e que é um acto de regressão e de projecção de memória.
Passamos de um quarto a outro quarto. A presença masculina hipostasiada nas paredes repete-se na mais valia de um acto quase sempre veloz, um pouco mais demorado, é certo , do que as quatro sílabas (longas e breves) que dão forma e existência se não à eroticidade da imagem, pelo menos à palavra do acto. O corpo acaba sempre por ser um ponto de partida e um ponto de chegada, pois é nele que reside a última morada do prazer, assim como o derradeiro (e único) suporte desse prazer - dos sentidos, das emotividades e dos sentimentos.
Passamos de uma a outra das divisões da casa e na masculinidade, em líbido tão exposta, de cada um dos corpos presos nas paredes parte e regressa um ponto de fuga onde a natureza humana masculina converge e, também, diverge. Ponto de fuga do enclausuramento das imagens de um mundo que esse mesmo corpo contém, enquanto suporte do verbo existir.
A última imagem do mundo de teor político, social e individual é a de um prazer fácil, ou melhor, facilitado e inconsequente. Não tem, em si, eroticidade. Simplesmente se organiza a partir de um anúncio do que é sexualmente explícito mesmo quando essa imagem provém de um radical facilitismo ou de uma moralidade justiceira e proibitiva.
A imagem dominante é, então, a de um lixo (erotizável). E aqui entra, de novo, a casa, na sua ligação ao mundo; e a uma «mente» que lhe é exterior, falsificadora dos sentidos e do desejo dos sentidos e do prazer dos sentidos.
Quando vi estas pinturas, Pedro Gomes centrou-as nessa noção de lixo. «Aquilo que se traz de fora para dentro», disse-me. Para dentro de casa. Para dentro de cada um de nós. A oferta do mundo está cada vez mais distante de uma «oferenda musical», de um apaziguamento de paisagem equilibrada, carregada de intencionalidade sedutora. Unicamente, lixo. Que a partir de qualquer de nós só conduzirá à produção de mais lixo. O derradeiro traço simples e alheio a todo esse lixo é o nosso próprio corpo, a sua memória de corpo em existência; memória que passa por outros corpos mais imaginados do que reais. Mas o que resta não é coisa suja. É uma espécie de r egresso, de retorno ao génio particular de cada um.
Nas telas de Masturbações há uma limpidez imediata de imagem, apesar de nessas pinturas se encontrarem os mesmos elementos materiais com que pintou os «frescos» da instalação Calçada da Ajuda 222. Mas enquanto nas telas deparamos com uma eroticidade carregada, no prédio semi-arruinado a imagem agrega a circunstância de uma suposta frieza explícita em ruína.
O desejo de uma imagem sexualmente aberta surge «temperado» e de certo modo contrariado pela cor manchada das paredes, pela sujidade que o tempo nelas, e em toda a casa, introduziu. E que ao próprio corpo pictoricamente aderiu. Estamos perante uma memória que tanto pode ter sido vivida algures, quanto pode ter extravasado nesta casa. Com o explícito dessas figuras, a memória de todos nós, visitantes, terá também de se confrontar, pois entrámos no mais secreto da nossa própria sexualidade e não no secretismo da sexualidade ligada a um outro. Imagens que nos pertencem; ou que também nos pertencem na densidade da sua vulnerável existência.
João Miguel Fernandes Jorge