O CORPO, O PAPEL, O FOGO
«Estarei Sempre Contigo»,1995 (tubagens várias e braçadeiras de metal, 30x150x150cm), é um corpo escultórico que Pedro Gomes mostrou, juntamente com desenhos da série Habitar, 1996 (esferográfica s/papel, 120x160cm) na 1ª. Exposição Sete Artistas Ao Décimo Mês (Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, 1996). Se se refere no início deste texto a presença do artista nessa mostra colectiva, que teve como ponto de referência reunir jovens que ainda não tinham tido nenhuma exposição individual, é porque tanto «Estarei Sempre Contigo» como os vários «Sem Título» de Habitar permaneceram como referências iniciais no seu currículo. Nesse corpo de cabos eléctricos e tubos enredados de várias cores, que braçadeiras de metal apertam, e nesse emaranhado colorido feito pela tinta da esferográfica há um sistema operativo comum. Em ambos, enredo e emaranhado têm o mesmo sentido: ardil e enigma; labirinto, rede e meandro — que sugerem segredo, trama e enleio. Como uma corrente que percorre a rede urbana, o tecido arquitectónico ou a multiplicidade de energias que desenvolvem um quase «abstracto» (numa ocultação de signos plásticos perdidos ora na malha desenhada da polis ora na caracterização da vida quotidiana), vemos o termo «enleio» lançar outras pistas, outros segmentos que irão ser centrais no trabalho de Pedro Gomes. «Enleio» declina-se em sentidos e sentimentos, desde o enovelamento de «Estarei Sempre Contigo» ou desde as malhas urbanas de Habitar. Sentidos e sentimentos interpretativos que estão presentes para também dizerem quanto hesitam no enlevo, na sedução, no transporte amoroso. O que nos pode enviar de imediato, interrompendo uma leitura cronológica da obra do autor, para a série que deu lugar à instalação Contacto, 2005 (Círculo de Artes Plásticas de Coimbra).
Para uma aproximação da obra de Pedro Gomes há um verso de Karl Kraus — «O unido uni-lo ainda mais fundo» — que pode clarificar a estrutura energética e a plasticidade em que se inscrevem a escala do humano e a do seu espelhamento. A um só tempo jogada no figurativo (matérico e icónico) e no não figurativo (indeterminações, desejos, intenções), que é o enredo da escrita da esferográfica, do fogo sobre o papel em Contacto ou do movimento de impressão de tinta tomado como uma crítica da violência (sobre o papel, usado tanto no reverso como verso da folha) nas séries Sem Título, 2007 e From Combat To Leisure, 2008.
Há ainda um outro momento que parece tocar de um modo explícito o ritual que flui nas imagens desde a estrutura indefinida de Habitar; o qual se sucede e amplia em intensidade em séries posteriores, como no regresso às arquitecturas e aos planos urbanísticos dos Sem Título de 2007 e 2008 (tinta acrílica s/papel, 150x200cm). Esse momento acabará por registar as realidades em que vivemos, sem qualquer espécie de confronto, somente através de um doloroso deslizar da imagem — e doloroso porque na sua feitura não já a marca da ferida do fogo de Contacto ou dos Sem Título, 1999, em que a chama se expandia sobre um rosto (fogo s/papel, 152x122cmx4). É significativo que traga consigo uma correspondência fílmica. Por exemplo com a fugacidade da vida, tal como Mizoguchi a vê em muitos dos seus filmes. Será suficiente referir uma passagem de A Vida de O’Haru (1952), quando a protagonista se refugia num convento e uma monja budista lhe lê um sutra: «Por mais bela que seja a manhã, não há noite que não chegue sobre um monte de ossos. Este mundo é o mundo que muda impiedosamente».
A cidade surgirá estabelecida nas suas estruturas de ferro, fio, aço, cimento. O desenho de Pedro Gomes refere essa ordenação, cálculo, encobrimento e descobrimento, por onde a imagem prossegue sob a tentação do caminho mais curto: o sedutor anúncio de um rosto feliz, de um par humano a beijar-se, de mãos que em dádiva se apertam. Assim, seguem pela «mais bela manhã» pelas ruas e praças da cidade, anónimos, homens e mulheres (série Sem Título, 2007, tinta acrílica s/papel, 150x150cm). Vão no durar relativo do seu rápido movimento. Ao lado de cada um vai o desconhecido. Imediatamente à frente descobre-se o corpo que se queria ter naquela noite; ou tão-somente o volver de um pescoço trouxe o desejo de um alguém para sempre; naquele cruzamento vai outro alguém encontrar o seu assassino: «não há noite que não chegue sobre um monte de ossos». É a trajectória do corpo revelada por estas imagens. Está na sua origem.
Os corpos movem-se na cidade, como quem flutua num espaço vazio, sobre o mundo da vida — ou «sobre um monte de ossos»? Acresce, de facto, à arquitectura e ao limite do tecido urbano, uma segunda memória: a água, o sangue, os músculos, o sémen. A mobilidade do púbis dos anónimos que caminham nos desenhos de 2007 dá lugar a um complexo gráfico correspondente a um fio de metal torcido em diversos sentidos. Isto pode exprimir-se numa convulsão arqueada e movente nas três dimensões (segundo estudos do fisiólogo Carlet, sobre a medição da fadiga em andamento). A marcha dos que vão pela cidade leva-nos ao ponto inicial: ao fio metálico contido nas tubagens de «Estarei Sempre Contigo» e, também, aos movimentos pélvicos que deram lugar a Projecto Calçada da Ajuda 222 e à série Masturbação (técnica mista s/tela, 180x180cm), ambos de 2003.
Refazer um processo de impressão foi o modo de actuar no vasto conjunto de desenhos de 2007 e 2008. Primeiro, no tratamento de uma série de rostos de velhos, anónimos, Sem Título (tinta acrílica s/papel, 150x112,5cm); e, de seguida, sobre as personagens igualmente desconhecidas nas cenas de rua, desenhando aqueles que caminham no movimento citadino. Esse refazer assentou no desenhar no reverso do papel. Numa tentativa muito conseguida e inovadora de recuperar a imagem como se fosse um processo de escrita em Braille. À medida que a tinta vai sendo lançada por detrás, a imagem vai surgindo, ténue, como um resto de memória através do picotado, dos furos, dos buracos, das feridas a que, previamente, Pedro Gomes sujeitou o papel. E sobre uma primeira memória arqueológica, arquitectónica, urbana, que sustenta a materialidade da polis (há desenhos de 200x600cm), surge a segunda memória, a do historial subjectivo dos seus anónimos e singulares habitantes.
«I’m afraid I’m not here at the moment, but You can leave a message after the beep...», 1966 (esferográfica s/papel, 250cmx900cm) é um extenso desenho de interiores que nos aproxima das contiguidades fotográficas de Sam Taylor-Wood. Mas enquanto os longos planos longitudinais de interiores citadinos de Taylor-Wood nos estabelecem face a tranquilas figuras mediadas através da beleza pela bem-aventurança dos deuses do lar, os interiores vazios da presença humana de Pedro Gomes levam a que o seu hipotético habitante tenha abandonado o gabinete de trabalho e os longos corredores desertos, para se refugiar na solidão do seu temor entre o anónimo amálgama de gente que viria a tratar nos Sem Título de 2007.
A esferográfica enredou a arte efabuladora desse extenso desenho. A qual pretende mesmo afirmar, no seu fazer e desfazer de círculos continuados uns sobre os outros, quanto a sua forma é igual ao vazio e, ainda, igual ao medo. A personagem (segundo o título do longo desenho) que saiu de casa depois de deixar a gravação telefónica, fê-lo de mãos vazias. Os espaços vagos e temerosos começou-os, então, o artista a povoar de rostos corroídos, de efeito protoplástico, tanto num sentido fantasmal, como no de substância de viva criatura humana primordial (série Sem Título, 1997, alumínio fundido, dimensões variáveis). O próprio artista parece ter-se deixado confundir com a personagem de «I’m afraid». Acabaria por anular a domesticação do desenhado pela esferográfica, ao introduzir o fogo em trabalhos de 1999 e de 2005. A materialidade abstracta do fogo (substância que deixa o vazio no lugar exacto da forma) corresponde a um movimento sísmico que vai abalar os alicerces de todo o processo e alarga-o por meio de um gesto prometaico. Como se descesse entre os anónimos dos desenhos de «cenas de rua» da série «Sem Título» (2007) e, pelo desempenho da dádiva do fogo, se transformasse numa dessas mãos que aperta, num gesto de absoluta ligação (semelhante à que se encontra entre as tubagens e braçadeiras metálicas da escultura «Estarei Sempre Contigo»), uma outra mão num dos painéis que deram voz e imagem a Contacto.
O fogo foi conduzido por um instrumento metálico até ao papel. Sobre este, uma prévia trama introduziu o lugar do desenho, ao longo do qual o fogo abriu as suas feridas, as suas chagas, os seus mosqueados signos plásticos como se fossem o resultado da pele queimada pela entrada de uma bala. A expressão dos rostos que se aproximam e levemente se juntam, em Contacto, vem carregada de reconhecimento, sacralizada pelo fogo — não foi este princípio primordial roubado aos deuses? Por isso há indecisão quanto ao género e quanto à sua idade. Trata-se somente de um par humano, investido de género histórico que lhe é material e substancialmente atribuído pelas variantes livres do aproximar (em dádiva) dos rostos e também pela imperatividade do contacto que, entre si, as mãos tecem. De um modo que se pretende, para além de qualquer ilusão icónica, que seja incomensurável e carregado de transporte visual além espaço.
Em 2001, ao usar o título Controlo Remoto para uma exposição no Museu de Arte Contemporânea do Funchal, ordenou um dos sentidos possíveis que deste «controlo» se expande desde os ilusórios e irónicos trabalhos da série Paraíso, 2000 (ferro cromado e enferrujado, 80x60x40cm) às não menos irónicas séries «turísticas» Montanha, 2002 (técnica mista s/ferro, 240x140cm) e Piscina, 2002 (técnica mista s/ferro, 140x140cm). Controlo que evidenciara na sequência Linha de Fogo, 2000 (fogo s/papel, 5x(152x122cm). De um modo sub-reptício e encapotado. Uma intenção comum a «Jogos de Guerra», 2001, escultura de grande fragilidade, que não passou da conseguida conjunção de dois caixotões de madeira forrados a tecido de fardamento militar e entre si ligados por correntes - sempre presente a acção de ligar. Linha de Fogo surge na continuidade dos destruídos rostos de Sem Título de 1999. O fogo actuou.
Assim como o fogo actuou ao nível da violência na feitura do desenho, também numa memória antecedente e num tempo que se lhe seguirá numa segunda memória, o espectador vai influenciar o desenvolvimento da violência. Isto é, desse fogo a arder e a desenhar enquanto queima e destrói a natureza primeira de um rosto. Para nos falar das vibrações e dos impulsos que da violência passam da multidão anónima directamente para o corpo (e quase que para uma ideia de corpo), Pedro Gomes usou por duas vezes, até este momento, uma linguagem alegórica. A primeira vez em Palleiros, 2003 (técnica mista): desenhos que mostrou em Santiago de Compostela em 2005 na Chocolataria, a partir de cães sem dono e que primeiramente foram fotografados num canil. A imagem desses grandes planos de cães prolonga-se nos desenhos da série Sem Título, 2004 (técnica mista s/papel, 140x200cm). A segunda vez surge nos dois momentos da instalação Ter, que ocorreu em 2005 nas salas dos Museus Grão Vasco de Viseu e Nacional de Arte Antiga de Lisboa em que o espectador observa e contamina com a violência do seu olhar e da sua opinião.
Em Ter a figura do próprio artista confronta-se directamente como objecto. Objecto que é suporte de sucessivos objectos de mais valia por entre as salas de arte decorativa dos Museus. O corpo, o corpo singular do autor, dispõe-se à duplicidade dialéctica. Ao mesmo tempo que se anula como pessoa, instala-se como mostruário, semelhante a qualquer anúncio vibrante nas suas arquitecturas, prontas a Habitar. O corpo sustenta uma cadeira de braços do século XVIII, um jarro de prata, um castiçal. Mostra figuras figuradas e a eficácia fiduciária do mercado ou somente aquilo a que Bresson chamou Le diable probablement.
É preciso situar o desejo, parece estar a dizer-nos a anónima gente dos Sem Título de 2007. É também esse o seu discurso colectivo, a sua fala heurística acerca da figurabilidade, a sua arte de descoberta enquanto habitantes disponíveis a estabelecerem contacto e a sentarem-se nas confortáveis cadeiras da série Sem Título, 1998 (borracha, s/papel, 50x70cm), enquanto dizem in petto «estarei sempre contigo».
Mas o espectador continua a caminhar ao lado de cada um na rua da cidade. É a carne, os pulmões, o coração, o sangue, o sexo, o grito, a exacerbação da dor no limite do universo da cidade. A sua aura. Mas não lhe pertence a soberania da cidade, pois não passa de anónimo sorriso, receptáculo contemporâneo de súplica, medo e compaixão — corpos indefesos caminham na polis hodierna. Todos eles são o espectador de si mesmos, são a aura da polis, isto é, a sua dignidade. Sobre esta cidade o artista fez descer a ferida do fogo e de um prego que rompeu o papel para deixar passar o desenho: talvez só uma forma de o corpo relaxar certos músculos. Permanece mudo o espectador na sua marcha e o seu mutismo é um assentimento silencioso que Pedro Gomes retoma em From Combat to Leisure, 2008 (tinta acrílica sobre papel).
O Projecto da Calçada da Ajuda 222, instalação de pinturas murais (100x100cm) num prédio que iria ser restaurado, completa-se com as técnicas mistas sobre tela da série Masturbação (180x180). Os frescos da casa da Calçada da Ajuda agregaram na tinta um pó sintético, que não era mais do que a própria poeira da casa, o lixo libertado pela casa. Essa poeira fixada deu à imagem dos homens nus que se masturbavam uma nebulosidade de fresco (rosa e bege sujo), num clima de inteira recusa do grafitti. As figuras erguiam-se de um espírito da casa e mostravam-nos sobre as paredes dos quartos vazios o mais guardado dos seus corpos. Nas telas de Masturbação encontram-se os mesmos materiais das pinturas dos frescos. Nestas encontramos, de novo, uma carregada eroticidade, que nas cenas da Casa era atenuada por uma frieza explícita movida pela ruína bem visível das salas. O desejo sexual das telas surgiu iluminado pelas manchas das paredes e pela sujidade que o tempo introduziu na casa e a que o corpo do masturbador pictoricamente aderiu. O resultado era o de página de Genet ou de uma sequência fílmica de Dereck Jarman ou Fassbinder. Como se o esperma correspondesse ao pólen caído de um açucena à entrada do Anjo da Anunciação numa pintura de Lorenzo Lotto.
O masturbador é destrutor-criador do ritmo plástico da sua própria imagem. E com ele entramos em From Combat to Leisure (200x50cmx4), série recentemente mostrada no Museu de Arte Contemporânea de Elvas. Partindo de uma representação masculina de há cerca de 100 anos, de uma fotografia de um jovem soldado que viria a combater na Primeira Guerra Mundial, Pedro Gomes vai mais uma vez recorrer de um modo eficiente ao teatro da memória. Do combate que terá deixado a pegada desse jovem em terras de França, entre tormento, fome, medo e efusão de sangue, passou ao repouso (percorrido de uma outra ideia de combate) que a pegada de um desportista deixa num chão de neve ou às linhas que o correr das rodas de um skate ou de patins deixam num chão negro. Negro foi o chão de guerra escolhido para a violência do combate; e negro também o chão de cimento ou alcatrão que os desportistas percorrem. Salvo quando a pegada é marcada sobre o acrílico branca de um chão de neve.
Com a inversão do branco do papel sobre a face da pintura negra e no contraste jogado entre os furos por onde a tinta irrompe, ora branca ora preta, a representação masculina de há quase cem anos invade (fura a tela pela acção do prego e da tinta) e chega aos dias de hoje. A passagem daquele que foi guerreiro e imagem de combate e de exército como que equivale a ser hoje dura imagem de desporto. Os pés e as pegadas (as pinturas mostram-nos o papel do corpo somente abaixo do joelho) são um apelo ao fundo-figura e correm até ao olhar do espectador, como repositório da veloz passagem do tempo. Lembram-lhe que ele é também essa própria corrida a preto e branco, a cada instante ferida quer no combate quer no repouso.
João Miguel Fernandes Jorge, 2008