Ser justamente uma imagem
“Quase parecia impossível, ainda mais, parecia quase inadmissível, que a nossa realidade mais real, que alcançamos por último, se limite a ser uma simples imagem que se recorda! Contudo abençoada pela imagem e pela imagem amaldiçoada é a vida humana; só em imagens ela consegue captar-se a si própria, impossíveis de desterrar são as imagens, estão em nós desde os primórdios dos rebanhos, são anteriores e mais fortes do que o nosso pensar, estão na intemporalidade, encerram em si passado e presente, são dupla recordação de sonhos e são mais poderosas do que nós”.
Hermann Broch, A Morte de Virgílio, p. 85
Palmeiras. Objectos e edifícios. Crianças e adultos. Piscina, lago e o verde de uma natureza manipulada, enigmática. A ideia de uma tipologia de lazer e as possíveis heranças visuais transmitidas através de diversas energias mnemónicas. A forma do tempo é despedaçada e revela-se a complexidade das experiências emotivas do passado, entre impulso e racionalidade. Empatias simbólicas ou a vontade de descobrir e retraçar o pathosformeln de cada um dos detalhes seleccionados. Rasgões, um ou mais, por cada imagem impressa – provas irrefutáveis de um trabalho que quer destruir as imagens? “A tarefa ética do escritor moderno não é criadora mas destruidora. Destruidora da introspecção superficial, da consoladora ideia do universalmente humano, da criatividade do amador, e das frases vazias” (Susan Sontag, Sob o Signo de Saturno [1]). O rasgão, a violência do acto artístico, permite a excepção. A regra é abalada.
A exposição “Campo Grande”, da autoria de Pedro Gomes, no Pavilhão Branco – Museu da Cidade, mostra-nos uma série de dez obras fotográficas inéditas, com o mesmo título da exposição, que ensaiam, sem pretensões, um conjunto de experiências, que o artista desenvolveu no seu ateliê, a partir de duas imagens impressas num postal antigo, representando, respectivamente o Lago e a Piscina Infantil do jardim do Campo Grande - segundo projecto de 1945, do arquitecto Keil do Amaral.
Estava no frigorífico de Pedro Gomes há imenso tempo, ao lado de outros postais, fotografias, bilhetes, apontamentos, lembretes... Adquirido, há uns anos, num alfarrabista da Feira da Ladra de Lisboa, prática comum nos fazeres artísticos contemporâneos, o postal Campo Grande, entretanto e de forma acidental, rasgado no canto superior direito, interroga-nos, passados tantos anos, sobre diferentes questões, cuja natureza fugidia é dificilmente fixável. Fascinado pelas qualidades espaciais, temporais e formais inerentes a duas imagens anónimas impressas no postal; pelo impacto do referido rasgão neste postal; e pelas possibilidades técnicas (digitais) actuais, Pedro Gomes, simulando outros rasgões, cortes e lapsos, amplia, fragmenta e cria novas imagens no limite da sua definição técnica e figurativa. Visualidade pura? Aqui, neste ensaio, o Campo Grande é o da visão, da imaginação, da imagem fotográfica, da Arte. Neste trabalho, as referências operativas de Pedro Gomes alicerçam-se na Pintura, entre representação e não-representação, entre figuração e abstracção, espaço e tempo, entre vida e morte; acentuam os limbos mnemónicos que espoletam raciocínios plásticos sobre a experiência de todos os dias, a tradição da História da Arte, a virtualidade das reproduções digitais, a anarquia dos gestos e a impossibilidade de contrariar distúrbios latentes.
Objectos de contemplação?
As obras da série Campo Grande procuram, no âmbito de um ensaio quase obsessivo sobre uma imagem em particular, levar-nos para além do admissível - atravessam fronteiras no limite da sua definição figurativa e tecnológica. Pedro Gomes cria uma relação de intimidade com a imagem, valorizando, deste modo, uma forma de conhecimento que é essencialmente emotiva e que procura estabelecer uma situação de posse. Através de uma laboriosa prática de ateliê, o artista garante uma espessura psicológica a algo que é ficcional, sublinhando, num regime controlado, as qualidades derivativas do acaso e do acidente. Palmeiras, piscinas, arquitecturas e corpos, não são iconografias inéditas no percurso de Pedro Gomes [2]. A anterior violência processual que o artista desenvolveu noutros trabalhos - riscar, queimar, furar... – é actualizada, nesta nova série de obras, no do acto de rasgar [3]. Ao desvelar, como sempre fez, imagens ou situações do quotidiano, relativamente desqualificadas, de consumo pouco atento, propõe-nos, nesta exposição e série de obras, o prolongamento de um instante. A dissecação de um acontecimento ou uma determinada situação cristalizada em duas imagens, num postal, remete para um complexo território performativo do fazer Arte. “Admitir cada coisa como um segredo que pede para ser revelado, é assim que Benjamin considera o indivíduo: se cada um foi esperado, então em cada um habita um brilho próprio.” [4]
Desejo?
Para Georges Bataille, “el terreno del erotismo es esencialmente el terreno de la violência, de la violación” [5]. Ambíguo, cada fragmento seleccionado, arrancado violentamente da sua raiz, é carregado de uma tensão narrativa que ultrapassa, aparentemente, a sua superfície e bidimensionalidade. Dissolver as formas constituídas? Obtidas através de um moroso processo, alternado e repetido, e induzidas por um premente impulso tradutor, entre os resultados de uma manualidade exacerbada e de uma amplificadora tecnologia digital, estas imagens, impressas e fixadas sobre um novo suporte, sem conseguirem escapar à fatalidade da bidimensionalidade, revelam formalmente as estruturas (materiais) da imagem, num discurso de prova inquisidor, analítico, que nos inquieta. “Objecto sem corpo, sem mão, sem vontade, pode ela agir como a magia de uma influência?” [6]– pergunta Marie-José Mondzain, em A imagem pode matar?
Os recortes ou os rasgões, a sua consequente forma e presença na composição, assumem um protagonismo pictórico e plástico que abala a centralidade habitual do figurativo nas imagens geralmente requisitadas pelo artista. O resultado final aproxima-nos, por um lado, das Overpainted Photographs, de Gerhard Richter, e das obras de Jeff Wall; traz consigo a memória dos actos sobre tela de Lúcio Fontana e, por outro lado, em relação menor com a pintura, as obras de Pedro Gomes, expostas no Pavilhão Branco, inscrevem-se numa teia de reflexões e procedimentos afins, por exemplo, com os desenvolvidos no filme La Jetée, de Chris Marker, no Blow-Up, de Antonioni, nas obras de David Claerbout, e noutras pontuações seminais na história da imagem. Ainda, durante a inauguração, alertam-nos para a relevância do filme Je Vous Salue Sarajevo, de Jean-Luc Godard: http://www.youtube.com/watch?v=LU7-o7OKuDg...
Planos, profundidades e dimensões
A exposição da trama, ou da mancha, do papel - corpo (carne e pele) do medium convocado -, demonstram a frágil estabilidade plástica e pictórica das composições. A interrupção, a descontinuidade ou o desfalecimento de uma imagem, possibilitados pelo acto de rasgar, revelam a inconsistência do que está por baixo: as várias camadas indiciam a multiplicidade de planos, profundidades e dimensões daquilo que vemos. E o que vemos transporta, indiferenciadamente, outras imagens, desfeitas pelo tempo, pela reciclagem do material, pelo desinteresse e pelo abandono, numa secreta coexistência exposta pelo artista. “As nossas atitudes em relação ao que releva do fotográfico mudaram, e muito. O que equivale a dizer que os espantos, hoje, são fundamentalmente outros: porque a imagem fotográfica foi-se tornando incapaz, ao longo da sua história, de espantar quem quer que seja pela sua simples natureza foto-gráfica, quer dizer pela especificidade própria do seu carácter de imagem. A imagem fotográfica tornou-se habitual, banal, natural” [7], refere Pedro Miguel Frade, sublinhando que “é nesse sentido que o espanto fotográfico dos nossos dias tende precisamente a não o ser, ficando-se o espectador antes na contemplação admirada de uma diferença relativa, que separa a imagem presente ao olhar de outras já vistas ou julgadas possíveis” [8]. Pedro Gomes escava, rasgando, a imagem fotográfica, e ultrapassa, aparentemente, a sua superfície, devolvendo-nos novas superfícies, mais e menos profundas.
Ensaiando e analisando, numa lógica quase pericial, as possibilidades de uma imagem dentro de uma imagem, através de mecanismos de composição e decomposição, de enfatização, ordenação, supressão, ampliação e deformação, as imagens enquadradas nestas obras de Pedro Gomes sugerem um embaraço com a sua verdade aparente. Podemos supor que estas obras e imagens que o artista manipula, tendo em conta o seu percurso desde os anos 90 e uma releitura, talvez abusiva e ilustrativa, do estruturalismo Foucaultiano, são motivadas por “uma inquietação diante do que é o discurso na sua realidade material de coisa pronunciada ou escrita; inquietação diante dessa existência transitória, destinada a apagar-se, sem dúvida, mas segundo uma duração que não nos pertence; inquietação de sentir sob essa actividade, todavia quotidiana e cinzenta, poderes e perigos que mal se imaginam; inquietação de suspeitar de lutas, vitórias, ferimentos, dominações, servidões, através de tantas palavras das quais o uso há tanto tempo reduziu as asperidades” [9]. O rasgão, como já vimos, torna-se central e inquietante nestas composições: ao revelar o suporte material que permite a fixação e, no limite, a circulação analógica de imagens, estas obras reflectem e simulam, em última análise, as estruturas ou camadas discursivas e ideológicas – imprensa, modernismo, capitalismo, memória, comunicação - dessas mesmas imagens, a partir da sua realidade material - o papel. A imagem é um acontecimento? Indicia tudo e nada?
Miragens?
Ao entender uma imagem como um acontecimento, Pedro Gomes procura reflectir sobre pressupostos espaciais e temporais alternativos, ainda mal convencionados, deslocando o centro da gravidade perceptiva para algo que está submerso, num movimento que se afasta e que se afunda, em simultâneo, na bela aparência das imagens que nos seduzem. Para Hans Belting, “consumimos as imagens sobretudo como miragens técnicas, para melhor podermos ignorar a sua pobreza semântica” [10]. Em Campo Grande, Pedro Gomes obriga-nos a um diálogo sobre a construção de uma imagem, sobre a sua experiência e sobre a sua realidade material, sublinhando, neste processo, a importância da simulação, talvez porque “o que procuramos está submerso, e não o podemos procurar, porque na sua qualidade de insondável zomba de nós” [11]– escreve Hermann Broch, em A Morte de Virgílio. Assim, imagens, fendas, rasgões ou cortes, encerram em si passado e presente, assinalam a condição fracturante da realidade, colocam-nos entre a vida e a morte, num desejo constitutivo, encenado e descontínuo de ver mais e mais e mais... Para Roland Barthes, “aquilo que a Fotografia reproduz até ao infinito só aconteceu uma vez: ela repete mecanicamente o que nunca mais poderá repetir-se existencialmente” [12].
Precaridade?
Pedro Gomes, (na esteira de Barthes?), materializa ou explora, não tanto o studium de uma fotografia, de uma imagem, apesar da sua inevitável e latente presença, mas sobretudo a multiplicidade do punctum, ao fragmentar diferentes momentos, ao identificar as várias “picadas”, os “pequenos orifícios”, as “pequenas manchas”, os “pequenos cortes”, ou seja, Gomes joga com as várias possibilidades de entrarmos numa imagem através desse “acaso que nela me ferem (mas também me mortifica, me apunhala)” [13]. E é sobre estes pequenos fragmentos rasgados, isolados e ampliados, que procuram “informar, representar, surpreender, dar significação, provocar desejo” que os espectadores devem investir o seu respectivo studium ou o seu horizonte de expectativas. Ao contrariar a rapidez de um olhar fotográfico, Pedro Gomes estende, igualmente, a duração da experiência de uma imagem, sublinhando, desta forma, a sua precaridade, ambiguidade e polissemia, revelando, de forma original, o potencial imaginário da imagem ou a imparável projecção imaginária da imagem, suscitando, naquele que vê, momentos imprevisíveis, enigmáticos, não lineares, pouco vinculativos, muito incompletos e subtilmente dramáticos. Ou seja, o que vemos é resultado de uma organização visual que assinala diferentes entradas significantes. “Pois há uma regra e uma excepção. Cultura é a regra e a Arte a excepção” (Jean-Luc Godard, Je Vous Salue Sarajevo). Pedro Gomes denuncia o jogo da Cultura (visual), fazendo Arte.
Pedro Faro
Lisboa, Rua Augusta, Maio de 2011