AFFINIS
A arte talvez seja, afinal, uma resposta incerta - e incessante - à pergunta de Leibniz: “Por que existe alguma coisa em vez do nada?” Do nada ao tudo que o nega, as artes fazem-se umas contra as outras, umas pelas outras, umas com as outras.
Na obra de Maria Helena Vieira da Silva, há uma tensão trémula entre o que lá está e o que lá não está, o que fica e o que foge, o que é e o que não é. Se, às vezes, isso é conflito, confronto, discórdia, disputa, batalha e guerra, outras vezes, é abertura, negociação, diálogo, armistício, aliança, pacto, perseguição, passagem e ponte.
«Há um lado arquitecto na Vieira. Urbanista, mesmo», notava Arpad Szenes *1. E o arquitecto Bernard Zehrfuss, que é, com Marcel Breuer e Pier Luigi Nervi, autor da Sede da Unesco em Paris, afirmou: «A obra de Vieira da Silva sempre me fascinou por causa das suas relações com a arquitectura: construção de cada desenho e de cada quadro organizada segundo um traçado regulador adquirido, sem dúvida, por um conhecimento instintivo da geometria, noção de um espaço sempre aberto, definição de estruturas, volumes sugeridos por combinações de linhas sustentadas por uma imaginação incessantemente criadora de formas. […] Que sonho para um arquitecto: construir uma obra tão dinâmica e audaciosa como esta!» *2
O historiador de arte e crítico do London Sunday Times e do New York Times, John Russell, escreveu: «A pintura de Vieira da Silva é sobre o espaço ordenado, funcional, medido e dominado, revelando-nos vários géneros de recordações […]. A referência literal não faz parte do estilo da artista. Mas, mesmo assim, podemos aperceber os altos muros e as grandiosas fachadas de pedra das casas, […] e, aqui e ali, uma janela profunda […].» *3
Também disso se pode falar quando falamos de Pedro Gomes. Há nele uma vontade de dar à cidade a altura de uma representação, a largura de uma repetição, a fundura de uma reedificação. Há nele um desejo de levar a arquitectura a fazer o seu caminho ao contrário: não o desenho antes, mas o desenho depois. Há nele um intuito de conter o espaço no fragmento que o configura. Há nele um propósito de conferir estrutura e armação, eixo e estirpe às imagens, às imaginações e às materializações delas.
Há nele um fito de entregar três dimensões ao que habitualmente tem duas (em Vieira também há esse objectivo). Há nele uma decisão de trazer até estes dias anémicos do século XXI aqueles dias anímicos que, nos primeiros anos do século XX, deram aos muitos “ismos” de então aquilo que neles foi maquete, máquina, mecano, maquinismo, maquinação, mecanização, motor, tornando-os agora, não uma visão do futuro, mas uma re-visão, uma retro-versão do passado.
Falando desse tempo cheio de tumulto, transtorno e transmutação, Fernando Cabral Martins afirma: «No entanto, quer Pessoa, quer Almada, quer o Sá Carneiro final sentem a paixão da Vanguarda pelas coisas contemporâneas, pela vida das cidades e pela acção. Esta paixão não tem condições e não é redutível. A totalidade exterior-interior é a única aposta, não há refúgios, o recomeço é absoluto e a direcção única.» *4
Tudo isso é, na obra de Pedro Gomes, alvo e aura, vestígio, vigor verdade. Mas se ele não esquece o que Kafka disse: «A nossa arte é sermos cegados pela verdade», lembra também o que Nietzsche havia dito: «A arte existe para a verdade não nos segar”.
Esta exposição, que apresenta duas instalações de desenhos em acrílico sobre papel com grafite, faz-se sobre o fio fino e forte que liga a obra de Pedro Gomes à de Vieira da Silva. Ao olharmos as obras de um e de outro, vemos, naquilo que as afasta, aquilo que as aproxima, como em dois rostos diferentes reconhecemos aquele ar de família que os associa, lhes dá circulação e os faz comunicar entre si.
É a essa telepatia visual que chamamos afinidade, palavra que vem do latim affinis, significando ‘vizinho, contíguo, amigo de’. Eu acredito nas palavras e acredito nas imagens - e não ponho hostilidade ou aversão entre elas. Por isso as levo a esse encontro no qual umas concedem às outras o que as desafia e decide, reflecte e acrescenta, complementa e completa.
Em biologia e em zoologia, diz-se que uma espécie é affinis de outra (sp. aff.) quando não lhe é idêntica, mas se relaciona com ela. Disso se trata nestas duas obras – nestas duas espécies de espaços, assim diria George Perec (Espèces d’espaces).
Como já se notou: «O que Perec nos mostra é que não há um espaço, um belo espaço em torno de nós, uno, indubitável e evidente, mas sim pequenos espaços, pequenos pedaços de espaços. E é a esses espaços que Perec se refere, espaços multiplicados, divididos e diversificados. // O interesse pelo espaço vem justamente desse carácter impreciso e fragmentado. O espaço passa a ser foco do romancista quando perde o seu carácter próprio, quando ele deixa de ser evidência e se torna um problema.» *5
Um dos grandes desenhos de Pedro Gomes, o negro, é de 2008 e tem o título Finisterra (do latim finis terrae, com finis, donde veio affinis) e estas coincidências fazem sobrepor uma etimologia (e uma semiologia) das palavras a uma etiologia (e uma iconologia) das imagens.
No Sem Título da grande obra branca, que é de 2018 e se compõe de oito desenhos, eu consigo ler um Incipit, um Primum Terrae. A folha branca de Mallarmé, esse poeta do espaço puro, é sempre uma terra à espera de pegadas e de perigos.
O que liga Vieira da Silva e Pedro Gomes não é apenas aquilo que vêem. É também o modo como vêem o que vêem. Para um e para outro, negando o a priori kantiano, o espaço não é um dado. Para ambos, o espaço é aquilo que os faz autores – ficção cheia de figuras (ficção vem do verbo latino fingere, de onde também derivam efígie e figura), texto carregado de palavras, folha branca manchada de sinais, forma plena de fundos, não-lugar preenchido de lugares, silêncio ocupado de barulhos.
A diferença de tempos - e daquilo que o tempo faz e desfaz - entre as obras de Vieira e Pedro Gomes diz-nos que, hoje, o mundo é menos denso e menos tenso do que ontem. No tempo de Vieira, as indignações eram altas como lanças, as revoltas firmes como gritos, as roturas reiteradas como rituais, as cidades imaginadas como imagens, os desejos abertos como gárgulas. E as artes eram mais próximas dos ofícios dos deuses. Neste tempo digital, a que, por excesso de optimismo, chamamos nosso, a arte é uma fábrica de processos e de produtos, de portfólios e de promoções.
Os gregos diziam a palavra tekné, de onde vem técnica, para dizer arte e para dizer ciência. Eu repito com eles: tekné diz a ciência com que se faz a arte e diz a arte com que se faz a ciência.
Em Arte e Artistas, Almada Negreiros afirmou: «Olhamos já para a Renascença, onde estaremos bem entre tanta e tanta espécie de artistas e os maiores da nossa Europa. Entre todos estes artistas descobrimos imediatamente uma palavra que é rijamente disputada entre eles, a palavra architettore. Recorda-nos a nossa palavra actual arquitecto da profissão de construir edifícios. Efectivamente, na Renascença, os architettores também são construtores de edifícios. Mas, ser architettore na Renascença era a maior ambição de todo o artista porque era a profissão que resumia todas as outras e lhes distribuía as respectivas tarefas. Basta esta disputa, basta esta ambição para se ver que todos os ambiciosos disputadores da palavra arquitector dispunham de grandes conhecimentos enciclopédicos, os quais ainda estavam esmerados pela tremenda e gigantesca concorrência entre os maiores de todos. // Assim é que os maiores arquitectores da segunda Renascença, bastam-nos aqui os quatro maiores: Bramante, Rafael, Peruzzi e Miguel Ângelo, e isto sem contar com os da Grande Renascença, eram todos pintores e os maiores pintores entre os maiores. E a pintura era para eles apenas a sua disciplina. Isto é, a ciência com a qual conheciam as outras ciências para conjugá-las a todas». Concluía Almada: «E para terminar esta nossa viagem falta-nos apenas saber donde vem a palavra arquitecto. Vem do grego: archos, quer dizer chefe; tekton quer dizer operário». E perguntava: «Mas onde está a ligação da palavra latina Arte com a palavra grega architekton? Vai agora: Não será Arte uma palavra feita com a primeira sílaba de cada uma das duas palavras que formam a palavra architekton? Ar de archos e te de tekton? Se não é, ainda ninguém disse que não o era, pela simples razão de que ninguém o propôs até hoje, que fosse desta maneira que dizemos, agora, aqui, pela primeira vez. // //Ligadas que ficam estas duas palavras Arte e architekton…».
Na obra de Pedro Gomes, estas palavras também estão ligadas. E há outras que aí se ligam: a técnica (tekné) e a estética (aisthésis) são o verso e o reverso da moeda onde o seu valor se grava. Ele sabe que, quando uma falta, falha a outra. A técnica é, para o artista, a rede lançada ao mar fundo e forte dos sentidos (sensoriais, filosóficos, sóficos).
Nesta obra, não há um fim que possa ser alcançado por vários meios. Aqui, o fim é o desfecho do seu meio e o meio é a prefiguração do seu fim. Aqui, quando a técnica muda, muda a estética, porque a técnica (ou uma parte dela) mostra-se e a estética (ou uma parte dela) esconde-se.
Olhamos e as cores são o outro olhar do nosso olhar. O Mário Cesariny observava, com a sua voz voraz o seu olhar-clarão, que, para a Maria Helena, o branco era a cor do luto. Quando a mãe morreu, em 1964, quando o marido morreu, em 1986, as suas pinturas encheram-se de um branco cor de fantasma vivo. Nessas pinturas, as luzes lisas dançam com as sombras secas para as afugentar - e esse bailado de tons é atravessado pela imensa e intensa presença da ausência.
Um antigo costume e um alto privilégio reservavam às rainhas o luto branco. Nesta genial pintora, havia a grande marca de uma realeza restituída ao reino do olhar. Ela aceitava essa restituição com a modesta majestade de quem cumpre um destino não escolhido, mas herdado – submetendo-se a uma lei e sujeitando-se a uma linhagem. Era isso que lhe dava ao porte uma solenidade sinuosa e lhe punha nos olhos uma febre fria.
Estas obras de Pedro Gomes têm o branco e o negro de uma mudança do olhar. O antropólogo e historiador das cores Michel Pastoureau lembra, em Le petit livre des couleurs, que, se «podemos descrever o mundo sem usar as outras cores, a inversa não é verdadeira: não podemos dispensar o negro e o branco para descrever o mundo em cores.» Mas lembra que, noutros tempos, o branco não foi o contrário do negro: o vermelho era o oposto do branco e também do preto, como ainda acontece no Oriente.
Diz Pastoureau do branco: «Esta cor é sem dúvida a mais antiga, a mais fiel, aquela que transporta desde sempre os símbolos mais fortes, os mais universais, e que nos fala do essencial: a vida, a morte e talvez também - é essa a razão por que lhe queremos tanto? - um pouco da nossa inocência perdida».
E sobre o negro: «Ao princípio era o negro, a noite, a imensa noite das origens». E narra: «Durante muito tempo, no Ocidente, o negro foi considerado como uma cor completa e mesmo como um pólo forte em todos os sistemas de cor. Mas a sua história muda no princípio da época moderna: a invenção da tipografia, a difusão da imagem gravada e a Reforma protestante deram-lhe, como ao branco, um estatuto particular. Algumas décadas mais tarde, com a descoberta do spectrum, Newton pôs em cena uma nova ordem de cores, no seio das quais não havia doravante lugar nem para o negro, nem para o branco: durante quase três séculos, deixaram de ser cores. Contudo, no decurso do século XX, primeiro a arte, depois a sociedade, a ciência por fim, devolveram ao negro o seu estatuto de verdadeira cor». E comenta: «Esta cor é para pegar com pinças como o carvão, mas ela não é tão uniforme, nem tão desesperada, nem tão negra, em suma, como queremos acreditar. A prova: se ela está ainda nos carros funerários e se esconde nas últimas sacristias, veste também a moda. Doravante, a elegância é em negro».
E acerca da relação entre as duas cores: «Com o branco, seu cúmplice, o negro construiu-nos um imaginário à parte, uma representação do mundo veiculada pela fotografia e pelo cinema, por vezes mais verídica do que a descrita pelas cores. O universo do negro e do branco, que se cria relegado para o passado, está sempre aí, profundamente ancorado nos nossos sonhos e talvez na nossa maneira de pensar». Eu penso que o branco é o negro sem voz e o negro é o branco sem vertigem.
Pedro Gomes sabe entregar ao seu verbo visual um princípio sagrado. Vejam como este texto de São João lê a obra dele: «A luz resplandece nas trevas e as trevas não a compreenderam. Não era ele a luz, mas veio para dar testemunho da luz».
Para a arte, é preciso que as trevas não compreendam a luz. É nesse desacerto que acontece o acontecimento da arte, tornando-se signo dele. É nesse desencontro que o longo atraso se torna rápido avanço. Por isso, é da luz, mesmo quando ela é negra, que esta obra dá testemunho. Por isso, é a luz, mesmo quando ela se esconde na matéria, que esta obra mostra. Por isso, é à treva, mesmo quando ela é branca, que esta obra se dirige.
Do que eu mais gosto na arte de Pedro Gomes é da exactidão da sua recusa. É com essa recusa e o rigor dela que ele corta o que está a mais porque está a menos. É com essa recusa e a sua precisão que ele traz até nós o resultado dela. É com essa recusa, que é uma rasura - do doce, do ameno, do suave, do melífluo, do mavioso -, que ele dá ao que faz aquele corte cerrado de metal e aquele andar certo dos ponteiros sobre o mostrador seco do relógio do espaço-tempo. Esta obra prossegue o antigo frente-a-frente da arte com a arquitectura. Essa é uma árvore genealógica cujos ramos passam, entre muitos outros, por Leonardo e Poussin, por Dürer e Piranesi, por Mantegna e Magritte, por Seurat e Matisse, por Tintoretto e De Chirico, por Guardi e Pissarro, por Vermeer e Van Gogh, por Fra Angelico e Amadeo, por Pannini e Canaletto, por Piero della Francesca e Grosz, por Bernini e Signac, por Claude Lorrain e Hopper, por Monet e Escher, por John Soane e Hockney, pelos renascentistas e pelos barrocos, pelos neo-clássicos e pelos impressionistas, pelos vedutistas e pelos futuristas, pelos românticos e pelos surrealistas.
No seu tão medido e, ao mesmo tempo, tão desmedido ensaio O Cérebro Negro de Piranesi (ela cita Victor Hugo), Marguerite Yourcenar escreve: «Muitos pintores de génio foram, também, arquitectos; muito poucos pensaram unicamente em termos de arquitectura na sua obra pintada, desenhada ou gravada.» E fala sobre a obra Antiguidades Romanas: «Quase se pode dizer que os materiais, nas Antiguidades, se exprimem enquanto meros materiais: a imagem da ruína não desencadeia em Piranesi uma amplificação sobre a grandeza e a decadência dos impérios e a instabilidade das coisas humanas, mas uma meditação sobre a duração das coisas ou o seu lento desgaste, sobre a opaca identidade do bloco prosseguindo no interior do monumento a sua longa existência de pedra. […] O edifício basta-se; é ao mesmo tempo o drama e o cenário do drama, o lugar de um diálogo entre a vontade humana ainda inscrita naquelas enormes alvenarias, a inerte energia mineral e o Tempo irrevogável».
A propósito da obra Prisões Imaginárias, Yourcenar adverte e avisa: «Se estas Prisões, durante tanto tempo relativamente desprezadas, atraem agora a atenção do público moderno, não será talvez apenas, como disse Aldous Huxley, porque esta obra-prima de contraponto arquitectural prefigura certas concepções da arte abstracta, mas sobretudo porque este mundo artificial, e no entanto sinistramente real, claustrofóbico, e no entanto megalómano, não deixa de nos recordar aquele em que a humanidade moderna se encerra cada vez mais e de que começamos a identificar os perigos mortais». Talvez as obras desta exposição estejam menos distantes das obras de Piranesi do que o século das primeiras está longe do século das segundas.
Converso com o Pedro e ele, com aquele riso risonho que passa a riso sem riso para voltar a ser um riso quase risonho, diz-me o que da arte pode ser dito pelo artista. Fala do seu trabalho e das técnicas dele com a convicção e a inocência (e a alegria delas) em que Almada via o troco que a vida nos deve restituir do preço que lhe pagamos por a termos. Ou o que devemos aprender a reaver dela.
O atelier deste artista não tem a encenação dos espaços à espera de vez. Entra-se e vemos que coincide consigo-mesmo e com ele. Tudo ali tem uma finalidade e não lhe basta bastar-se. Naquele seu bairro, onde todas as ameaças já são, ao mesmo tempo, míticas e monótonas, o artista entra e fecha a porta para começar a sua arte. No princípio, está o silêncio que vê. E isso já é o verbo do início.
Os materiais que usa (ele estudou escultura, desenho e arquitectura em Lisboa e em Londres) descobrem a sua matéria e a materialidade dela como num túnel olhamos o movimento parado das paredes até chegarmos à saída. Ou como na forma pressentida de um osso que entrega ao corpo a que outro corpo se entrega a notícia fugidia, fulgurante e funesta de um outro mundo sob esse mundo outro.Os desenhos de Pedro Gomes têm um fio-de-prumo e uma réguade nível. Às vezes, mostram também um metrónomo. Há neles uma notação, um ritmo e um movimento musical que marca os compassos do espaço, as cadências do olhar, as linhas melódicas do desenho, as harmonias surdas das cores, os contrapontos dos tons. Há nisto um outro encontro - um encontro musical – da obra de Pedro Gomes com a obra de Vieira da Silva. Talvez (e só este talvez abre a possibilidade de fazer uma comparação impossível) a obra dela seja Debussy e Ravel. Talvez a obra dele seja Ligeti ou John Adams.
Já Cesário Verde, esse grande poeta da cidade como lugar-comum, tinha escrito naquela língua que era só dele e é tão nossa: «E eu sigo, como as linhas de uma pauta/ A dupla correnteza augusta das fachadas; / Pois sobem, no silêncio, infaustas e trinadas, / As notas pastoris de uma longínqua flauta».
Cesário interseccionava assim a arquitectura com a música, os olhos com os ouvidos, os silêncios com os sons. Por isso, Pessoa o admirou tanto. Por isso, Bernardo Soares no Livro do Desassossego, diz: «Vivo uma era anterior àquela em que vivo; gozo de sentir-me coevo de Cesário Verde, e tenho em mim, não outros versos como os dele, mas a substância igual à dos versos que foram dele. Por ali arrasto, até haver noite, uma sensação de vida parecida com a dessas ruas. De dia elas são cheias de um bulício que não quer dizer nada; de noite são cheias de uma falta de bulício que não quer dizer nada. Eu de dia sou nulo, e de noite sou eu. Não há diferença entre mim e as ruas para o lado da Alfândega, salvo elas serem ruas e eu ser alma, o que pode ser que nada valha ante o que é a essência das coisas. Há um destino igual, porque é abstracto, para os homens e para as coisas – uma designação igualmente indiferente na álgebra do mistério.» Eu leio estas linhas e vejo melhor o branco e o negro dos grandes painéis de Pedro Gomes.
Esta exposição, que tem o nome de Urbe, nas suas continuidades e nas suas arestas, nas suas linhas e nos seus ângulos, nas suas superfícies e nos seus volumes lisos, fala da cidade que resiste e se impõe, dando-se, como espelho, aos espectros que a atravessam e transfiguram.
A cidade é o rosto de uma vida inventada contra a vida dada (tekné também quer dizer passagem do natural ao artificial). Ela é a estação meteorológica que regista as tempestades e as abertas do mundo. E também os avanços e recuos, a separação e a promiscuidade, as faltas e as acumulações, a estagnação e a alteração.
A cidade como obra de arte e a obra de arte como cidade erguem uma correspondência feita de simetrias desiguais. E propõem uma fusão de temas que são mitos urbanos (no seu sentido erudito e popular, literal e metafórico), figurando a nossa época, ao mesmo tempo que pronunciam aquelas palavras que dão ao tempo uma voz cheia de ecos e de ocos: inovação, criatividade, concorrência, competitividade, coesão, regulação, diferenciação, mobilidade, oportunidade, recomposição, sustentabilidade, permutabilidade, porosidade, proximidade, polarização, intermodalidade, acessibilidade, atractividade, aglomeração, desertificação, mixidade, periurbano, suburbano, turistificação, metropolização, metapolização.
Tais palavras são santos e senhas dos vazios e das ocupações, das derrotas e das desforras, de que as cidades se fazem. Arquitectos, urbanistas, escritores, filósofos, utopistas, geógrafos e teóricos, como Charles Fourier ou Robert Owen, Ildefons Cerdà ou Patrick Geddes, Ebenezer Howard ou Camillo Sitte, Walter Benjamin (a ideia de aprender a perder-se numa cidade é um achado…) ou Le Corbusier, Jane Jacobs ou Henri Lefebvre, Paul Goodman ou Kevin A. Lynch, Aldo Rossi ou Siza Vieira, Christopher Alexander ou Nuno Portas, Rem Koolhaas ou Jean Nouvel, François Ascher ou Richard Florida, David Harvey ou Alain Bourdin, foram escutando ou construindo as perguntas que põem as cidades no seu centro semântico, dando-lhes respostas que tacteiam o braille do futuro.
Os edifícios de Pedro Gomes são alçados físicos (Vitrúvio), patafísicos (Alfred Jarry) e metafísicos (Kant e Heidegger). Corre sobre eles um vento parado. Há neles uma aridez que comove e que move. É por isso que esta é uma arte sentimental feita ao contrário. Ou é uma arte contra-sentimental feita a direito.
Uma vez, que o tempo guardou melhor do que se guarda a si-mesmo, fui ao encontro de Maria Helena Vieira da Silva, que estava no hotel onde a haviam hospedado.
Foi nos dias em que a sua estação do Metropolitano de Lisboa estava a fazer-se. Ela ia lá e fitava as paredes onde os painéis de azulejos com as vieirografias (é disso que se trata) criadas pela sua mão se fixavam. Aí, mandou gravar duas inscrições. Uma de Sócrates: «Não sou nem ateniense, nem grego, mas sim um cidadão do mundo». E outra de Cesário Verde: «Se eu não morresse, nunca! E eternamente / Buscasse e conseguisse a perfeição das cousas!» Assim está dito e no que aí se diz está o tudo do nosso nada.
Esse dia em que fui ter com a Vieira pertencia a um tempo da nossa história recente com um gosto cheio de pês (pretensioso, provinciano, patético), marcado pelo estilo de quem foi ocupando lugares onde mostrava que não tinha grandeza, nem vontade de a ter, nem vergonha de a não ter.
Em nome desse gosto cheio de pês puseram a grande pintora num hotel cheio de agás: horrível, hediondo, hodierno, hostil, histérico, histriónico, hiperbólico, hipertenso, hipertrofiado, holográfico. “Acabadinho de inaugurar”, como lhe declaravam, com euforia e eufonia na voz veloz, aqueles pouco camonianos, mas muito cómicos anfitriões.
Maria Helena que, quando era ela a escolher, escolhia hotéis (o Tivoli, na Avenida da Liberdade) e restaurantes (o Avis, no Chiado) que tinham tempo e memória, como a memória do tempo em que ela era muito nova e vivia em Portugal, ali estava, naquele hotel cheio de agás, visivelmente varada - sem onde, nem quando, nem como, nem porquê. Ali estava, naquele lugar de ninguém: peixe fora do seu mar, águia desviada da sua montanha.
Nessa tarde, falámos muito. Eu ouvia as suas palavras metódicas e métricas, minuciosas e míticas. A certa altura, dissemos juntos, de cor, o poema dedicado por Fernando Pessoa a Gomes Leal, que lhe era um íman, e começa assim: «Sagra, sinistro, a alguns o astro baço/ /Seus três anéis irreversíveis são / A desgraça, a tristeza, a solidão/ /Oito luas fatais fitam no espaço…» Não é apenas um poema. É uma geometria sagrada e cosmonáutica. É uma rosa-dos-ventos da vida. É um salto que cai ao mais baixo abismo e sobe ao mais alto vértice. É um lenço de Verónica onde está desenhado a vermelho de sangue o rosto de tantos poetas portugueses!
Ao soletrar o poema, na sua claridade escura, Vieira suspendia-se e quase esquecia onde estava – para, logo a seguir, se voltar a lembrar de onde continuava a estar. E uma longa penumbra de cinza triste lhe cobria o rosto.
Quando veio esse momento, ela calou-se e ficou a olhar com olhos altos e abertos, parados como dois lagos de luz. O tempo passava, mas não passava o seu olhar. Então, com uma lentidão larga e longínqua, como se quisesse tocar aquelas paredes para ver se eram reais, ergueu o seu corpo e a elegância natural dele.
Era a hora em que as luzes se acendem para dizer que existem e que brilham. O passo dela, quase de dança, foi até à janela. Quando parou, olhou, através das enormes, imensas, exageradas vidraças, os novos edifícios construídos em frente e que tinham tantos agás como os do hotel onde estávamos. Olhou-os e foi como se ficasse cega.
Nesse momento, Maria Helena exclamou, com uma voz vibrada pela vertigem da vergonha: «São medonhos! São feíssimos! São um horror! São bichos de antes do dilúvio! Vão devorar toda a cidade. Não deixem que isso aconteça! Não deixem!» E virou as costas ao horror exterior para ficar de frente para o horror interior.
Eu desejava que, naquele momento da tarde em que o branco do dia se aproxima do negro para nele acender a noite, mas noutro lugar, a Maria Helena Vieira da Silva e o Pedro Gomes tivessem conversado sobre as cidades e sobre a cidade que representa a cidade do sol e da lua, terrestre, aérea e marítima. Às vezes, também cidade queimada pelo fogo de todos os infernos, como sabia o Cesariny.
Eu desejava que tivessem falado da vida e da arte que a significa, que a magnifica, que a mitifica e que a desmistifica. Maria Helena gostava de novos artistas que começam a olhar o mundo com olhos de ver - e o Pedro gosta de velhos artistas (antigos mestres, diria Thomas Bernhard) que olharam o mundo, fazendo desse olhar uma obra sem restos.
Essa conversa, que deveria ter acontecido e não aconteceu, acontece agora. Acontece na aproximação, na proximidade, no encontro das suas duas obras, que se dá no Museu da Fundação que Vieira da Silva quis criar cheia de uma alegria futura.
Com esta exposição, os desenhos de Pedro Gomes dão às pinturas de Vieira da Silva a certeza de um salto sóbrio no tempo. E, a nós, dão-nos eles a dúvida - a dádiva - de uma alucinação lúcida e lenta: como a de um álcool que nos sobe à cabeça, para aí pôr a rodar, mas ao contrário, as vagarosas, vigorosas e vingativas rodas do robô da rotina.
José Manuel dos Santos
Março 2018