A ÓTICA DO UTILIZADOR
Os desenhos que Pedro Gomes apresenta na sala principal da Appleton Square, em Lisboa, desenvolvidos especificamente para este local, operam uma reflexão em torno do nosso olhar e da sua relação com a natureza do espaço expositivo. Focado numa visão crítica do pensamento modernista, o artista indaga a ideia que subjaz ao formato da Galeria e problematiza a especificidade do modelo White Cube, questionando a maneira como se acolhe a obra e o modo como esta é usualmente perceptível.
Pedro Gomes exibe um grupo de 34 desenhos de grandes dimensões, que se articulam num todo, compondo um mosaico que ocupa três paredes. Esse mosaico cria um lugar de envolvência, que nos acolhe e embala o olhar por uma sequência de zonas diferentes. Apesar das imagens reforçarem a unidade do conjunto, cada folha acolhe uma especificidade que lhe é própria. Assim, diferindo na saturação das linhas inscritas e das manchas subtraídas, cada desenho inibe o seguimento dos contornos que lhes estão anexos e, deste modo, foge à leitura de uma continuidade imediata. Evitando propagar uma figura única que atravessa os vários suportes, dir-se-ia, então, que o artista privilegia uma lógica de familiaridade, onde cada elemento se reconhece no grupo, e cada elemento é, ao mesmo tempo, autónomo. Note-se que a subtileza desse processo passa pela vontade de repetir os princípios e não apenas os resultados.
Estes desenhos mostram-nos um conjunto de salas de exposição onde se tende a identificar vários tempos. Um tempo que se reporta à lógica de exibição que ordena as molduras na parede, sendo, por vezes, próximo do antigo ambiente de salão do século XIX; e um tempo que enquadra o espaço arquitectónico, onde se reconhecem os sistemas de compartimentação e funcionamento, como os elementos de segurança e a iluminação, mais próximo do momento actual.
Em cada desenho percebemos que as imagens são, por vezes, múltiplas. Cada imagem sugere um canto, uma esquina, uma passagem, ou a simples parede de um compartimento mas, nelas, a visão não é frontal, promovendo uma leitura de escorço que aprofunda a tridimensionalidade do espaço. A composição apresenta-nos, assim, uma sugestão perspéctica que, ocasionalmente, na sobreposição que se estabelece, alude à ideia de transparência. A sobreposição que gera a transparência satiriza o paradigma modernista da fluidez espacial, mas ela é, por vezes, também, apenas gráfica e bidimensional. Numa segunda sobreposição, Pedro Gomes aplica uma outra camada que funciona como padrão e detém um papel uniformizador. Deliberadamente contrariando a imagem e assumidamente perturbando a percepção do observador, este padrão age na proximidade do white noise, esbatendo a figura da base para planificar a experiência visual.
Na verdade, há um jogo de inscrição e rasura, de espacialização e planificação, de afastamento e compressão, que existe num registo dinâmico onde o próprio desenho está, frequentemente, mais próximo de uma lógica barroca e de uma ideia de pintura. Isto porque é numa articulação de camadas e sentidos, ou na forma como estas activamente se velam e destacam, que a obra se constrói.
Curiosamente, o conjunto adquire uma dimensão instalativa quando esse jogo, de natureza encantatória, trabalha a forma como a sala é ocupada. Os desenhos adoptam uma disposição simétrica e partem de uma linha central mas, aqueles que surgem numa posição de canto, reforçam a leitura da imagem dobrando-se no vértice da sala.
Nos desenhos de Pedro Gomes, qualquer simplicidade é aparente e subversiva. Na verdade, o artista promete uma visão caleidoscópica, que é também evolutiva, onde a organização da imagem baralha a percepção. A sobreposição, o foco e o desvanecimento que existe em cada folha, geram uma entidade que opera a vários níveis. Fazer e desfazer / inscrever e rasurar, é um procedimento que se reconhece no interior das molduras desenhadas, na relação de proximidade entre essas molduras e as figuras que estas transportam, nos compartimentos que estas habitam e, por fim, no próprio espaço que o artista ocupa.
A construção e desconstrução é uma acção que surge, meticulosamente, entre várias camadas. O registo não se resume à deposição da tinta sobre o suporte (com diferentes tons de branco) ou ao simples desenho das linhas reportando-se, também, ao sulcar, despelar e rasgar do próprio papel, que revela o corpo da obra. Dir-se-ia que a par de uma acção projectual, que dita uma construção programada e faseada de cada folha, há também lugar para uma intervenção guiada pelo momento, onde o que se subtrai adopta um outro tipo de controle. Mas, em todos os casos, esta é uma relação física e conceptual que indaga a imagem, a natureza do desenho, e o modo de pensar e comunicar (n)o espaço.
Nos conhecidos escritos “Inside the White Cube – The Ideology of the Galley Space”, Brian O’Doherty fala-nos da falsa neutralidade da sala de exposições. O tradicional recinto branco, que é hoje tido como um estereótipo da galeria, ou mesmo, na sua vertente institucional, como o modelo da sala do museu, tem um dimensão teatralizada que é fruto do pensamento moderno. A sua asséptica organização encena uma disposição que aproxima as obras de uma leitura sacralizada. Uma dimensão cénica onde a distância que se gera não é inocente, sendo sim uma afinada estratégia que recorta a suposta dignificação daquilo que é exposto. Curiosamente, segundo o mesmo autor, se no século XIX era o recorte da moldura que permitia o limite da obra de arte, hoje é a configuração do espaço expositivo que tende a encenar, enquadrar e confinar o lugar do objecto artístico. Assim se explica a ocupação saturada das paredes dos salões de fim-de-século e, assim, se percebe que a teatralização do espaço branco, na sua aparente limpeza e distanciamento, não é, de todo, inócua.
O trabalho que Pedro Gomes desenvolve, questiona este recorte. Quando o artista contradiz o espaço com uma lógica de compressão e densidade, que promete, ilude e desnorteia, ele abre caminho à dúvida e ao encantamento, questionando um modelo que é vigente, acomodado e que está, frequentemente, dado por adquirido. A experiência do ecrã saturado remete-nos para a multiplicidade do olhar e para a sobreposição de conteúdos que é, na verdade, um paradigma do tempo actual. Por isso, “A Óptica do Utilizador” é uma intervenção que se debruça sobre a natureza do acto de ver, onde mais do que gerir o afastamento com o olhar, que paira e não se fixa, quer-se a proximidade de um corpo. Um corpo que, visualmente, tateia o desenho e nele se confunde.
Sérgio Fazenda Rodrigues
Julho 2019