Os cadernos de Azertyuiop 2


 Amigos de Azertyuiop

 

NA HORA REDONDA

Tati Mancebo


 

 

 

 


Hai um corpo que cria

ambições passadas,

que fai cortes no tempo

com que se satisfazer

depois de os ter remendado

 

É necessário criar miséria

para viver do sorriso anterior

É necessário destruir espaços brancos

para criar presença

 

Como soa perto

a voz real na memória

não assim as histórias

sem voz

que de não poderem prender em mãos alheias

ficam

eternamente

mudas








Natureza morta


No trânsito do verde ao papel

olhar-te hei três vezes

a aranha descansa até as dez

e conta as patas para atrás

vermelha de crina tingida de lua

 

 

 

 

 

  

                                              Para F.

 

Da estação toda lembrança

pertence a um grito grave

na escada perderás a história do subtil

com meia lua de medo parto

e dor contida

e nas esquinas da via

os velhos contos rim a tua marcha







Gosto de olhar-me no espelho

porque me lembra que o tempo

não tem mãos

tem poutas

que esganam (a ti mesmo)

por mais que eu não o queira ver

 

 

 

 

 

 

Esta noite o sangue sabe a pele

baixo a pele do sangue

amanhã sonharei com rubis ágeis

de dor morna

e apracível

de ocaso

amanhã -dixeras- os rubis virarão pungentes

A sombra dos espelhos não protege

da loucura







A mão tem seis dedos no espelho

que são três na tua

Lentamente

de leões e morcegos crepitam

nas fontes as palavras

 

 

 

 

 

 

Tentação

 

Dás-me pássaros

e

dás-me balas

cerceadas por sangue de pássaro

a noite di-me que não


Traes melaço de onde

o monte parte noites

salgado de mar escuro

a noite di-me que não


Descobres em mim o leite

sangrado das terras baixas,

fugido à pressa da treva

a noite di-che que não

 

 

 

 

 

 

As VOZES acalam os rugidos

das vozes tortas

Janeiro é cruel

Na idade da cilada

quando nem um deus pode salvar-nos

guardamos seu sangue em garrafas

e nossa ira fica contida

por uma eternidade

A lua pola porta tira os antefazes

e as terras mergulhadas

viram pedras sem sal

mãos sem idade

A lousa inquebrantável

cai de contado.

 

 

 

 

 

 

As terras que mergulham no bafo das

minhas não contemplam

mãos; porém sus-

têm, incapazes da fugida,

a lousa que lhes tende a

idade inquebrantável

do aquilão, no seu trânsito eterno polo

Universo

 

 

 

 

 

 

Longe da lente

a lavandeira de louça

semelha lebrel

e a louça

lua de luto em língua de lança

 

 

 

 

 

 

Perseguir vozes com a boca aberta

Disparar aguardando o cair das presas

Caem olhos que não escoitam

Caem cristais que não soam

Cai o sentimento de ter matado em vão

de ter arrincado a outros o sustento

A sombra que envolve a luz

Disparar a uma bandada mais e mais pequena

..............................................

Enterra a minha com as outras bocas

Envenenada polo mesmo veneno

Pola mesma presa errada

Enfeitada da expressão convulsa

De ter roçado a palavra

 

 

 

 

 

 

Transcorrem horas verdes

onde se desatam as cinzas do vento

e as casas que deixamos

jogam ao póker

Não sufras por elas

estão onde têm de estar

sós

no fundo escuro dos espelhos

 

 

 

 

 

 

No que sim e ademais

canta

onde são tão que já

difundem noite e cruzes

tanto têm

o que tardam invernos

e os de rostos frios

por último cristal.

 

 

 

 

 

 

Ao mencer destrui a seiva

da néboa

que se propaga com malícia

por mãos e pernas de gigante

aos sons da lua

na hora redonda

 

 

 

 

 

Gravura: Alberto Esperante 

 

A composição e primeira
impressão deste livro foram
concluídas na Corunha
em 25 de Abril de 1995
na Oficina do Médium, para
Os Cadernos de Azertyuiop.

2ªEdição. Fevereiro de 1998.