Script da performance apresentada na Biblioteca Escolar aquando da celebração da Revolução dos Cravos 2008
Portugal
Eu sou Portugal. Sou um homem.
«País à beira mar plantado». Rectângulo incerto numa ponta da Europa. Voltado para o mar. Sou descendente de grandes nomes. Viriato, Afonso Henriques, Vasco da Gama.
Perfilhei Salazar, filho obediente. Durante meio século, escondi dos outros meus filhos o mar, porque nele se encetam voos e sonhos que não me convinha realizar.
Fiquei com os cofres cheiinhos de ouro. Meu filho queria para mim riqueza. Que importava estar sós no mundo? Estávamos orgulhosamente sós – dizia ele. Os portugueses tinham o que precisavam - Deus, Pátria, Família. E sobretudo alguém que sabia o que era melhor para eles.
Eu sabia que alguns olhavam para o mar e até sonhavam. Mas logo tratei de lhes indicar o bom caminho. Para que precisavam de sonhos?
«Não hei-de morrer sem saber a cor da liberdade»
Liberdade
Eu sou a Liberdade.
Sou uma mulher. Não tenho rosto. Sou o rosto dos homens. Caminho no pensamento dos que me amam e no coração dos poetas, dos artistas, do homem e da mulher simples, do adolescente, do jovem, do velho perdido nos seus socalcos. Ando descalça, cabelos em desalinho, braços estendidos e mãos abertas. Nunca me sinto só. Colho almas e vidas, ideias e filosofias, gemino ciência e modernidade. Sou uma lança que aponta o futuro.
Todos me querem. Fizeram-me estátuas, deram o meu nome a ruas. Mas, na verdade, uns desejam-me mais do que outros.
Sou poesia, música, romance interdito, filme proibido, pensamento atrevido.
Sou doce e terna. Eterna. E de todos os tempos. E de todos os espaços.
Quando alguns, na História, tentaram agrilhoar-me, nunca o conseguiram. Podem prender corpos, colocá-los em celas, gradeá-los. E eu continuo igual a mim mesma. Descalça e doce vagueando pelas artérias, rumo ao coração.
Moro em todos os lugares. Também moro em Portugal. Sou maltratada por ele. Com a sua virilidade inebria todos para que não me reconheçam. Mas há quem me ame nesse lugar inóspito, nesse deserto de ideias. Há quem me leve em silêncio e comigo se deite enroscado numa noite de estrelas, luzes, vozes, cânticos…Aqueles que me proclamam são castigados e esse castigo é feito exemplo para todos os que pensam amar-me.
«Falta cumprir-se Portugal»
Poeta
Pergunto ao vento que passa
notícias do meu país
e o vento cala a desgraça
o vento nada me diz.
Pergunto aos rios que levam
tanto sonho à flor das águas
e os rios não me sossegam
levam sonhos deixam mágoas.
Levam sonhos deixam mágoas
ai rios do meu país
minha pátria à flor das águas
para onde vais? Ninguém diz.
E a noite cresce por dentro
dos homens do meu país.
Peço notícias ao vento
e o vento nada me diz.
Mas há sempre uma candeia
dentro da própria desgraça
há sempre alguém que semeia
canções no vento que passa.
Mesmo na noite mais triste
em tempo de servidão
há sempre alguém que resiste
há sempre alguém que diz não.
Mãe
Levaram-na…Vieram na calada da noite e ao romper da aurora, levaram-na…Amanhece o dia, amanhece a esperança, mas eles levaram a filha que criei. Dizem-me que ela anda com más companhias, que na fábrica se reúne com outros, que diz palavras perigosas. Tantas vezes lhe perguntei o que fazia. Temia uma filha ladra, uma filha assassina. Logo me apaziguou. Falou-me de coisas novas que eu não entendia, mas aquele brilho no olhar dizia-me, a mim, sua mãe, que minha filha sonhava.
Levaram-na…Levaram-na como se de um monstro se tratasse…E a minha filha tem palavras belas e doces ... Os meus sonhos não são quimeras impossíveis dizia-me ela. Sonhava com a liberdade, sonhava com o povo culto e sem fome, sonhava com um país onde os homens pudessem dizer o que sentiam e pensavam, sonhava com um Portugal com cheiro a cravo.
Levaram-na…Caxias, Tarrafal, Peniche…Fortes que aprisionam os corpos, mas não prendem as almas.
Quando fui vê-la, o seu corpo estava minguado, as mãos atracadas ao peito, mas no olhar o mesmo verde da esperança «Não me tiraram tudo, mãe».
Estou cansada.
Vou descalça, junto todos os tostões para lhe levar pão e fruta. À passagem do calabouço, atiro-lhe um tostão para que saiba que estou a chegar. Não me deixaram vê-la…Estremeci «mataram-na». Implorei, roguei, rezei. Só queria ver minha filha amada. Estes monstros que proclamam a família, ridicularizam o meu sofrimento. Arre, monstros, almas vendidas… A minha filha vale mais que vós. Creio em Jesus libertador. O meu Deus, o Deus do povo, o Deus do amor, o Deus homem que na cruz padeceu a morte não é esse Deus que vós proclamais e dizeis que amais sobre todas as coisas. Deus é misericórdia, mas a vós castigar-vos-á pelos cristos que na terra fazeis…
Quando me via desesperada e chorosa chegava-se a mim e dizia palavras de poetas. Parece-me ouvir a sua voz a entoar um poema que me ensinara …
NÃO PASSARÃO - MIGUEL TORGA
Não desesperes, Mãe!
O último triunfo é interdito
Aos heróis que o não são.
Lembra-te do teu grito:
Não passarão!
Não passarão!
Só mesmo se parasse o coração
Que te bate no peito.
Só mesmo se pudesse haver sentido
Entre o sangue vertido
E o sonho desfeito.
Só mesmo se a raiz
bebesse em lodo
De traição e de crime.
Só mesmo se não fosse o mundo todo
Que na tua tragédia se redime.
Não passarão!
Arde a seara, mas dum simples grão
Nasce o trigal de novo.
Morrem filhos e filhas da nação,
Não morre um povo!
Não passarão!
Seja qual for a fúria da agressão,
As forças que te querem jugular
Não poderão passar
Sobre a dor infinita desse não
Que a terra inteira ouviu
E repetiu:
Não passarão!
Portugal
Parece-me que me transformo…Sinto-me frágil, adoentado. Morreu meu filho, outro o substituiu. Com o dedo em riste, veio dizer-me que eu agora sou um estado novo. As searas remexem-se, dos campos os gritos intensificam-se. Atordoam-me… Tudo em mim pulula numa contradição que não compreendo. Que quer este povo? Então não se está bem assim? Os soldados segredam. Eu bem os vejo. Irra.
Eu quero sossego. Estou farto de partir em naus. Servir reis orgulhosos, infantes loucos em viagens sem fim, republicanos de boas intenções, ditadores que se dizem misericordiosos.
Eu sou Portugal.
Vestido de verde sou as florestas de Portugal e de vermelho represento o sangue dos que morreram pela independência da Nação.
Eu sou Portugal. Eu sou Portugal.
Velho, balofo, caduco? Cansado, sim, cansado. Tanta história, tantas vitórias, tanta grandiosidade… Deixei-me ficar no meu canto. Que me governassem! Ouço ao longe passos…Adivinho novidades.
(passos ténues)
Liberdade
Como és louco. Aprisionaram-te nessa governação. Convenceram-te que eras grandioso, humilde ao mesmo tempo, sério, honesto, convenceram-te que bastava estares quieto e que te vestiriam com essas cores. Florestas e mortos pela independência!?
Portugal
Passas a vida a desafiar-me. Seduzes-me. Às vezes até parece que estou apaixonado por ti. Quero-te e não te quero. Sei que se me entregar a ti corro riscos sérios. Tu és atrevida, volátil, doce, perfumada com cheiro a cravo…Eu nasci para dominar e tu és bem menina para me quereres dominar…
Liberdade
Nasceste para dominar? Acorda. Tu és dominado há meio século por esse filho e seus descendentes que tão bem acolheste.
Não temas. Eu sou liberdade-menina, liberdade-mulher, liberdade -mãe. Eu cuido dos que me querem, embalo-os. Mostras-te altivo, intransponível, mas sei que todas as lágrimas que se derramam são «lágrimas de Portugal». Sabes tão bem como eu que esse verde de que te vestes é o despertar da vida, é a esperança mansa que embebeda quem já sente que a perdeu. Esse vermelho é a paixão que nutres pelos teus filhos, é o fogo que dança na mudança que agora pressentes. Deixa as florestas e os heróis. Outros heróis estão para chegar, abraça-os…
Portugal
Ouves os passos?
(passos mais vigorosos)
Liberdade
Ouço. Há muito mais tempo do que tu. Estes passos duram há cinquenta anos. Eram ténues, é verdade, mas eu ouvia-os. Agora são muitos e estão próximos.
Portugal
Sabes ao que vêm?
Liberdade
Não tarda que saibas ao que vêm. Abraça-me.
Mãe
Filha amada! O teu sofrimento não foi em vão. Adivinham-se novos tempos, os tempos por ti sonhados. Ouvem-se passos. Neles ouvem-se os gritos abafados de homens e mulheres que desejaram um Portugal livre.
"Não Passarão
Arde a seara, mas dum
simples grão
Nasce o trigal de novo.
Morrem filhos e filhas da nação,
Não morre um povo!»
"Não tardes, que se faz tarde, Portugal!"
Uma voz
22h55m
24 de Abril de 1974
Emissores Associados de Lisboa
1ª senha:
Ordem de partida para a saída dos quartéis.
Canção
Quis saber quem sou
O que faço aqui
Quem me abandonou
De quem me esqueci
Perguntei por mim
Quis saber de nós
Mas o mar
Não me traz
Tua voz.
Em silêncio, amor
Em tristeza e fim
Eu te sinto, em flor
Eu te sofro, em
mim
Eu te lembro, assim
Partir é morrer
Como amar
É ganhar
E perder
Tu vieste em flor
Eu te desfolhei
Tu te deste em amor
Eu nada te dei
Em teu corpo, amor
Eu adormeci
Morri nele
E ao morrer
Renasci
E depois do amor
E depois de nós
O dizer adeus
O ficarmos sós
Teu lugar a mais
Tua ausência em mim
Tua paz
Que perdi
Minha dor que aprendi
De novo vieste em flor
Te desfolhei...
E depois do amor
E depois de nós
O adeus
O ficarmos sós
(passos fortes)
Outra voz
0h20m
Programa Limite, da Rádio Renascença,
Transmissão da canção "Grândola Vila Morena" de José Afonso
Confirmação do golpe
Início das operações.
Todos os intervenientes cantam (José Afonso)
Grândola, vila morena Dentro de ti, ó cidade Em cada esquina um amigo
|
Terra da fraternidade À sombra d’uma azinheira Grândola a tua vontade
|
Cravo
Eu sou o cravo. Fui fecundado do amor entre Portugal e a Liberdade, do gesto simples de florista. Sou dádiva a soldado que ruma em paz.
Sou vermelho como o sangue derramado na guerra colonial, vermelho como o sangue que circula nas veias dos homens. Vermelho como o fogo que dança na mudança.
Adormecido no ventre da minha mãe, pressentia que o meu pai, Portugal austero, não me queria deixar nascer.
Um filho bastardo impunha as suas leis e regras, exercia a autoridade de tal modo que Portugal vergava-se, sujeitava-se, vivia na penumbra de si e do mundo.
Nos campos, os ventos faziam dançar as sementeiras de um tempo novo, nas fábricas o som das máquinas abafava sussurros de esperança. Aqui e ali ecoavam vozes que sonhavam com a minha mãe. Minha mãe-Liberdade…
E no ventre da minha mãe eu era pronuncio… Sinal…
Hoje sou vida, sonho, liberdade, cantiga, Portugal renovado, alegria nos rostos dos homens, gargalhada das crianças, admiração no olhar dos velhos, festa nas mãos das mulheres…
Tenho orgulho deste povo, o povo da revolução dos cravos…
ABRIL …ABRIL… Abril Primavera de esplendor nascido. Abril porta da vida. Abril semeado, Abril arado, Abril da apanha da flor reinventada.
25, 2+5 igual a sete, número da perfeição, número da busca e da capacidade interior,
7 dias da Criação do Mundo,
os 7 Raios da Luz Sem Fim,
o “7º Céu”,
os 7 Arcanjos do Trono de Deus,
os 7 degraus da Escada de Jacob,
7 cores do Arco-Iris,
os 7 dias da semana,
as 7 notas musicais,
7 virtudes humanas,
os 7 pecados capitais…
Sete que foi vinte e cinco…
Cumprir-me-ei sempre que exista alguém que diga não.
Alguém diz (Sophia de Mello Breyner)
Porque os outros se mascaram mas tu não Joana
Porque os outros usam a virtude Ana Isabel
Para comprar o que não tem perdão. Inês
Porque os outros têm medo mas tu não. Sofia
Porque os outros são os túmulos caiados Joana
Onde germina calada a podridão. Joana
Porque os outros se calam mas tu não. Inês
Porque os outros se compram e se vendem Ana Isabel
E os seus gestos dão sempre dividendo. Ana Isabel
Porque os outros são hábeis mas tu não. Sofia
Porque os outros vão à sombra dos abrigos Inês
E tu vais de mãos dadas com os perigos. Inês
Porque os outros calculam mas tu não.. todas
Uma voz
Trinta e quatro anos volvidos,
tantas esperanças esmorecidas,
tantos sonhos jazidos,
tantos cravos esquecidos.
Trinta e quatro anos
Abril menino
Abril criança
Abril adolescente
Abril adulto
E tantas almas em luto
Tantos braços erguidos
À espera de mudança.
Os ideais foram ficando à porta.
Adormecido o menino!
Embevecidos, alimentamo-nos do teu seio
Buscamos rios nos teus festejos de solenidade
com gente mascarada que finge o teu valor
e jura que tudo faz em nome da nação.
Abril só em embrião.
E agiganta-se o receio
Adensa-se a saudade
E baixinho balbuciamos não.
Abril quinto império.
Abril traz abrilada
Rasga o céu com outra asa
Repõe nesta terra a verdade
Abril, Abril sem idade.
A memória é ténue e manhosa
Nada como te sepultar.
Inventaram para o meu país outros destinos
Abertura ao mundo
Obediência a outros valores.
As sevícias são outras
Economia e modernidade
Tecnologia
Globalização
Avanços da democracia
Empacotados em papel de ilusão
Sem lugar para a poesia.
E Abril, afinal, ainda em embrião.
Portugal continuas cansado.
Soergue-te deste jugo
O teu povo segue calado.
Portugal navegador de naus
De chão sem fundo.
Portugal tantas vezes adormecido
Com membros entorpecidos.
Portugal resgatado
Entregue ao desbarato.
Portugal de riqueza fingida
Estático num painel bordado.
Abril quinto império.
Este povo está doente.
Pensa e desiste
Sente e resiste
Age e está triste.
Abril Abril
Revolve as tuas águas
Entra na alma da minha gente
Mostra-lhe o caminho
Rumo à fraternidade
Apazigua-lhe as mágoas
Diz-lhe onde mora a LIBERDADE.
Dito por vários intervenientes (Ary dos Santos)
"Era uma vez um país
onde entre o mar e a guerra
vivia o mais infeliz
dos povos à beira-terra.
Onde entre vinhas
sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras
um povo se debruçava
como um vime de tristeza
sobre um rio onde mirava
a sua própria pobreza.
Ora passou-se porém
que dentro de um povo escravo
alguém que lhe queria bem
um dia plantou um cravo.
Era a semente da
esperança
feita de força e vontade
era ainda uma criança
mas já era a liberdade.
Era já uma promessa
era a força da razão
do coração à cabeça
da cabeça ao coração.
Quem o fez era soldado
homem novo capitão
mas também tinha a seu lado
muitos homens na prisão.
Posta a semente do
cravo
começou a floração
do capitão ao soldado
do soldado ao capitão.
Foi esta força sem
tiros
de antes quebrar que torcer
esta ausência de suspiros
esta fúria de viver
este mar de vozes livres
sempre a crescer a crescer
que das espingardas fez livros
para aprendermos a ler
que dos canhões fez enxadas
para lavrarmos a terra
e das balas disparadas
apenas o fim da guerra.
Foi esta força viril
De antes quebrar que torcer
Que em vinte e cinco de Abril
Fez Portugal renascer.
De tudo o que Abril abriu
ainda pouco se disse
um menino que sorriu
uma porta que se abrisse
um fruto que se expandiu
um pão que se repartisse
um capitão que seguiu
o que a história lhe predisse
e entre vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras
um povo que levantava
sobre um rio de pobreza
a bandeira em que ondulava
a sua própria grandeza!
De tudo o que Abril abriu
ainda pouco se disse
e só nos faltava agora
que este Abril não se cumprisse."