O curso de Ciências Sociais tem como objeto de estudo o ser humano em toda a sua complexidade, sendo a existência humana uma existência corporal. Daí que não se podem desprender das relações sociais as dinâmicas de inserção, influência e transformação do corpo humano. No Ocidente, com o advento da Modernidade, o corpo humano é pautado pela perspectiva individualista da posse do corpo.
E, nesta conjuntura, a medicina, assim como o pensamento racional positivo e laico, encarna todo o saber oficial sobre a existência humana, resultando em uma percepção de aumento de segurança, mesmo em um mundo inseguro. A modernidade também fortaleceu e democratizou a estratégia da imortalidade individual, com o aumento da expectativa de vida e com tecnologias que visam eliminar a natureza orgânica de nossa existência, a qual culmina na morte do corpo.
A constante polarização da sociedade privatiza tudo: corpo, vida, possibilidade de sobrevivência/viver mais e melhor. E a privatização da vida relaciona-se diretamente com o expurgo das doenças, dos doentes e dos velhos, ou seja, com o expurgo da tríade que encarna a mortalidade humana.
Para a Organização Mundial de Saúde (OMS), doença é ausência de saúde ou uma alteração do estado de equilíbrio do indivíduo com o meio ambiente. E saúde como um estado de completo bem-estar físico, mental e social. Dessa forma, o contexto social no qual o indivíduo está inserido é crucial no entendimento do que sejam saúde e doença. Pois, há um conjunto de fatores que não podem ser classificados como componentes genéticos ou agressores físicos, químicos e biológicos, e são estes:
Socioeconômicos – que apresentam a existência de uma associação inversa, que não é somente estatística, entre capacidade econômica e probabilidade de adquirir doença;
Políticos – instrumentação jurídico-legal; decisão política; participação consentida e valorização da cidadania; participação comunitária efetivamente exercida; transparência das ações e acesso à informação;
Culturais – preconceitos e hábitos culturais, crendices, comportamentos e valores, os quais contribuem para a difusão e manutenção das doenças;
Psicossociais – marginalidade, ausência de relações parentais estáveis, desconexão em relação à cultura de origem, falta de apoio no contexto social em que se vive, condições de trabalho extenuantes ou estressantes, promiscuidade, transtornos econômicos-sociais ou pessoais, falta de cuidados afetivos na infância, carência afetiva de ordem geral, competição desenfreada, agressividade vigente nos grandes centros urbanos e desemprego; e
Individuais – características gerais como idade e sexo, características familiares e étnicas e nível socioeconômico.
No âmbito da discussão acerca da relação corpo-saúde-doença-morte, a pandemia da Covid-19, além de toda a crise sanitária causada no mundo, tem provocado inúmeras reflexões e questionamentos quanto às diversidades das desigualdades existentes, as quais impedem a construção de uma sociedade justa e equitativa. Neste contexto de aprofundamento do fosso entre ricos e pobres, no Brasil, o número de pessoas desempregadas bate recorde e a educação pública ficou ainda mais precarizada, o que afeta de forma incisiva os grupos sociais mais vulnerabilizados: mulheres, crianças, jovens e negros/as.
As discussões quanto à Socioantropologia política do corpo, da saúde, da doença e da morte nos permitem entender que:
Há canalizadores políticos que promovem a banalização de mortes, as quais, depois da disponibilização de vacinas, no que se refere à pandemia da Covid-19, a partir de dezembro de 2020, se tornaram evitáveis;
A ingerência governamental da esfera federal amplificou as consequências desastrosas da Covid-19, que, no Brasil, gerou um excesso de mortalidade ou necropolítica, em um contexto de alta mortalidade causada por doenças crônicas não-transmissíveis, violência e acidente de trânsito;
A referida ingerência no combate à pandemia se assenta no poder e na capacidade de decidir quem pode viver e quem deve morrer;
Através desses canalizadores políticos, foi construída uma narrativa que focou na desarticulação e desacreditação da ciência e das recomendações de órgãos internacionais (OMS) e nacionais (FIOCRUZ e Instituto Butantan) da área de saúde, em um processo de construção de uma mentalidade coletiva sustentada em mentira e em informações falsas e/ou duvidosas, o que dificulta o combate à pandemia, como a recusa à vacina;
A necessidade de se destacar a diferença existente entre opinião pública (que reflete a influência do povo, que também é influenciado), informação (que caracteriza dados e elementos de sentido que podem ser verdadeiros, falsos ou duvidosos) e conhecimento (competência e controle cognitivo), já que opinião pública e informação não são conhecimento;
A pandemia da Covid-19 encontrou o Brasil, em um momento político crítico de um projeto ideológico que tenta impor a polarização política, com reforço aos extremismos, e que também tenta, diariamente, minar as estruturas democráticas do país, em explícitas tentativas de golpe político;
No Brasil, estamos vivenciando a rotinização da morte, que nos faz olhar para a morte com indiferença, seja através da conivência, seja da cooperação de uma parcela considerável da população, que não cumpre, de forma consciente e proposital, as medidas higiênicas e sanitárias necessárias para contenção da propagação do vírus. E isso sob a tutela de um governo federal que faz uso da mentira e do engano para promover o horror do morticínio evitável e o aprofundamento das disparidades sociais, econômicas, de saúde, educacionais, de gênero e de raça;
No Brasil, para além da pandemia da Covid-19, vivemos múltiplas epidemias que interagem entre si e se desenvolvem em condições de disparidades socioeconômicas, educacionais, de gênero, de raça e de saúde, já que as doenças e as desigualdades socioeconômicas e educacionais não existem isoladamente, as quais se agravam em um interminável ciclo vicioso, em que condições sociais adversas colocam os grupos socialmente mais vulnerabilizados em situação de maiores riscos de adoecimento e morte.
A pandemia da Covid-19 trouxe a urgência de debatermos estratégias voltadas para a atenção às condições sociais, políticas, econômicas, educacionais e culturais que tornam determinados grupos mais vulneráveis às doenças, como o acesso dos pobres à saúde, à educação, a saneamento básico e a uma alimentação adequada. Ou seja, trouxe a urgência imperiosa de elaboração de políticas e programas governamentais de combate às desigualdades sociais e realçou a ineficácia da ênfase da discussão da relação corpo-saúde-doença-morte, em soluções puramente biomédicas.