História, Cultura, Comunicação

Nêmesis(*)

Polícia Federal vai pra cima da mais nefasta quadrilha que já atuou no Brasil: Bolsonaro e personalidades diversas, civis e militares, todas com níveis variados de responsabilidade constitucional, conspiraram e agiram para fazer regredir o Brasil à condição de republiqueta de traficantes.
Acompanhe as principais matérias sobre a ação autorizada pelo STF e que pode agora levar suas lideranças à cadeia.

(*) Na mitologia grega, o castigo dos deuses contra a prepotência, a arrogância e a presunção do poder sem limites


Cenas monstruosas protagonizadas por gente da pior espécie, com e sem farda.

O Brasil precisa escorraçar essa turma do convívio social e político...

Se tiver estômago, assista a versão integral. Se não tiver, acesse a análise de Mônica Bergamo (Folha) sobre os principais trechos da gravação que pode selar o destino de Bolsonaro e de seus comparsas

Tempus Veritatis

Notícias: G1: # Podcast: a trama golpista # Vídeo é a prova de toda a conspiração # O que as investigações revelam # PF encontra na sede do PL documento com justificativa para o Estado de Sítio # Bolsonaro pediu ajustes na minuta golpista, que previa prisões de Moraes e Gilmar # Em reunião gravada, Bolsonaro pediu disseminação de fake news # Heleno fala em "virada da mesa" antes das eleiçõesCarta Capital: # Como eram divididas as funções no núcleo bolsonarista que tramava o golpe. Intercept: # A casa de Bolsonaro vai cair # O que se sabe sobre a arquitetura do golpe de Bolsonaro. Uol: # Mourão continua conspirando e deputados acionam PGR e STF contra ele. Estadão: # Mourão recua, mas continua protegendo golpistas # PF fecha cerco a Bolsonaro e ainda apura elo do ex-presidente com o 8/1 # Neto do ditador João Figueiredo (aquele que disse preferir cheiro de cavalo a cheiro de povo) está envolvido na conspiração de Bolsonaro.

Análises: # Ana Clara Costa (piauí): Como Valdemar Costa Neto conspirou contra as eleições # Sérgio Lirio (Carta Capital): Chegou a hora dos mandantes? # Kotscho (Uol): Vídeo é bala de prata contra Bolsonaro # Torres Freire (Folha):  PF conta parte do golpe, mas falta mostrar muito mais # Reinaldo (Uol): Já há elementos para a prisão  de Bolsonaro # Brígido (Uol): Por que  Bolsonaro não foi preso até agora? # Glauco Faria (Outras Palavras): 1. O golpe desmascarado. 2. O caminho que leva Bolsonaro à prisão # Gaspari (Folha): # O golpinho de Jair Bolsonaro # Rafael Mafei (piauí): Bolsonaro nas entranhas do golpe # Leonardo Rodrigues (Nexo): 10 chaves para entender a operação sobre a trama do golpe.

Nem o ombudsman consegue explicar o que a Folha pensa expandir

O golpe, versão do diretor
Por José Henrique Mariante

Imprensa deveria ser literal sobre o delicado momento institucional do país

O mundo não vai acabar em três anos, assegurou a Folha na última semana, diante de postagem em rede social fora de contexto, como tantas, que viralizou por sugerir um prazo exíguo para o juízo final. As razões do jornal para o esforço de esclarecimento, ainda que sob certo risco de ridicularização, são nobres e explicadas em nota ao fim desta coluna. Por enquanto e para a análise a seguir, é suficiente constatar que o noticiário destes tempos se obriga a ser tão literal quanto o possível, pois a audiência em geral não consegue mais raciocinar. Ou não quer.

Foi preciso explicar que havia um golpe em gestação no ano eleitoral de 2022. Que o então presidente Jair Bolsonaro e aliados disseminavam um discurso fantasioso de fraude nas urnas eletrônicas e conspiração para tirá-lo do poder. Na verdade, sabia-se antes e reitera-se agora, quem conspirava era o próprio, com a ajuda de ministros civis e militares, assessores, palavrões e português ruim. A três meses do primeiro turno, um dos generais brada que a hora de dar soco na mesa ou virá-la era antes do pleito. Assim aparece no vídeo da reunião, aquela que não estava sendo gravada, garantiu Bolsonaro aos presentes.

Um mês depois, parte da elite brasileira, esta Folha inclusa, ainda que não tenha se lançado nominalmente em campanha, mas pela extensa cobertura, manifestou grande preocupação com o cheiro de queimado que exalava de Brasília. No Largo São Francisco, a sociedade civil desenhou para Bolsonaro e para sua claque golpista que a Constituição tem mais do que quatro linhas.

O período eleitoral foi conturbado, e o espectro golpista se materializou no 8 de Janeiro. As instituições funcionaram, mas a que custo, insinuam as últimas revelações, ainda é uma história a apurar.

A cobertura da imprensa é intensa. Pela primeira vez, um repórter do Jornal Nacional repete o "cagão" usado por outro general para se referir a um terceiro em rede nacional. Os editoriais dos grandes jornais abdicam do vernáculo bolsonarista e, em comum, acendem alertas para a atuação heterodoxa de Alexandre de Moraes. O Estado de S.Paulo lembra a traumática experiência da Lava Jato. A Folha, que levou dois dias para opinar sobre o tema, escreveu que a acusação cabe à Procuradoria. O Globo disse tudo isso também, mas deu título e peso ao que primeiro interessa: em uma democracia, a acusação mais grave é a de golpe de Estado. Se é preciso ser literal, então é isso.

Ninguém duvida do caráter disfuncional do país. O inquérito que nunca acaba na mão do ministro do STF é um grande complicador, assim como a constatação de que, entre golpistas e legalistas, não deveria haver tropa tolerante. Ocorre que tudo isso deriva de um cada vez mais evidente movimento de subversão, algo absolutamente inédito para as gerações que não viveram ou não se lembram de 1964 ou do período da ditadura. Não é corriqueiro acordar com a notícia de militares sendo presos ou manchetes sobre golpe, tramas e conspirações. O momento é delicado, e os jornais, que tanto se preocupam em ser literais para um público malhado por notícias falsas, não deveriam se conter na descrição do que está acontecendo.

É um equívoco limitar o debate a qualquer dos aspectos do problema ou entendê-lo como uma disputa partidária. É um erro minimizar os atos de Bolsonaro pelo aparente improviso. Escapamos por pouco de uma turma de malucos, deveríamos estar discutindo como desestimular os próximos.

IT’S THE END OF THE WORLD

"Mundo não vai acabar em 3 anos, ao contrário do que diz post com fala de drag queen fora de contexto." Sim, a Folha publicou esse título na semana passada. Uma influenciadora discutia a crise climática em videocast e, em determinado ponto, disse que o mundo fracassaria se o curso da história não fosse alterado. A fala cortada viralizou a ponto deste jornal achar necessário explicar que o planeta ainda tem muita lenha para queimar.

Em crítica interna, o ombudsman observou que o enunciado, um dos mais sensacionais na história centenária da Folha, ganharia algum senso crítico com um toque de humor, algo como "Não, o mundo não vai acabar em 3 anos...".

Luisa Alcantara e Silva, jornalista que representa a Folha no Comprova, consórcio de veículos de imprensa que combate fake news, não recomenda a estratégia. "Temos que ser literais ao contradizer uma notícia falsa para afastar a chance de reforçá-la. Quem acreditou na postagem pode entender o humor como menosprezo", afirma. "Pode soar inusitado, mas há crenças de todo tipo, Terra plana, Lula votou em Bolsonaro. Que o mundo vai acabar é só mais uma."

O jornalismo fica cada vez mais travado. Conforme as instruções da Luisa, então: armaram, tentaram e vão tentar de novo o golpe se não formos literais em sua condenação.

A comunicação no governo Lula

Não há empenho, do PT ou do Governo, em suplementar o carisma de Lula por uma comunicação que vá aos afetos das pessoas

Renato Janine Ribeiro, A Terra é redonda (expandir)

Duas proposições principais: 1ª, Lula é um comunicador extraordinário. FHC também o foi, como presidente, mas com diferenças importantes. FHC falava em prosa, Lula em epopeia. Uma vez, perguntei a FHC como ele via a questão, e ele me disse que era mais racional, Lula apelava mais aos sentimentos. E engatou: racional no sentido bem rasteiro, senso comum. Não foi uma resposta vaidosa. Enfim, Lula conseguiu se comunicar com toda a população, incluindo os mais pobres, enquanto FHC falava mais com a classe média e alta.

As famosas metáforas: a jabuticabeira, a mãe. Nos dois casos, ele pede para esperar. Lembra que as primeiras jabuticabas não virão antes de sete anos, que o bebê vai levar um ou dois para andar e falar. Mas deixou claro em Porto Alegre, janeiro de 2003, que faria tudo o que prometeu, só que não de imediato. A metáfora da mãe foi interpretada, por ignorância ou má fé, como se ele estivesse colocando como Pai da Nação. O paternalismo do governante, sim, infantiliza os cidadãos.

Bem, Lula usava a imagem de mãe, não de pai. Mas ele também não se punha como mãe da nação; ele se comparava às mães, se igualava a elas, assumia o papel de quem sabe que a criança demora a andar e a falar. Tomava a mais democrática das experiências, a da maternidade, aquela que com frequência as mais pobres exercem com mais amor e competência do que as ricas, como modelo.

2ª, o PT não gosta das redes sociais. Nem mesmo Lula gosta delas. Estive numa live dele com ex-ministros da Educação, por volta de 2017 (eu acho). E, quando eu disse que podiam fazer recortes de 30 segundos de falas dele e jogar nas redes, e dei o exemplo de uma vez em que ele disse que era muito fácil beneficiar os pobres, pouco custoso em termos de dinheiro, isso daria um ótimo vídeo, Lula respondeu contando quando foi ao Acre e, com Chico Mendes, seguiu de carro por quatro horas até uma cidade do interior, para falar do PT. E não havia ninguém lá para falar com eles.

O que eu entendi: que não há solução fácil para esclarecer as pessoas, para fazer política. Meme e dancinha não substituem o olho no olho, o esforço de quem rala nas estradas, nos morros. Beleza.

Beleza, sim – mas será verdade ainda? Quão verdade ainda é? Em 2008, a propósito de uma revolta na Moldova, que explodiu após postagens do Twitter criticando a fraude eleitoral – e que derrubou o governo –, eu comentei que os 140 caracteres só tiveram esse poder porque todo mundo lá já estava convencido da fraude. O tweet foi apenas a fagulha de pólvora, a iskra, que pôs fogo em tudo. Ou seja: você não constrói uma consciência política com posts, em especial os curtos, os efeitistas, os que parecem de linguagem publicitária, as lacrações. (Aliás, entendo que lacração = você perdeu no atacado, fica feliz com um bon mot no varejo).

Mas, então, o que fazer?

Lembro a campanha de Fernando Haddad para a reeleição como prefeito de SP, em 2016. Um cenário péssimo, Dilma Rousseff destituída, Lava Jato mirando Lula para abatê-lo. Perdeu. Mas, durante a campanha, perguntei a amigos onde estavam as realizações da Prefeitura. Finalmente, recebi um vídeo curto, com 10 principais feitos. O primeiro eram lâmpadas LED em praças da periferia. Achei sem noção.

E de fato o PT perde de goleada no uso das redes sociais. Nas quais, por sinal, quem deita e rola é a extrema direita. Esta percebeu a possibilidade enorme da mentira, e dela faz uso e abuso. Reconheço que a esquerda tem mais compromisso com a verdade (ou acredita tê-lo), mas o fato é que instrumentos incríveis de comunicação, que curto-circuitam as empresas de mídia, têm sido ignorados pelos setores progressistas. Não sei se é por um espirito iluminista.

André Janones é a exceção que confirma a regra até porque não era nem é do PT, quis concorrer a presidente, e finalmente apoiou Lula. Ele usa as redes de maneira escancarada. Alguns até dizem que o faz sem pudor. Mas por que a esquerda não faz isso?

Quando faz, como em algumas postagens recentes do PT ou do próprio governo, faz menos bem do que a extrema direita. Resta, ao PT, descobrir e assumir as novas formas de comunicação. Fico na dúvida se ele não sabe ou não quer saber como são, porque há muito petista, sobretudo entre os jovens, mas não apenas, que as conhecem; talvez a cúpula do partido desconfie delas.

Finalmente, hoje, toda a comunicação do governo repousa nos ombros de Lula. Assim como a articulação política, aliás, uma vez que os responsáveis por ela, no governo, não têm tido êxito – por exemplo, quando vão conversar com o presidente da Câmara, Arthur Lira. É peso demais. Como Lula, por alguma razão que não entendo, parece ter priorizado a agenda internacional, e terceirizado em certa medida a política doméstica para os quadros principais do governo (em especial, os do PT – ministros palacianos e Fernando Haddad), ficou nas mãos destes últimos tocarem a principal agenda do País, que é, exatamente, a política interna. Ora, com exceção de Fernando Haddad, que tem mostrado grande habilidade na condução da política econômica, não vemos sucesso nesse jogo. Tem dado uma espécie de empate – nem a vergonha da derrota, nem o fulgor da vitória.

Em suma, tudo está – perigosamente – nas mãos de Lula, dele apenas. Uma comunicação melhor – e que não pode copiar aquela em que ele é um ás – ajudaria as coisas. Não seria a comunicação intensamente pessoal que o Presidente utiliza. Mas não vejo empenho, do PT ou do Governo, em suplementar o carisma de Lula por uma comunicação que vá aos afetos das pessoas, disputando com um afeto democrático o afeto autoritário que historicamente funcionou tanto no Brasil, e continua municiando a extrema direita.

*Renato Janine Ribeiro é professor titular aposentado de filosofia na USP e ex-Ministro da Educação. Autor, entre outros livros, de Afeto autoritário – televisão, ética e democracia (Ateliê editorial)


Uma frase pinçada basta para o desmascaramento público

E o militante moral demonstra ter mais virtudes até do que o presidente Lula

Wilson Gomes, Folha (expandir)

Militar politicamente consiste principalmente em distribuir punições por falhas morais, em açoitar pecadores. Assim, viramos todos lobos de alguma alcateia, mesmo quando nos cremos únicos, singulares, de cabeça aberta e independentes.

A transformação digital da política há de ter um papel nisso. Os vários ambientes sociais digitais assemelham-se a um enorme e sortido supermercado de causas, agendas, doutrinas, ideologias e sentimentos de ultraje e indignação dos quais cada um se serve conforme seus interesses. A consequência disso foi um notável aumento no número de pessoas envolvidas em política nos últimos dez anos, assim como uma forma associativa que tende a formar grupos com afinidades muito estreitas, que recompensam pela reação mais imediata, mais indignada e mais radical. Em um ativismo em que há mais fúria do que substância, o resultado é fragmentação, sectarização e radicalismo em uma intensidade sem precedentes.

O que nos move às expedições punitivas são, invariavelmente, os princípios, mas também cálculos de recompensas psíquicas. Aqueles mais fervorosos nas causas, ideologias e nos seus princípios são frequentemente os mais dedicados a uma busca obsessiva por erros, pecados e deslizes alheios. Punir os transgressores torna-se uma forma consistente de valorizar nossa posição no grupo e reforçar nossa autoestima. Identificar e punir as falhas dos outros é uma maneira de demonstrar, tanto para os outros quanto para nós mesmos, como somos virtuosos e moralmente superiores.

Essa obsessão não poupa ninguém, nem mesmo líderes tribais como o velho Lula. Na última semana, jornais, revistas, sites de notícias e, sobretudo, suas vitrines nas redes sociais estamparam manchetes que, em essências e com poucas variações, diziam que Lula havia declarado a uma jovem negra que afrodescendentes gostam de batuque. No momento em que, no universo da informação política, título é tudo e conteúdo é quase nada —porque quase ninguém lê o que está depois do link e quando o faz a sua leitura é completamente dominada pelo título e pela ilustração—, Lula praticamente teria enviado a moça de volta para a África do século 16. Absurdo!

Identificado o pecado, pune-se o pecador: bolsonaristas e identitários convergiram nisso. Os primeiros, porque essa categoria de fala de Lula serve perfeitamente à estratégia deles de mostrar que Lula é racista, machista, misógino e transfóbico, porém que ninguém fala nada porque Lula é Lula, mas se fosse com Bolsonaro... Já os identitários atacam porque, claro, todo pecado precisa ser castigado.

O elemento sempre intrigante nessas punições é que os fatos não importam. Lula há de ter muitos defeitos, e certamente disse e fez muitas coisas cujas explicações são ainda devidas, mas acusá-lo de racismo? Francamente! Mesmo assim, a jovem envolvida poderia ter se sentido ofendida. Foi isso o que aconteceu? Jornalistas que se deram ao trabalho de investigar ouviram dela que não apenas não se sentiu ofendida, mas, ao contrário, ficou muito satisfeita. Enfim, pode-se sempre alegar que Lula não é racista, mas a frase era. Pode acontecer, mas é o caso?

Lula começa se dirigindo às "meninas e meninos" dizendo que "precisam se qualificar para enfrentar esse mundo maluco da inteligência artificial". Depois, volta-se à garota, toma-a pelo braço com gentileza e a apresenta ao público: "Essa menina bonita que tá aqui, eu tava me perguntando, o que faz essa moça sentada, que eu não ouvi ninguém falar o nome dela, eu falei ‘ela é cantora, ela vai cantar’. Aí perguntei. ‘Não, não vai ter música’. ‘Então ela vai batucar alguma coisa? Porque uma afrodescendente assim gosta de um batuque, de um tambor’. ‘Também não’. Eu falei ‘Nossa, então ela é namorada de alguém’. ‘Também não é’. O que que é essa moça? Essa moça foi premiada como a mais importante aprendiz dessa empresa e ganhou um prêmio na Alemanha". E continua: "É isso o que nós queremos fazer com as pessoas neste país. Nós anunciamos esta semana uma política para o ensino médio". O que tem de racismo nisso? Não vi.

O texto integral está lá, em todos os jornais e vídeos, mas as pessoas ficam nas chamadas. Para que ir ao conteúdo? No título há tudo de que precisamos para faturar no mercado de virtudes. Uma frase pinçada basta para o ritual de desmascaramento público. Dessa forma, o militante moral ganhou o dia. Afinal, ao repudiar o ato, ele demonstra, de maneira inequívoca, que possui mais virtudes até do que o presidente Lula. Saciado, o ego repousa, feliz e enorme.

O gênio da conspiração

Peter Thiel foi apresentado ao público que veio ouvir sua conferência na Universidade de Oxford como “um dos pensadores mais reflexivos do nosso tempo”. O filósofo inglês John Gray, que chamou ao púlpito o empresário alemão (nacionalizado norte-americano), exaltou seu livro de 1995, The diversity myth: multiculturalism and political intolerance on Campus (o mito da diversidade: multiculturalismo e intolerância política no câmpus), como uma avaliação “profética” do estado do debate intelectual nas universidades (Jerônimo Teixeira, piauí: continue a leitura).

Cofundador do PayPal, primeiro grande investidor do Facebook, presidente da Palantir Technologies – empresa de big data que tem os governos dos Estados Unidos e do Reino Unido entre seus clientes –, apóstolo de um futuro no qual a tecnologia nos oferecerá a imortalidade, doador da campanha eleitoral de Donald Trump em 2016: nenhuma das credenciais que fizeram de Thiel um herói para muita gente e um dissidente do Vale do Silício foi mencionada.

A revista The new statesman publicou recentemente uma transcrição editada da conversa entre Gray e Thiel que se seguiu à conferência. A íntegra do evento, realizado em outubro do ano passado, está disponível no YouTube. A palestra fez parte das Roger Scruton Memorial Lectures, ciclo de conferências que homenageia o filósofo inglês morto em 2020. Nem Thiel nem Gray citaram a obra do homenageado – aliás, sequer mencionaram seu nome. Scruton decerto teria simpatia pela crítica de Thiel ao novo progressismo identitário, mas duvido que o autor de Como ser um conservador aceitasse a proposta de que essa crítica seja feita de uma inusitada perspectiva marxista-libertária.

Meu interesse pelo evento em Oxford foi despertado sobretudo pela participação de John Gray, um fino ensaísta que muito admiro – e que tive o prazer de entrevistar para a falecida revista Época. Há vários descompassos entre o pensamento muitas vezes controverso porém sempre rigoroso do ex-professor de Pensamento Europeu da London School of Economics e as elucubrações meio delirantes mas atravessadas por lances de fulgurante lucidez do ex-sócio de Elon Musk no PayPal. Na consideração do progresso científico e tecnológico, por exemplo, os dois têm concepções antagônicas. Para minha decepção, Gray conduziu a conversa pela monótona planície das opiniões que compartilha com o conferencista. É uma ironia que, depois de muitas críticas de Thiel ao establishment universitário, tenha se visto mais um morno “debate” acadêmico entre pessoas que pensam (ou que fingem pensar) da mesma forma.  

Assisti ao vídeo da conferência para saber o que Gray teria a dizer sobre o libertário que financiou Mark Zuckerberg. Mas acabei fascinado pela retórica tortuosa do próprio Thiel – não tanto por seus acertos, que são consideráveis, mas sobretudo pela intrigante suscetibilidade de um homem com currículo tão notável à sedução do gênio enganador da política contemporânea: o pensamento conspiratório.

A conferência começa por uma ligeira autocrítica. Thiel avalia que o livro elogiado por Gray, The diversity myth (escrito em parceria com David Sacks, seu colega no PayPal), envelheceu mal. A obra ampara-se na experiência que os autores tiveram como alunos da Universidade de Stanford, na virada da década de 1980 para 1990. A controvérsia dava-se então entre conservadores que defendiam as leituras básicas do currículo de humanidades e progressistas que reclamavam da predominância de “homens brancos mortos” entre os autores recomendados. Thiel hoje diz que a energia que devotou a essas guerras culturais foi mal empregada. E o mesmo valeria para as discussões atuais sobre o difuso conglomerado de conceitos e doutrinas identitárias que vem dominando boa parte da esquerda – um universo ideológico que, em inglês, costuma ser designado pela palavra woke (acordado, atento). Thiel acredita que debates nessa área nos distraem dos problemas que realmente importam. “Distração” é a palavra-chave da conferência.

É então que ele propõe a aliança entre dois inimigos declarados: marxismo e libertarianismo. O argumento é mais razoável do que parece à primeira vista. Cada uma a seu modo, essas duas ideologias devotam-se a questões materiais, com ênfase forte em problemas econômicos que o progressismo woke negligencia. Em uma especulação histórica provocativa, Thiel propõe que expoentes do marxismo da primeira metade do século XX, como Lênin e Rosa Luxemburgo, não reconheceriam a pertinência das pautas identitárias para a revolução. Fica a sugestão de que o novo progressismo está a serviço das classes dominantes – e aqui Thiel está em consonância com o pop star do marxismo contemporâneo: o filósofo esloveno Slavoj Zizek também vem falando de um “capitalismo woke”. 

Na opinião de Thiel, um problema recente do capitalismo com o qual ninguém quer se confrontar é a explosão dos preços da propriedade imobiliária, sobretudo em grandes metrópoles como Londres e Nova York. Aluguéis inviáveis em centros que concentram os melhores empregos são especialmente duros para as classes baixas e para jovens que estão se iniciando na carreira profissional. A imigração, debate central para a Europa hoje, também é impactada por esse problema. “Eu provavelmente seria a favor da imigração sem restrições se pudéssemos construir mais moradias”, diz Thiel, para então ironizar: “Acho que Elon [Musk] vai chegar a Marte antes que isso aconteça no Reino Unido.”

Distorções do mercado imobiliário provavelmente não figuram entre as preocupações típicas de bilionários da área de tecnologia, e é bom ouvir Thiel – cuja fortuna a Forbes estima em torno de 6 bilhões de dólares – soando o alarme sobre o tema. Esse importante recado perde-se, no entanto, nas tentativas de relacioná-lo à fixação da nova esquerda com identidades étnicas e sexuais (incidentalmente, Thiel é homossexual).

Muitos críticos do identitarismo dizem que discussões sobre temas como microagressão e apropriação cultural desviam a esquerda das questões de classe que lhe eram próprias. Yascha Mounk, cientista político da Universidade Johns Hopkins, reforça esse argumento no excelente The identity trap: a story of ideas and power in our time (A armadilha identitária: uma história de ideias e poder em nosso tempo, ainda sem edição no Brasil), lançado em 2023. Mas Thiel afunda um argumento relevante em terreno pantanoso. Ao longo de sua conferência, fica sempre a sugestão de que não é por acaso que estamos reivindicando a necessidade de banheiros para pessoas não binárias no lugar de moradia para a população de baixa renda: o woke, ele diz, seria um instrumento deliberadamente projetado pelo establishment esquerdista para nos distrair. No limite, seria virtualmente a causa da relativa estagnação econômica do século XXI.  

Isso fica especialmente claro quando Thiel localiza nos anos 1970 o momento em que a desigualdade entre ricos e pobres começou a se ampliar drasticamente. Na mesma época, diz ele, a esquerda já se afastava do marxismo clássico em direção ao “marxismo cultural”, conceito muito enredado em teorias conspiratórias da alt-right. Thiel não é bobo e sabe bem a diferença entre correlação e causação. Ele toma o cuidado de esclarecer que não está afirmando que existe relação de causa e efeito entre a emergência do ideário woke e a especulação imobiliária desenfreada – o que é uma forma malandra de sugerir que a relação pode muito bem existir.

“Você não precisa ir até o fundo na teoria da conspiração”, diz Thiel a certa altura. Mas ele desce fundo no buraco conspiratório quando começa a falar de ciência e tecnologia.

Peter Thiel mostrou seu iPhone para o jornalista que o entrevistava. “Eu não considero que isto aqui seja uma revolução tecnológica”, declarou. O jornalista era George Packer, que incluiu um fascinante perfil do cocriador do PayPal em Desagregação: por dentro de uma nova América. Publicado em 2013, o livro é um amplo painel do abalo que a crise dos subprimes causou nos fundamentos do capitalismo norte-americano. Foi nessa crise que Thiel conheceu o fracasso. O Clarium Capital, fundo de investimentos criado por ele, acumulava um montante de 7 bilhões de dólares às vésperas da quebra do banco Lehman Brothers, em 2008. Em 2011, esse capital estava reduzido a 350 milhões, dois terços dos quais pertenciam ao próprio Thiel.

Packer diz que essa derrota fez de Thiel um pessimista. Desde então, ele começou a questionar o que a tecnologia de fato nos oferece. Pois não se cumpriram as promessas de avanços milagrosos na medicina e de viagens espaciais que o empresário, hoje com 56 anos, encontrou nos livros de ficção científica que lia na infância e na adolescência. Internet, redes sociais, smartphones – todo o progresso se deu no plano binário dos bits. No mundo físico em que vivemos, nossos carros ainda não voam e nossos corpos ainda são torturados pela doença e pelo envelhecimento.

Em Oxford, no ano passado, Thiel pintou um quadro ainda mais desolador. Ciência e tecnologia, diz ele, estão estagnadas. Áreas como a pesquisa sobre o câncer, na medicina, e a teoria das cordas, na física, entraram em becos sem saída. E de novo o progressismo woke serve para nos distrair da realidade infeliz: segundo Thiel, os administradores das universidades preferem que as controvérsias se concentrem em temas hoje caros aos departamentos de humanidades, como identidade e diversidade, pois assim o grande público não percebe que os departamentos de ciências também foram corrompidos. Sim, corrompidos: a pesquisa científica tornou-se uma área fraudulenta, cujos profissionais vivem de replicar incessantemente as experiências que uns poucos pesquisadores originais ainda fazem. De quebra, para ele, o establishment científico reforça uma série de tabus: não se pode questionar, por exemplo, a Teoria da Evolução ou… a vacinação!

A ciência estagnou mesmo? Tomemos a pesquisa do câncer. Nas primeiras páginas do recente A canção da célula: as descobertas da medicina e o novo humano, um deslumbrante relato da pesquisa sobre biologia celular dos pioneiros do microscópio no século XVII à era do sequenciamento genético, o médico e pesquisador indiano Siddhartha Mukherjee apresenta ao leitor leigo (meu caso) terapias inovadoras de reprogramação genética. Ele narra dois casos exemplares em que esses novos recursos foram empregados: uma menina que sofria de um tipo raro de leucemia e um homem com uma variedade muito agressiva de câncer de pele. Os resultados foram díspares. A criança foi salva pelo novo tratamento; o adulto morreu. No capítulo devotado especificamente ao câncer, Mukherjee, que é oncologista, divide-se entre a esperança e o desalento. Há novas descobertas e promessas de tratamentos mais eficientes, mas resta ainda muito a descobrir sobre os mecanismos moleculares que tornam as células cancerosas tão letais.

A ciência não parou no tempo. Ela apenas não corre tão rápido quanto Thiel espera. Pois o bilionário, que já financiou pesquisas sobre o prolongamento da vida, cultiva expectativas irrealistas: seu horizonte é a imortalidade. Confinity, o antecessor do PayPal criado por Thiel, foi a primeira empresa do mundo a oferecer criogenia no pacote de benefícios oferecido aos funcionários. Packer diz que Thiel vê “a inevitabilidade da morte como uma ideologia, não como um fato”.

Na conversa com Gray, Thiel tratou da antiga ambição humana de prolongar a vida. Mencionou o cosmismo, uma corrente do bolchevismo que nos anos 1920 anunciava um futuro no qual a ciência comunista ressuscitaria os mortos (Thiel não deu sinais de conhecer A busca da imortalidade, livro em que Gray examinou essa ambição messiânica da revolução russa – e Gray, elegante, não citou a própria obra). O bilionário ainda criticou certa “versão derrotista da ciência” que aponta para as limitações humanas, para “as coisas que você não é capaz de fazer”. A arrogância bilionária toma a avaliação objetiva da realidade por derrotismo.

Em obras como Cachorros de palha: reflexões sobre humanos e outros animais e O silêncio dos animais: sobre o progresso e outros mitos modernos, Gray vem examinando as ilusões de progresso ilimitado cultivadas pelo liberalismo (liberalismo aqui no sentido histórico amplo: uma corrente de pensamento que nos legou democracia, tolerância à diferença e direitos individuais, entre outros valores – e não apenas livre mercado). O filósofo sempre se opôs à ideia de que a ciência destina-se a redimir ou salvar a humanidade. É uma pena que sua interação com Thiel tenha se pautado pela deferência, sem espaço para a contestação.

Desdenhado por Thiel na entrevista a Packer, o iPhone reapareceu na conversa com o filósofo inglês. Os habitantes de Londres e Nova York, diz Thiel, passam o dia imersos na telinha da Apple e por isso não atentam para a obsolescência de suas cidades, cujas linhas de metrô foram escavadas há mais de um século. Eu me pergunto se tal ânsia futurista por uma paisagem urbana sem resquícios do passado não daria um bom companheiro de armas para o ímpeto militante de expurgar “homens brancos mortos” dos currículos universitários. 

Deus e as questões existenciais correlatas constituem, de acordo com Thiel, um terceiro campo de inquirição do qual a estridência woke estaria nos “distraindo”. Embora a noção de que o progressismo identitário seja uma forma de hipercristianismo sem Deus me pareça instigante, essa passagem da conferência é bastante desarticulada, e não vou me demorar nela.

Creio que o componente conspiratório do pensamento de Peter Thiel já está bem demonstrado. Quando falamos de teóricos da conspiração, imaginamos o incel de inteligência limítrofe que passa suas noites solitárias em discussões online sobre o globalismo e a derrocada da civilização judaico-cristã ocidental. Thiel não cabe nesse estereótipo vulgar: é um homem culto, dono de uma mente inquieta, que tem a desenvoltura de atacar consensos e lugares comuns, ainda que ao custo de sacrificar a racionalidade que julga defender.

Ao que parece, nas eleições do ano que vem, Thiel não voltará a apoiar Trump, que a esta altura já está virtualmente consagrado como o candidato republicano à Presidência dos Estados Unidos. Ainda que se afaste da política, Thiel segue o mesmo guerreiro cultural que editava um jornal conservador em Stanford. Embora ele se permita a heresia de convocar Marx para criticar os excessos  do identitarismo, ele segue vendo o mundo a partir da oposição maniqueísta entre direita e esquerda. Em Oxford, dedicou-se até a uma questão que se tornou o equivalente pós-moderno da lendária especulação dos teólogos de Bizâncio sobre o número de anjos que podem dançar na cabeça de um alfinete: qual foi o pior totalitarismo do século XX, comunismo ou fascismo? Previsivelmente, sua resposta foi “comunismo”.

O conspiracionismo tornou-se um elemento inextricável da linguagem política de nossos dias polarizados. E isso é verdade também no campo ao qual Thiel se opõe: quando se dedicam a denunciar a opressão estrutural oculta nos mais comezinhos aspectos do cotidiano, os identitários de rede social rapidamente alcançam paroxismos paranoicos.

O gênio da conspiração é uma entidade insidiosa, que nos oferece a falsa dádiva de uma explicação unificada para as mais brutais injustiças do mundo. Também nos convence de que somos especiais, pois desvendamos intrincadas relações ali onde nosso vizinho só vê eventuais coincidências entre fatos díspares. Aos cinco anos, Thiel já sabia desenhar o mapa-múndi de memória. Na vida adulta, sempre demonstrou perspicácia e ousadia em apostas de risco: uma ferramenta para fazer pagamentos pela internet com segurança, uma rede social criada por um rapaz de 19 anos em Harvard. Mas às vezes nem a inteligência resiste ao gênio conspiratório.

Jerônimo Teixeira

É jornalista e escritor. Publicou o romance Os Dias da Crise (Companhia das Letras)

o que há de novo? 06-02-24

Monumento à hipocrisia

Uma tal de Confederação das Associações Comerciais e Empresariais do Brasil (CACB) divulgou nesses dias carta aberta ao presidente Lula fazendo coro com aquilo que os autores do documento consideram que é o foco principal de todas as decisões que sejam tomadas: o crescimento econômico, aumento da renda média dos brasileiros, estímulo ao consumo e ao desenvolvimento. E proclama: "Esse pensamento deve nortear a todos". Na verdade, o manifesto é o amontado das mesmas reivindicações que colocam o empresariado na contra-mão do que recomendam. O que essa turma quer mesmo é manter a desregulamentação do trabalho, ampliar a redução da carga fiscal e as facilidades de sempre que acabaram por deixar o Brasil na triste situação de um dos países mais desiguais do mundo. Leia aqui a íntegra do texto publicado pela Folha.

CARTA ABERTA DA CACB AO PRESIDENTE 

CACB (Confederação das Associações Comerciais e Empresariais do Brasil)

O cenário econômico brasileiro terá, mais do que nunca, um ano desafiador em 2024. Em meio a tantos temas de relevância, a CACB (Confederação das Associações Comerciais e Empresariais do Brasil) defende que o foco de todas as decisões seja um só: o crescimento do país, com consequente aumento da renda média dos brasileiros e estímulo ao consumo e ao desenvolvimento. Esse pensamento deve nortear a todos, presidente. Executivo, Legislativo, Judiciário, sociedade civil, entidades, organizações.... 

É preciso que todos os entes estabeleçam um pacto com a sociedade, em prol do empreendedorismo sustentável, da abertura de oportunidades, do incentivo à criatividade e da volta do poder de compra, perdido ao longo dos últimos anos. Um dos pontos de fundamental importância para se chegar a esse objetivo é a regulamentação da reforma tributária. A carga dos empresários e de quem gera empregos precisa ser menor. Daí a importância, por exemplo, de liberar a contratação de mais funcionários pelos microempreendedores individuais. Hoje, a legislação permite apenas um, o que limita a geração de empregos. 

Outro ponto que precisa ser defendido nesse pacto é a necessidade de igualar o empresário brasileiro ao estrangeiro no caso das compras internacionais, colocando os produtos nacionais nas mesmas condições de tributação ou isenção. O que é produzido no Brasil precisa ser valorizado. O caminho da produção também gera emprego, tributos e o incentivo tem que existir. A igualdade de oportunidades favorece a competitividade e a confiança do mercado interno. 

Precisamos ter a coragem e o desprendimento de fazer a reforma administrativa - ainda que em ano eleitoral - para termos previsibilidade e, como consequência, mais investimentos. No âmbito privado, os empreendedores não podem ter a liberdade cerceada. Medidas que possam interferir nas rotinas, jornadas, restrições de dias e horários são retrocesso e não combinam com as demandas do atual mercado de trabalho. O empreendedor brasileiro é criativo e precisa de liberdade. O olhar pro futuro é a única garantia de que não ocorrerão retrocessos. 

Por isso, esse chamamento por parte da Confederação das Associações Comerciais e Empresariais do Brasil (CACB), entidade nacional que representa 2 milhões de empreendedores do micro e pequeno negócio, segmento que emprega e gera renda. Somente por meio do crescimento econômico iremos diminuir as desigualdades sociais, que tanto afligem todas as regiões do nosso país. Essa é a nossa contribuição: um chamado por um pacto nacional, de aspecto abrangente e apartidário, em que as divergências políticas se concentrem apenas no período eleitoral, para que façamos de 2024 o ano da virada. 

O ano em que as medidas anunciadas sejam determinantes para um retorno definitivo do crescimento econômico sustentável e inclusivo do Brasil e da nossa população. Alfredo Cotait Neto Presidente da CACB... 

Pequeno vocabulário da imprensa cínica

Os donos da imprensa, assim como os senhores da guerra, sabem bem utilizar a ideologia do “direito de defesa” em favor das potências mundiais

Jean Pierre Chauvin, A Terra é redonda (expandir)

Domingo, 22 de outubro de 2023, das 16h em diante. A intervalos regulares, um empolgado locutor de corrida anuncia que, logo mais, o canal de televisão (cuja marca celebra os morticínios provocados pelas Entradas e Bandeiras, nos séculos XVII e XVIII) exibirá matéria exclusiva sobre a guerra de “Israel contra o Hamas”. Segunda-feira, 23 de outubro, das 20h45 em diante. O noticiário da mesma emissora dedica um bloco inteiro nomeando alguns israelenses desaparecidos, enquanto o rodapé do ecrã realça os dizeres “Israel x Hamas”.

Reparem bem: os mais de cinco mil mortos na Palestina ainda não entraram na conta da emissora; e, como sabemos, não se trata de fato isolado. Por sinal, seria preciso muita ingenuidade para acreditar que se trata de mero ponto de vista de um grupo ou setor. O que estamos a assistir é a tentativa de validar, como única e legítima, a perspectiva veiculada dia e noite por cartéis da comunicação de massa.

Não é o bom senso que alimenta as emissoras; é o cinismo de seus porta-vozes que forja o suposto senso comum, reproduzido orgulhosamente pelos “homens de bem”.

Os donos da imprensa, assim como os senhores da guerra, sabem muito bem como utilizar a ideologia do “direito de defesa” em favor das potências mundiais, reforçando estereótipos. No noticioso, de meia hora atrás, um homem fardado israelense declarou que o ataque ao Líbano (de hoje) teria prevenido ações do Hezbollah.

Foi graças à imprensa corporativa que aprendemos, pela opinião reproduzida por nossos pais, que uns são ditadores e outros, presidentes; que aqueles representam a liberdade de expressão, a propriedade individual e a “saudável” livre-concorrência, enquanto os outros simbolizam formas totalitárias e atrasadas de pensar ou lidar com setores da cultura e da macroeconomia; que uns têm poder de veto, pois seu assento é permanente, enquanto outros, chamados (por um oportunista sem escrúpulo) de países de “pequena relevância”,[i] não merecem sequer ser ouvidos no Conselho de Segurança da ONU.

Que as siglas ONU e EUA comungam de pseudovalores equivalentes, resta pouca dúvida. Porém, há que se perguntar ainda uma vez: qual o horizonte imediato de Israel, Estados Unidos e companhia? Escoar a produção da indústria de armas, despejando balas, mísseis e bombas sobre os civis palestinos, em nome do “bem”. Infelizmente, como as armas são teleguiadas, mas ainda não averiguam identidade, idade, religião e filiação partidária, não demora muito, os porta-vozes do massacre poderão reciclar afrontosamente o que também declarava George Bush sobre os milhares de mortos na guerra “contra o terror”, no Iraque, em outubro de 2015. Até mesmo a CNN reproduziu a notícia em tom crítico, na ocasião.[ii]

O objetivo maior, que corre em paralelo aos mísseis, é fortalecer a crença de que é preciso extirpar “o mal”, mesmo porque ele seria praticado por “animais”, como disse um membro do governo genocida israelense. Basta rolar o feed do instagram para topar com vídeos de gente sádica: uma atriz usa ketchup, talco, lápis preto e fruta para ridicularizar o sofrimento de mulheres palestinas e seus filhos; um grupo de israelenses, com crianças, homens e idosos, reúne-se com faixas de incentivo ao Tzahal e gritos de ódio, sugerindo que é preciso exterminar os árabes em geral, preferencialmente os palestinos.

Evidentemente, a luta não é “contra o Hamas”. A começar porque os conflitos entre Israel e Palestina se pautam em mitologias milenares, supostamente fundamentadas em livros sagrados. No Brasil, onde a Bíblia é mais conhecida pelos ateus e religiosos progressistas que pelos crédulos acríticos, os mesmos que se dizem pró-vida e vociferam que “aborto é assassinato” estão lá a hastear orgulhosamente seus preconceitos todos, cristãmente justificados, na defesa intransigente de Israel, fechando os olhos para homens, mulheres e crianças massacradas. Para começar, seria preciso averiguar se os fundamentalistas made in Brazil reconheceriam as diferenças entre os períodos mosaico e cristão.

O vocabulário, ou seja, a escolha lexical dos veículos corporativos de comunicação produz efeitos sérios e, em alguns casos, irremediáveis. Seria relevante investigar se os guardiões dos factoides aprenderam algo com o vendaval neofascista no Brasil. A julgar pelo modo brando como se referem ao candidato da ultradireita argentina, parcialmente derrotado ontem, o cinismo é mais lucrativo que a ética. A simulação de compromisso com a verdade continua a comandar as emissoras de rádio, os canais de tevê, os veículos “com maior credibilidade” e os podcasts, capitaneados por “produtores de conteúdo” tão superficiais quanto oportunistas.

Só um otimista incurável pode vislumbrar saída, neste país de golpistas, reacionários e hipócritas tarados por armas, que: (1) tentaram contatar alienígenas alternando sinais de luz com mensagens nas línguas dos terráqueos; (2) oraram em torno de pneus; (3) treparam no para-choque de um caminhão simulando heroísmo intransigente; (4) sequestraram filhos de povos originários para “evangelizá-los” segundo a teologia da prosperidade (lucrativa apenas para os pastores de televisão); (5) juram defender a honra da família, enquanto praticam feminicídio, violentam mulheres e crianças; (6) votam em inimigos da saúde, da moradia popular, da educação pública etc., etc., etc.

*Jean Pierre Chauvin é professor de Cultura e literatura brasileira na Escola de Comunicação e Artes da USP. Autor, entre outros livros de Sete falas: ensaios sobre tipologias discursivas (Editora Cancioneiro).[https://amzn.to/3sW93sX]

Notas

[i] https://oglobo.globo.com/blogs/sonar-a-escuta-das-redes/post/2023/10/moro-diz-que-brasil-nao-tem-relevancia-internacional-e-e-rebatido-por-ministro-das-relacoes-exteriores-como-nao.ghtml

[ii] https://edition.cnn.com/2015/10/06/middleeast/us-collateral-damage-history/index.html 

Mídia corta fala de Lula e gera fake news racista

Ao tirar o sentido de pronunciamento, agências de notícias acabam por disseminar notícia falsa em torno de uma fala afirmativa

Luiz Nassif, GGN (expandir)

Cortar uma fala pela metade, tirando seu sentido, é Fakenews.

As associações de agências de fakenews dizem que as empresas jornalísticas não usam Fakenews porque corrigem erros que cometem.

Veja a fala destacada pelo site Metropoles, por exemplo:

“Essa menina bonita que está aqui, eu estava perguntando: o que faz essa moça sentada, que eu não ouvi ninguém falar o nome dela? Falei: ‘É cantora? Vai cantar?’. Não, não vai ter música. ‘Então, vai batucar alguma coisa? Porque uma afrodescendente assim gosta do batuque de um tambor.’ Também não é. ‘Nossa, então é namorada de alguém?’. Também não é. O que que é essa moça? Essa moça foi premiada o ano que vem como a mais importante aprendiz dessa empresa e ganhou um prêmio na Alemanha. É isso que nós queremos fazer para as pessoas neste país”, disse Lula.

Espera-se que coloquem na íntegra a fala de Lula sobre a jovem negra premiada pela VW.

Com o corte, transformaram uma fala de afirmação do negro em uma fala preconceituosa.

Espalharam Fakenews.

Veja a íntegra da fala de Lula na VW:

“Essa menina bonita que está aqui, eu estava perguntando: o que faz essa moça sentada, que eu não ouvi ninguém falar o nome dela? Falei: ‘É cantora? Vai cantar?’. Não, não vai ter música. ‘Então, vai batucar alguma coisa? Porque uma afrodescendente assim gosta do batuque de um tambor.’ Também não é. ‘Nossa, então é namorada de alguém?’. Também não é. O que que é essa moça? Essa moça foi premiada o ano que vem como a mais importante aprendiz dessa empresa [Volkswagen] e ganhou um prêmio na Alemanha. É isso que nós queremos fazer para as pessoas neste país. Eu vou lhe contar uma coisa. Nós, anunciamos essa semana, uma política para o Ensino Médio. Nós criamos uma poupança para os alunos do Ensino Médio. [Em seguida Lula explica como funcionará este programa; depois ele continua falando sobre o jovem de baixa renda que consegue se formar no Ensino Médio]. Aí ele [o aluno formado] vai começar a sonhar em construir uma carreira e continuar estudando. Aí tem muita gente que falou para mim ‘Mas, Lula, você está gastando dinheiro, está gastando dinheiro…” Não, gastando não. Estou investindo. Eu vou gastar dinheiro quando esse jovem que não está estudando for para o crime organizado ou ir para o CAC ou ir para a cocaína ou ir para o crime organizado e virar bandido… Aí eu vou gastar fazendo cadeia. Vou gastar prendendo ele (sic). Então é preciso gastar com educação para que, neste país, não nasçam pessoas com a possibilidade de virar bandido. Porque eu quero que milhares de jovens tenham a mesma possibilidade que essa jovem teve e que muitos de vocês [dirigindo-se à plateia] tiveram.”

pensatas do fim de semana 02/05-02-24 

No mundo todo, jornalismo brasileiro está em 2o lugar entre os que mais receberam dinheiro das big techs

Charis Papaevangelou apresenta dados em pesquisa divulgada no Intercept em matéria de Tatiana Dias (expandir)


O BRASIL é o segundo lugar no mundo em que as big tech Google e Facebook mais injetaram dinheiro no jornalismo – atrás apenas dos EUA, país de origem das empresas. Pelo menos 424 veículos e organizações jornalísticas, de todas as regiões do Brasil, já receberam algum tipo de financiamento das corporações de tecnologia. 

Para o pesquisador Charis Papaevangelou, que estuda a influência e o poder dessas empresas sobre o jornalismo, a boa vontade não é gratuita: está relacionada às discussões sobre regulação de plataformas. 

Pós-doutor na Universidade de Amsterdam, onde pesquisa legislação, plataformas e jornalismo, Papaevangelou publicou no ano passado um estudo que disseca as estratégias de financiamento e captura das big tech sobre o jornalismo. Elas incluem dinheiro – muito dinheiro –, mas não apenas isso. Estão envolvidos também influência e poder.  

Sua pesquisa mostrou que, entre 2017 e 2022, Google e Facebook despejaram grana em mais de 6,7 mil veículos jornalísticos e entidades do setor em todo o mundo. O total investido nesses programas chega a 900 milhões de dólares, segundo declarações públicas de executivos do Google e da Meta. Mas Papaevangelou só conseguiu encontrar informações sobre 160 milhões – o que, para ele, destaca um problema de transparência significativo.

O que motiva as big tech? Para Papaevangelou, pode haver uma correlação entre os programas de financiamento das plataformas, especialmente a intensidade deles, e a possibilidade de serem aprovadas legislações que irão afetá-las. 

Como exemplo, a pesquisa cita justamente o Brasil. Por aqui, as big tech foram vitoriosas para travar o PL 2630, conhecido como PL das Fake News, depois de muita campanha e lobby. 

O projeto, que visa aumentar a responsabilidade das plataformas sobre determinados conteúdos, foi alvo de oposição de várias entidades jornalísticas – algumas que receberam financiamento – por dispositivos que ameaçavam a privacidade e a liberdade de expressão. Esses pontos mais críticos foram eliminados do texto final, mas ainda assim as big tech conseguiram derrubar a votação do projeto no ano passado. 

Assim como no caso brasileiro, essa correlação entre financiamento e interesses em regulação pôde ser vista também na Austrália – em meio às discussões sobre o News Media Bargaining Code, lei que obrigou as big techs a remunerarem conteúdo jornalístico –, no Canadá e na França.

Foi lá, aliás, que tudo começou: em 2013, o governo francês estava tentando impor um pagamento ao Google para compensar os veículos jornalísticos cujo conteúdo estava sendo indexado na busca. 

Correndo o risco de cair na regulação, o Google criou um fundo milionário para pagar os veículos. A partir disso, a iniciativa foi estendida para outros países. Em 2017, o Facebook também criou seu próprio programa. 

Brasil é segundo país com maior investimento das big tech em jornalismo.

A maior dificuldade que Papaevangelou encontrou foi a matéria prima para sua pesquisa: não havia dados. Por isso, o pesquisador raspou textos de divulgação, relatórios de impacto e posts que encontrou no site das empresas e seus parceiros para criar uma base com 6.773 mil beneficiários entre 2017 e 2022. 

O pesquisador argumenta que as crises financeiras recorrentes no jornalismo aumentaram a necessidade de mais financiamento externo e, ao mesmo tempo, legitimaram a intervenção das plataformas sem que houvesse uma resposta adequada de transparência e responsabilização. 

Como resultado, há impacto em toda a indústria, em sua independência e influência em processos democráticos e na governança.

Os achados de Papaevangelou se somam a um artigo de 2018, em que o pesquisador e jornalista investigativo alemão Alexander Fanta mostrou que o Google estava moldando o jornalismo. 

A condição para receber o financiamento da empresa, descreveu Fanta, era “mostrar inovação”. Assim, o fundo incentivava determinados modelos de negócio, que na maior parte dos casos complementava o ecossistema online do Google, ou eram simplesmente baseados nos serviços da empresa. 

Agora, Papaevangelou mostrou também que grande parte do dinheiro não foi para veículos – mas para programas e associações intermediárias. Para o pesquisador, os dados deixam claro o esforço das big tech em “capturar e plataformizar a indústria do jornalismo o máximo de níveis possível”. 

Quando se fala em ‘captura’, não se trata de influência editorial – não é necessariamente o Google decidindo se uma reportagem vai ou não ao ar. É, por exemplo, a validação das plataformas como ator fundamental na indústria do jornalismo e a prevalência de veículos focados em “soluções” e “produtos” alinhados com as expectativas comerciais das empresas.

A Abraji, a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo, que oferece cursos e treinamentos em parceria com Google e Facebook, é citada. Outro exemplo é a Internews, na Índia, que recebeu 1 milhão de dólares do Google para oferecer treinamentos e workshops sobre letramento digital.

Ao Intercept Brasil, o Google afirmou que se baseia em critérios como “conteúdo de qualidade”, com o objetivo de “fortalecer o ecossistema jornalístico”. A empresa afirma que “ofereceu suporte” a mais de 7 mil veículos de 120 países, totalizando mais de US$ 300 milhões. (Vale lembrar que, só em 2023, o conglomerado Alphabet, dono do Google, faturou US$ 73,79 bilhões). Sobre a correlação entre financiamento e regulação, a empresa não comentou. Já a Meta não respondeu meus questionamentos. A Abraji também não comentou.

Em entrevista, Charis Papaevangelou conta como fez para “seguir o dinheiro” das big tech – e o impacto da dependência crescente de veículos, especialmente no Sul Global, nas grandes plataformas de tecnologia. 

O pesquisador Charis Papaevangelou, autor do estudo que disseca as estratégias de financiamento e captura das big tech sobre o jornalismo. Foto: Reprodução/La revue des médias

Intercept – De onde veio a ideia de pesquisar o financiamento do jornalismo por big techs? 

Charis Papaevangelou – Durante minha pesquisa de doutorado, estudei a economia política da governança de plataformas e, especificamente, o crescente impacto das plataformas na indústria do jornalismo. Então, eu realmente quis “seguir o dinheiro” para entender o envolvimento financeiro das big tech no jornalismo.

Senti que faltava um entendimento claro de quão grande era esse envolvimento e que a falta de transparência tornava difícil se envolver neste tópico de uma forma fundamentada. Eu me inspirei nos trabalhos dos jornalistas investigativos alemães Alexandre Fanta e Ingo Dashwitz, que fizeram o mesmo em relação ao Google Digital News Initiative na Alemanha e na União Europeia. 

Mas fui um pouco mais ambicioso e, graças a um fellowship no Centre for Media, Tech and Democracy of McGill University, pude conduzir o estudo que deu origem ao meu artigo, em que eu colhi dados dos programas globais da Meta e do Google – Google News Initiative and Meta Journalism Project respectivamente.

As plataformas, em geral, não são transparentes em relação aos projetos que apoiam. No Brasil, por exemplo, o Google não divulga essas informações. Quais foram os principais desafios na sua pesquisa?

Precisamente esse, que é o caso de todos os países, para a maioria dos projetos. Nem o Google nem a Meta têm um índice abrangente ou uma lista de todos os projetos e beneficiários. Tive que fazer isso do zero, criando uma colagem de cada informação que eu encontrei. 

Além disso, o nível de transparência difere de um projeto para outro nas duas empresas. Por exemplo, o maior projeto de financiamento do Google, o Journalism Emergency Relief Fund [programa lançado na pandemia] continha uma lista de todas as organizações de mídia que receberam pagamentos, mas não quanto cada um recebeu. Havia alguns padrões de quantidades de dólares cada um poderia receber, de acordo com o tamanho. 

Em geral, as empresas não parecem dispostas a divulgar a quantia específica. Felizmente, alguns veículos divulgam essas informações.

O Canadá aprovou recentemente uma lei para obrigar as big tech a remunerar jornalismo, e ficou claro o que acontece depois: os veículos foram punidos pelas plataformas. Isso mostra o poder de lobby e um certo desdém pelo jornalismo. Sua pesquisa mostrou que as plataformas realmente bancam os veículos – mas com seus próprios termos e regras. Qual é a diferença entre esses modelos?

Mais e mais países estão considerando ou já aprovaram legislações para endereçar essa questão diretamente, como a Austrália e Canadá, e indiretamente, como a União Europeia. Em todos os casos, vimos que, na forma como essas leis são aplicadas, a prática permanece a critério das plataformas. 

Como a situação no Canadá demonstra, isso deixa os veículos – especialmente os menores – bastante vulneráveis ao poder das plataformas, podendo até ficar reféns da negociação de poder entre big tech e governos. Isso tem efeitos prejudiciais à qualidade de nosso ecossistema de informações e democracia.

‘As big tech tentam manter a assimetria de informações que enfraquece a possibilidade de barganha dos veículos’.


Considere, por exemplo, o que aconteceu quando o Facebook, em retaliação à lei australiana, bloqueou veículos de publicarem conteúdos jornalísticos no meio da pandemia, incluindo – erroneamente, eles argumentaram depois – fontes governamentais e autoridades. A mesma situação aconteceu no Canadá durante as terríveis queimadas no último verão. 

A razão pela qual as plataformas agem assim é que regulações desse tipo reconhecem a responsabilidade que elas tiveram em prejudicar a mídia. E elas não querem ser vistas reconhecendo essa cumplicidade.

Além disso, regulações como a proposta no Canadá, muito mais do que na Austrália, delimitam certos padrões e parâmetros sobre que tipo de veículo deve ser remunerado por plataformas. Isso significa que as big tech devem entrar em negociações mais formais com os veículos, o que deve fortalecer a transparência. É algo que as big tech tentam evitar, mantendo a assimetria de informações que enfraquece a possibilidade de barganha dos veículos jornalísticos.  

Sair desse modelo autorregulado de plataformas financiando jornalismo é benéfico para nivelar o campo entre elas, além de impedir que as plataformas decidam quais projetos e veículos merecem ser financiados. 

No entanto, essa regulação não resolve as questões mais sistêmicas que o jornalismo está enfrentando atualmente e, no fim do dia, conecta uma parte significativa do lucro dos veículos às plataformas. Como resultado, eu acredito que políticas econômicas como o crédito para assinatura de veículos digitais que existe no Canadá poderiam ajudar os veículos a retomarem sua autonomia.

Há alguma especificidade em relação aos países do Sul Global? Sua pesquisa mostrou que o Brasil foi o segundo país que mais recebeu financiamento para projetos jornalísticos do Google e da Meta. O que, na sua opinião, explica isso?

Eu não conseguiria dar essa explicação, exceto pela conexão entre os níveis de investimento e risco de regulação e melhoria da imagem pública das plataformas – isso também foi confirmado para mim por um ex-executivo do Google News Initiative, em uma conversa em off.

Poucos meses atrás, publicamos um estudo com alguns colegas em que entrevistamos representantes de 13 organizações do Oriente Médio e da África que participaram de um desafio de inovação do Google. 

Descobrimos que os programas relacionados à inovação e checagem foram priorizados pelas plataformas, e que eles servem como forma de aprovação para os veículos. 

Também identificamos que a quantidade de dinheiro envolvido não era suficiente para levar a cabo esses projetos, e que o Google não levava em conta as nuances encontradas nos países e ecossistemas em desenvolvimento, como, por exemplo, falta de conhecimento técnico ou mão-de-obra.

‘Esses programas foram concebidos com uma mentalidade pseudo-universalista, que é baseada em valores brancos, ocidentais e liberais’.

Mais do que isso, o Google pareceu indiferente aos problemas e forneceu praticamente zero apoio e orientação aos beneficiários, resultando na descontinuidade de muitos daqueles projetos depois do período de financiamento (que foi na maior parte dos casos um ano). 

Em outras palavras, esses programas foram concebidos com uma mentalidade pseudo-universalista, que é baseada em valores brancos, ocidentais e liberais, e desconsiderou as realidades e nuances das pessoas da maior parte do mundo.

Não gostaria de comentar o caso brasileiro, porque não tenho conhecimento. No entanto, fui informado por colegas brasileiros que plataformas financiaram sites de extrema direita que propagam desinformação. 

Isso apenas demonstra meu ponto anterior sobre a falta de atenção e nuances das plataformas para esses casos e países do Sul Global. As plataformas, na maior parte das vezes, os enquadram como problemas a serem resolvidos financiando soluções de fact-checking.

Muitos veículos e associações financiados pelo Google e pela Meta dizem que não há interferência editorial e que se mantêm independentes. Mas, na sua pesquisa, você menciona o conceito de ‘captura’. Como é essa influência?

O meu argumentos sobre “financiando intermediários” é que, praticamente, as plataformas, por um lado, obscurantizam suas responsabilidades envolvendo mais atores no processo. 

Por outro, apoiam um ecossistema inteiro em vez de apenas veículos específicos. Em outras palavras, elas aumentam a importância de si mesmas, as transformam em atores legítimos no funcionamento da indústria em geral. 

Isso gera benefícios para elas. O principal é a dependência significativa para os veículos, editores e intermediários, que por sua vez exercem pressão sobre os legisladores para não regularem plataformas de forma que colocaria em perigo todo esse ecossistema. 

‘Receber uma verba ou ter uma parceria com uma dessas gigantes de tecnologia dá uma espécie de ‘selo de aprovação’.


Não uso o termo captura para argumentar que há interferência editorial dentro das redações, mas para descrever essa forma de poder mais sutil, nuançada e estrutural, que busca estabelecer as plataformas como indispensáveis para o jornalismo.

Essas empresas majoritariamente financiam projetos sob o disfarce de apoiar a inovação. Isso cria certas expectativas sobre o que é inovação no jornalismo e enquadra isso como algo atingível apenas por meio de serviços e infraestrutura criados e controlados pelas big tech, criando o que chamamos de dependência de caminho. 

Além disso, esses programas de financiamento também vêm na forma de treinar jornalistas para usar esses serviços das plataformas, ou na forma de créditos de anúncios para serem usados nos serviços de publicidade do Google e da Meta. Então, estão sempre conectados para reforçar a dependência dos veículos nas plataformas. 

No entanto, a questão mais interessante para explorar é por que esses conglomerados de tecnologia estão financiando o jornalismo, enquanto argumentam que eles não estão lucrando significativamente com esse conteúdo. E, aqui, acho que os meus resultados de pesquisa são úteis: eles priorizam países em que enfrentam regulação.

Sempre fomos céticos e críticos em relação às estruturas de propriedade e às questões de conflito de interesses no jornalismo, por isso deveríamos também aplicar a mesma crítica ao financiamento das big tech.

No artigo, você mencionou a influência da Ideologia Californiana, um trabalho seminal que define o dogma liberal, capitalista e tecno otimista que alimentou o desenvolvimento do Vale do Silício. Como é possível enxergar, em veículos jornalísticos, essa ideologia?

Voltarei à minha resposta anterior sobre como, nesses esquemas de financiamento, as plataformas definiram os termos do que conta como inovação ou, de maneira geral, como merecedor de receber financiamento. 

Por exemplo, programas de fact-checking – especificamente para o conteúdo que circula nos serviços dessas empresas – estão entre os mais financiados por elas. 

Além disso, a maioria desses programas são para projetos específicos, o que significa que há uma desconexão entre o jornalismo voltado para o valor e o jornalismo voltado para projetos. Em outras palavras, eles financiam “soluções”, que são alimentadas por esse dogma do Vale do Silício chamado “solucionismo”, como Evgeny Morozov classifica

Indo além, até mesmo esquemas de financiamento que não são específicos para projetos, como o Google News Showcase, ou simplesmente os serviços oferecidos pelas plataformas, como mecanismo de busca e redes sociais, estão implicitamente reforçando esse dogma (neo)liberal e os valores do Vale do Silício. 

Ao mesmo tempo, jornalistas se tornam dependentes das infraestruturas que operam usando sistemas automatizados, que foram desenvolvidos para aumentar o lucro – manter os usuários no ecossistema das plataformas.

Por fim, também diria, especialmente sobre organizações menores de mídia, que receber uma verba ou ter uma parceria com uma dessas gigantes de tecnologia dá a elas uma espécie de “selo de aprovação”.

As big tech também contratam jornalistas e pessoas que tiveram cargos estratégicos em veículos e associações. A questão da porta giratória nessa indústria é algo em que você se debruçou? 

A maioria dos projetos do Google e Facebook relacionados à notícias são tocados por ex-jornalistas e executivos da indústria. É algo que não olhei sistematicamente, mas com que cruzei muitas vezes na minha pesquisa. 

É parte da estratégia mais ampla das plataformas de garantir que eles tenham acesso de alto nível à indústria do jornalismo e a adotar a linguagem usada por gente de dentro dela para parecer mais legítimo. 

Além disso, essas pessoas muitas vezes chegam com conexões extremamente importantes, o que é basicamente um aspecto de sua mais-valia que é capturada pelas plataformas. 

No entanto, estamos agora em uma fase em que as plataformas estão reajustando seu relacionamento com os veículos. Por exemplo, tanto Google e Meta descontinuaram muitos de seus serviços relacionados à notícias, e dissolveram seus times internos que engajavam com a indústria. 

Isso sugere uma reavaliação do seu investimento no jornalismo, o que irá abalar partes da indústria. Mas também poderá ser uma boa oportunidade para o jornalismo reavaliar a sua relação com as plataformas e recuperar a sua autonomia.

Bye Bye Brasil: a vida imita a arte

Pacaembu agora abriga o 'admirável' mundo novo das mercadorias

Mario Sergio Conti, Folha (expandir)

Em lugar do tupi, a língua dos 'brands' e logos; Nike, Microsoft, McDonalds, Coke, Tesla


Os novos caciques do Pacaembu comemoraram na quarta-feira seu triunfo sobre a tribo tupi que um dia foi dona do pedaço. Uma corporação cucaracha pagará R$ 1 bilhão para, durante três décadas, pôr seu nome no estádio art-déco inaugurado em 1940.

Tinha razão Demócrito, o filósofo grego mais por fora que bunda de índio —tupi, no caso— quando disse que "as palavras são a sobra da ação".

Porque a nomenclatura do estádio mostra como flores tóxicas do presente brotam de raízes pútridas do passado.

O logotipo da várzea rebatizada traz primeiro a imagem do aperto de mãos da multinacional que se apropriou do nome. Depois, em letras graúdas, botou-se "Mercado Livre Arena". Abaixo, como uma acanhada nota de rodapé, vem o vencido "Pacaembu" do povinho originário.

O aperto de mãos significa fechar um negócio. O acordo comercial ocorre no mercado, lugar onde uns vendem o que produzem e outros compram o que consomem. Não é um mercado chinfrim; nele atuam uma baita multinacional e uma alta ideologia: o Mercado Livre e o livre mercado.

A megaempresa opera na América Latina toda. Tem 30 mil funcionários e não produz picas; vende e entrega mercadorias à mostra no site. O dono é o argentino mais rico do sistema solar, Marcos Galperin.

A ideologia é a do liberalismo econômico, o "laissez-faire" que começou com Colbert e passou por Adam Smith e Stuart Mill. Ela é hoje aríete da desregulamentação, arma com a qual o mercado acossa e arromba Estados —vide Javier Milei, apoiado com fervor pelo mascate Marcos Galperin.


O neo-Pacaembu saiu da pia batismal pingando sangue. Ele goteja do terceiro termo do novo nome: arena. Em latim, a palavra quer dizer areia. Não é uma areia qualquer, mas a que recobria o chão dos coliseus romanos. Sua função era absorver o sangue dos gladiadores que ali se trucidavam.

O Mercado Livre Arena é, pois, um anfiteatro onde a nata transnacional pratica a política da antiga aristocracia romana: pão e circo para a plebe. Mas, com o estádio privatizado e movido a grana, a plebe ignara não terá acesso a ele. Venderá churrasquinho de gato na porta.

Por fim, o Pacaembu propriamente dito. O vocábulo aborígene não é somente hipocrisia, tributo do vício à virtude. Também diz a meia-voz que a arena multiúso (argh) é fruto da elite público-privada de agora. Esclarecida, ela derrama lágrimas crocodilescas pelos tupis que a elite de outrora extinguiu.

"Pacaembu" quer dizer atoleiro. Denominava o riacho que ia do espigão da Paulista até o rio Tietê e, por vizinhança, os nativos que viviam nas margens alagadiças. Os jesuítas os amansaram e o consórcio luso-bandeirante mandou-lhes balaços de bacamarte na testa.

Logo, fique esperto e seja politicamente correto: faça três segundos de silêncio em homenagem aos mortos para se dilatar a fé, o império e o mercado d’além-mar. Aí curta os trinados de Wesley Safadão no Mercado Livre Arena Pacaembu —um nome com a eufonia de uma rabeca velha.

Em 1958, o estádio passou a se chamar Paulo Machado de Carvalho, o marechal da vitória canarinho na Copa, conhecido como cabeça de jaca devido ao crânio oblongo. Apenas locutores usavam o nome oficial.

Maluf, o huno, se apossou da prefeitura em 1969. Pôs abaixo a concha acústica curvilínea e fez subir o tobogã tenebroso —que alegrou empreiteiros e deve ter rendido uma piscina olímpica de dólares.

Bruno Covas vendeu o estádio ao desconhecido grupo Allegra Pacaembu. Ele está pondo de pé hotel, lojas, restaurantes e centro de convenções. Mas a ênfase será em espetáculos atordoantes. Se Bolsonaro voltar, periga petistas serem jogados aos leões para atrair fascistas à arena.

Ela deveria estar pronta, mas as obras estão mais atrasadas que as da Sé de Braga. Ao se justificar, o chefe da Allegra, Eduardo Barella, disse que o Pacaembu terá "uma abertura faseada". Quis dizer inauguração em fatias, sabe-se lá quando, e veio com a batatada fraseada.

Como usou também "naming rights", merece o quê? Ser empalado no obelisco do Ibirapuera, transplantado para o Mercado Livre Arena Pacaembu? Não, claro. São as múmias avessas ao progresso que têm de se amoldar à língua dos bambambãs do turbo-mercado.

É a língua dos "brands" e logos —Nike, Microsoft, McDonald’s, Coke, Tesla, Apple e quejandos—, entes que divulgam e vendem, além de mercadorias, modos de vida. Seu admirável mundo novo é um cruzamento entre duty free com shopping center, um Pacaembu do qual não dá para fugir nunca.

# Link para a matéria original da Folha

# Leia também "Bye Bye Brasil -  a modernização brasileira em tempos de ditadura militar"

Pela reestatização imediata dos transportes públicos em São Paulo

Tragédia de proporções incalculáveis ameaça a população de São Paulo debaixo da indiferença criminosa do governador e do prefeito, que devem ser indiciados por crime de responsabilidade (expandir)

Linha 3 do metrô de SP trava, gera caos e passageiros andam sobre trilhos na volta para casa

Em desespero, usuários quebraram janelas e caminharam em túneis; segundo o Metrô, acionamento de dispositivos de emergência forçou esvaziamento de trem; linha só voltou às 21h05

Fábio Pescarini Erick Almeida Clayton Castelani

SÃO PAULO

Uma falha na linha 3-vermelha do metrô de São Paulo transformou em caos a volta para casa de quem precisa desse transporte público na capital paulista, no início da noite desta quinta-feira (1º). Passageiros ficaram presos nos trens por quase uma hora, e muitas pessoas tiveram de sair dos vagões e andar pelos trilhos, inclusive em túneis.

Segundo o Metrô, a linha teve de ser paralisada por cerca de 2h30 em razão de uma composição que teve os dispositivos de emergência acionados por passageiros, no trecho entre as estações Belém e Bresser, na zona leste.

"Esses acionamentos demandam o esvaziamento do trem, iniciado às 18h34, para a sua retirada de circulação, a fim de normalizar os dispositivos", afirmou.

Às 19h40, a circulação foi restabelecida no trecho entre as estações Itaquera e Tatuapé, na zona leste. Ela foi totalmente normalizada às 21h05, de acordo com a empresa.

Por medida de segurança, a circulação foi interrompida e a energia retirada, até a remoção de todos os passageiros, de acordo com a companhia. O acesso às estações foi fechado por causa da paralisação da linha.

Dentro dos vagões, passageiros entraram em desespero quando o trem parou, as luzes se apagaram e o ar-condicionado foi desligado. Usuários forçaram a porta, e o metrô oficializou a evacuação.

A bancária Juliana Roos, 33, conta que ela e outros passageiros ficaram mais de dez minutos no escuro. "As pessoas começaram a passar mal, tinha gestante dentro do vagão, uma moça desmaiou, e aí foi esse momento que começaram a quebrar as janelas para poder entrar um pouco de ventilação."

"E aí, quando começou a entrar um pouco de ventilação, as pessoas começaram a sair na via por conta do calor que estava dentro vagão", relata.

Victor Durante, 29, analista de ecommerce, que pegou o metrô na estação Marechal, no centro de São Paulo, também relata momentos de tensão. "Comecei a ficar preocupado com o pessoal chutando porta, a gritaria", diz. "Pensei que alguém fosse perder a cabeça."

"Fiquei mais de duas horas aqui", diz Willyan Augusto Assunção, 33, gerente comercial. Ele afirma ter entrado na estação Belém às 18h, até receber um aviso de que havia pessoas na via. Segundo Willyan, os passageiros foram instruídos a descer na estação Bresser, onde até por volta das 20h esperavam por informações.

Passageiros caminham pelo túnel após falha na linha 3-vermelha do metrô - Erick Almeida/Folhapress

De acordo com o Metrô, por causa do problema, a velocidade da linha 1-azul teve de ser reduzida, para equilibrar o fluxo na transferência da estação Sé, no centro de São Paulo.

Vídeos publicados na rede social X, (antigo Twitter) mostram pessoas saindo do trem e andando pelos trilhos próximo à estação Belém.

Um outro passageiro publicou em rede social que o trem estava havia mais de 25 minutos parado dentro do túnel entre as estações Belém e Bresser. Uma mulher relatou que havia gente brigando e passando mal.

Na estação República, a multidão em frente a uma das saídas foi grande, com uma multidão aglomerada em frente a grade.

O Metrô disse ter acionado o sistema Paese (Plano de Apoio entre Empresas em Situação de Emergência) entre as estações Carrão e Barra Funda no período em que a linha esteve parada.

No momento em que os primeiros relatos de problemas começaram, o presidente da empresa, Julio Castiglioni, participava na Cidade do Panamá da mesa-redonda "Os desafios das empresas públicas na América Latina e no Caribe", dentro da programação da Conferência CAF América Latina e Caribe: Uma região de soluções globais.

Segundo apurou a reportagem, o executivo foi informado sobre os problemas da noite desta quinta-feira.

VALOR DO UBER MAIS QUE DOBRA DO CENTRO ATÉ O TATUAPÉ

Alternativa buscada por milhares de passageiros que não conseguiram embarcar, corridas com carros de aplicativos tiveram seus preços mais que dobrados devido à elevada procura.

Simulações feitas pela Folha para viagens com a Uber a partir da região central com destino para três pontos da zona leste fora do centro expandido passavam dos R$ 100.

Às 20h, a corrida entre a estação do metrô República, no centro, até Guaianases, no extremo leste, custava R$ 155. Partindo da mesma estação na região central, a viagem um pouco mais curta, até Itaquera, saía por R$ 130. Se a opção fosse pelo desembarque no Tatuapé, na borda do centro expandido, preço cobrado seria de R$ 100.

Passageiros na entrada do metrô Santa Cecília, da linha vermelha do metrô - Givanildo Rogrigues/Folhapress

Em nota, a empresa Uber informou que o preço se torna dinâmico e o valor da viagem pode ficar mais caro do que o habitual para um determinado trecho quando a demanda em uma determinada área é maior do que o número de motoristas circulando na região naquele momento.

O preço dinâmico é aplicado, segundo a Uber, para incentivar que mais motoristas se conectem ao aplicativo e assim os usuários tenham um carro sempre que precisar. Quando a oferta sobe novamente, os preços voltam ao normal.

A Uber ainda afirmou que, de qualquer forma, o preço dinâmico é informado ao usuário no momento em que a viagem é solicitada.

AUMENTO DA TARIFA E GREVES

Desde 1º de janeiro, a tarifa do Metrô aumentou para R$ 5. O valor de R$ 4,40 era o mesmo desde janeiro de 2020, apesar de a inflação no período ter sido de 26% (R$ 5,55). O acréscimo de 13,6% só fica atrás do aumento de 16,6% estabelecido em 2015.

O governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) justificou o aumento dizendo que os subsídios para o transporte sob trilhos, para CPTM e Metrô, estavam chegando "na casa do insuportável".

O governador disse que, mesmo reajustando, vai aportar um recurso importante em termos de subsídio. "Não podemos mais tirar dinheiro de outras áreas que são prioritárias. Estamos vendo os desafios na saúde, na segurança pública. Não dá mais para tirar [destas áreas] para subsidiar a atividade de transporte. Temos que equilibrar um pouco a conta", declarou, ao anunciar o aumento.

No ano passado, Tarcísio enfrentou três greves envolvendo os metroviários. No dia 28 de novembro, houve uma greve unificada do Metrô e da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos), que contou com adesão da Sabesp (Companhia de Saneamento do Estado), de professores da rede pública e de servidores da Fundação Casa. Os grevistas pediam a suspensão de projetos de privatização em curso no estado, como a da Sabesp, de linhas da CPTMe do Metrô.

Em outubro, um protesto realizado pela categoria também tinha a concessão de serviços à iniciativa privada como alvo. A primeira paralisação deste ano ocorreu em março e, embora incluísse o fim de terceirizações e privatizações na pauta, também continha argumento diretamente relacionado a direitos trabalhistas.

Colaboraram Francisco Lima Neto, Givanildo Rodrigues e Juliano Machado

# Acesse aqui a matéria original da Folha

Popularidade de Lula já  chega aos 50%

Desemprego cai a  7,4%, menor nível desde 2014 na comparação dos   últimos trimestres de cada ano

Criação de vagas se estendeu por toda a economia (Globo) e país chegou ao final de 2023 com mais de 100 milhões de pessoas trabalhando (GGN)

Neoliberais rangendo os dentes

A julgar pelos números da economia e pelos índices crescentes de popularidade, tudo indica que Lula está bem na fita. Desemprego em baixa, inflação e juros em queda, investimentos em alta, projetos desenvolvimentistas consistentes em diversos setores e uma filosofia coerente para equilibrar as contas do Estado e eliminar o déficit público que faz a alegria dos bancos e dos empresários que gozam de absurdas isenções fiscais. Posso estar enganado, mas é possível pensar na hipótese de que a maré de respaldo social que essas evidências fazem crescer se consolide nas eleições municipais deste ano e se desdobre no acanhamento dessa direita estúpida que, ao que parece, continua apostando na conspiração discursiva como a única saída para conter a reversão das expectativas políticas futuras. A coisa é tão grave para essa turma que nem mesmo esse almanaque de curiosidades em que o Estadão se transformou consegue contornar o fato de que os desmandos bolsonaristas acabaram (leia aqui a matéria do Poder 360).  Xô com essa gente!

Regulamentação do ensino superior privado é urgente

Em artigo publicado no Correio Braziliense, presidenta da União Nacional dos Estudantes, Manuella Mirella,  defende controle rigoroso da atuação das empresas que exploram o ensino superior. Proposta foi apresentada no CONAE (leia aqui)

O melhor de Lima Barreto

Crônica inédita descoberta pelo pesquisador Alexandre Juliete Rosa

Lima Barreto, A Terra é redonda (expandir)

A Bastos Tigre

      Estava deveras velho! Já passava muito além da casa dos sessenta… Há quase cinquenta anos que sua vida era só uma ideia… Em começo, nos primeiros anos, foram lutas e obstáculos; depois, a serenidade do pensamento de que já se é senhor, e se expande naturalmente na obra, marcando cada página sua, cada parágrafo seu, cada linha dela… Uma grande vida, diz Alfredo de Vigny, é um pensamento da mocidade realizado na idade madura… Tinha feito isso…

      Mas que voltas tivera que dar, para realizar o seu, plenamente, com toda a autonomia e independência…

      Analisava-se a si e à sua vida, ali, entre os seus livros, numa manhã triste de Agosto.

      Manhã de cerração. Os contornos das montanhas não eram vistos e as casas próximas se dissolviam na indecisão daquele ambiente flocoso; entretanto ele via o seu passado com os seus desejos e as suas lutas, tudo muito nitidamente.

      A sua meninice e a adolescência foram iguais às de todos os outros. Colégios, colegas, exames – tudo na mesma bitola de qualquer. Depois dos vinte, aquelas desgraças domésticas, a humilhação de pedir, a necessidade de calar opiniões, de ter as que não tinha… Mas, à proporção que sofria, ficava melhor, mais humano, mais capaz de compreender os outros, de perdoar e mais corajoso até! Como lhe viera essa transformação nele que era tímido, inimigo de toda a violência? Não sabia! Era como Marco Aurélio, o piedoso amigo de todos os homens dos seus “Pensamentos”, que acasos da vida fizeram general e vitorioso…

      Então, lembrou-se das reproduções dos baixos relevos que ornam o Arco do Triunfo desse Imperador estoico… Ele devia olhar para as suas vitórias com a mesma piedade com que olhava, do alto do seu cavalo, os bárbaros que lhe pediam perdão…

      O grande historiador e sociólogo, naquela manhã de neblina, recordava as suas vitórias com aborrecimento, e, não fora a necessidade de obter meios de comunicar o seu pensamento, que era grande, mesmo teria ele vergonha do seu triunfo…

      Tinha isso como uma missão superior, um dever sacerdotal; era preciso remover mais um obstáculo para a compreensão perfeita entre os homens; e, sabendo como, tivera que fazê-lo, por meio da arte de escrever, empregando, aparentemente, os meios mais diferentes e opostos ao seu temperamento, à impiedade mesmo.

      Pobre, conhecendo a ousadia do seu pensamento que havia de ferir logo o mais honesto letrado que o pudesse ajudar a carreira, era preciso tornar-se popular, chamar a atenção sobre si, mascarando tudo isso com propósito de executar umas fúteis, ‘os pequenos trocos da inteligência’, de modo que o grosso público, daqui e daí, se fosse habituando com ele, habituando-se às suas aparentes banalidades, para, quanto viesse a grande obra, ele a procurasse também e os editores não se recusassem aos riscos de publicá-la.

      Foram dez a vinte anos de fingimento, fingimento de ignorância e de hábitos, de vícios e de virtudes, de capacidades e inabilidades. Enquanto isso, ele, o verdadeiro, marchava de flanco, estudava, meditava. Todas as ciências árduas, todas as pesquisas especiais, todas as teorias nevoentas, lia, relia e assimilava.

      O mais sagaz crítico não descobriria nas pequenas brochuras que ele deitava, de quando em quando, o mercado, esses propósitos e essas leituras.

      Um ou outro amigo ou camarada, porém, podia adivinhar-lhe esse pensamento, mas nenhum esperava que ele o realizasse senão da forma mais ou menos fragmentária porque ia fazendo.

      De todas as bobagens dos literatos e seus sequazes, ele se vestiu; de todas as suas verdadesinhas, ele procurou dar mostras de ter ambição; mas nada disso ele queria, nada disso mantinha o seu ânimo nas disputas e nas questiúnculas de vernáculo.

      A popularidade mesmo não era seu fim; o seu fim era publicar a custosa obra, sonhada aos vinte e poucos anos, quando lhe chegaram as dores do mundo e ele viu melhor os homens e as coisas.

      Seguro que podia fazer, ele se entregara de corpo e alma a ela. Não eram só leituras e estudos de que precisava; eram também viagens, inquéritos in situ, reproduções por meio das artes gráficas – todo um trabalho caríssimo e paciente.

      Ele o fizera e acabara. Estavam ali os volumes e todos já se tinham despedido do espanto com que receberam o primeiro. A sua missão na vida estava completa.

      Não tinha mais um parente próximo; os amigos estavam por ali e por acolá, em posições diferentes, mas já muito outros daquilo que foram.

      Só no mundo, com as relações cerimoniosas do seu ofício, a vida não lhe pesava, apesar daquele quase total isolamento. Tinha cumprido o seu dever; tinha feito o que sonhara um rapaz, sem bajular, sem baixeza e sem diminuir o seu alto pensamento. O Galileu, desta feita, não tinha vencido Juliano.

      Rico, considerado, tendo podido passar por todas as posições, obtivera muitas coisas que não desejava, mas sentia uma pequena falta, a de um companheiro, homem ou mulher, para relembrar nele ou nela os entusiasmos sagrados e os negros desânimos dos seus primeiros anos de atividade mental.

      Talvez morresse já, talvez vivesse ainda muito – mas para quem ficariam aqueles livros, aquelas notas, aqueles papeis íntimos?

      A sua herdeira, uma sobrinha, nem o seu nome trazia mais, mas o do pai, seu cunhado; e os filhos par aí. Mãe e filhos pareciam nada ter de sério na cabeça e só se lembravam dele para arreiar-se com parentesco, como se usassem um alfinete ou um camafeu caro.

      Quando lhe vinham em casa, nem um olhar amigo deitavam sobre aqueles seus livros, alguns que seu pai lhe dera em criança, antes que pudesse compreendê-los; e ele os tinha compreendido, amado, estudado com proveito…

      Lembrou-se de procurar os seus papeis mais íntimos e mais antigos. Coisas de quase quarenta anos passados em que não mexia há mais de trinta…

      Achou logo o maço, umas tiras, com umas notas de diário:

Hoje, 14 de outubro de 18… fui à casa de T., poeta moço e dos de mais fama. Leu-me uma peça história em verso. Não lhe senti a substância da poesia; é tudo aparência, rimas ricas, enjambements e não sei o que mais. É ele mesmo: muito amável, muito agradável, mas incapaz de sentimentos profundos e amplos. A obra é o homem, mas de homem que não pode interessar ninguém.’

      Não continuou a ler a página do diário inacabado e abriu um caderno em que havia tudo: notas de despesas, endereços de camaradas, indicações de livros etc. Encontrou, no meio de tudo isso, este apontamento:

      Conversando há dias com A. C. M., no seu quarto, não sei a que propósito, ele me disse:

      – A ciência, Malvino, demonstra isso…

      – Você, retruquei eu, já pensou bem em demonstrar a certeza da ciência?

      Ele, quase me cortando a palavra, objetou:

         – Já vem você com os seus paradoxos.’

      Nesse mesmo caderno, ainda topou com o seguinte, intitulado bizarramente:

      O meu decálogo. Não me interessar por mulher alguma; não ambicionar dinheiro; evitar o convívio com os poderosos, menos daqueles que eu estimar; não frequentar mais nenhuma escola superior; etc., etc.’

      Fechou o caderno, vexado com essas futilidades da sua primeira mocidade; ia restabelecer o maço de papeis e novamente amarrá-lo, quando um grande envelope fechado e lacrado, com alguma coisa volumosa dentro lhe chamou a atenção. Quebrou o lacre, abriu a sobrecarta e deu um uma flor, uma rosa, murcha, com esta etiqueta amarrada no pedúnculo: ‘Esta rosa foi-me dada por H., na tarde de Natal de 18…’

      Pôs a ‘curiosidade’ em cima da mesa e ficou a pensar:

      – Quem era?

      Forçou a memória, recordou fisionomias, fatos, públicos e privados daquelas épocas e de que fora testemunha…

      Tornou a perguntar a si mesmo:

      –  Quem era a H daquela rosa?

      Não lhe escrevera todo o nome, nem a presença daquela relíquia era capaz de estimular-lhe a memória a ponto de o fazer recordar-se dele naquela hora.

      –  Quem era?

      Absolutamente não sabia mais.

______________________________

Lima Barreto (1881-1922) foi jornalista e escritor. Autor, entre outros livros, de Triste fim de Policarpo Quaresma.

Nota


[i] Esta é uma crônica inédita de Lima Barreto, inédita em livro. Encontrei-a no jornal humorístico Dom Quixote, cuja idealização e direção vinham do amigo Bastos Tigre, para quem a crônica é dedicada. Trata-se de um texto muito importante. Além de ser um verdadeiro testamento intelectual e literário, toca em assuntos extremamente delicados para o autor: a solidão (mesmo sendo um rapaz extremamente sociável) e a ideia de Amor.

Lima Barreto não se casou, nunca namorou. As poucas referências que encontramos sobre relacionamentos com mulheres normalmente falam de encontros rápidos ou passagens em casas de prostituição. Evidente que o texto tem um contorno ficcional: o tal homem sobre quem o cronista traça o perfil tem sessenta anos… era um grande historiador e sociólogo…

Quem conhece um pouco da biografia e da obra de Lima Barreto, o modo como se interpenetram, vai conseguir, sem muito esforço, reconhecer esse homem, plenamente consciente de que não foi um derrotado na vida, como muitos vieram a dizer dele. Pode ser que tenha faltado um grande amor em sua vida, ou pelo menos ele não se concretizou.

Sofia Coppola: Priscilla e as memórias coletivas das mulheres

Sofia Coppola é delicada e crítica ao demonstrar que, longe de jornadas de heroína romântica ou leituras simplificadas de empoderamento, o caminho de autonomia feminina é complexo

Marília Ariza e Paulo Augusto Franco, Gama/Uol (expandir)


“Priscilla” (2023) é o mais recente filme dirigido por Sofia Coppola. Nele conhecemos as memórias de Priscilla Presley publicadas antes no livro “Elvis and Me” (1985). Nada nas telas parece se tratar de uma simples narrativa biográfica caracterizada por aquele suposto heroísmo tão próprio a esse gênero. O foco não está em Elvis, tampouco nas grandes narrativas Hollywoodianas que trataram de vesti-lo como o “rei do rock”. O protagonismo é todo de Priscilla, até então, uma personagem pública relegada às sombras do namorado/marido: o “gênio”. Ao nosso ver, o filme de Coppola descongela e subverte as tão conhecidas fotografias da fama, imagens que foram tornadas cenas estáticas no tempo. Nelas podíamos ver apenas uma jovem mulher posando ao lado de seu belo “rei” que, por sua vez, ostenta uma esposa sorridente, superficial e esteticamente irretocável.

As primeiras sequências do filme nos apresenta Priscilla Beaulieu, uma jovem de 14 anos que mora com os pais num regimento militar norte-americano na Alemanha ocidental, em plena Guerra Fria. É na pacata cidade de Bad Nauheim que ela conhece o sargento Presley. Os enquadramentos, na escala evidente, dramatizam o encontro apaixonado: desde a diferença de estatura entre ambos até a indumentária. Os contrastes entre a menina e o homem, entre o anonimato e a fama, entre o tédio e a excitação já tratam de encenar o futuro. Em pouco tempo vemos a transformação rápida de Priscilla. O vestido de corte romântico com cores sóbrias da menina inocente passa a conviver com a maquiagem borrada pelas emoções e desejos da mulher que acaba de retornar de uma estada com o namorado em sua mansão em Memphis, nos EUA. A escola e a adolescência provinciana tornam-se uma prisão telúrica para quem já sonha longe.

Priscilla deixa os pais e se muda para Graceland – por anos, antes de finalmente casar-se com Elvis. Vive ali um anonimato em tudo oposto à fama superlativa do namorado. Sua vida nova e secreta, contudo, não dissipa o ar de deslocamento experimentado na Europa – pelo contrário, parece acentuá-lo, traduzindo-o, apesar da aura de sonho, num cotidiano de solidão cortante e permanente inadequação.

O mundo de Priscila, neste momento, orbita a expectativa de reencontrar o amado, sempre ausente: é uma estudante desinteressada e uma jovem entediada que procura distrações para preencher dias vazios. Os sapatos de salto com suas solas sempre limpas praticamente só conhecem os tapetes felpudos da mansão. A imensa propriedade é seu mundo inteiro — a princípio vasto, com seus jardins imensos e salas repletas de móveis claros e adornos luxuosos, mas quase sem presença de energia humana, ela é, afinal, grande apenas no tamanho da solidão que proporciona. Paradoxalmente, ali Priscilla constrói um universo social e cultural apequenado, alienado na imaginação solitária e algo infantil de amor romântico e completamente desvinculado das dinâmicas que faziam da década de 1960 um período de intensa vivacidade para jovens como ela — o movimento de direitos civis, as tensões da Guerra do Vietnã, as experimentações com a contracultura e as drogas, e os ensaios de liberação sexual feminina.

Essas duas últimas dimensões de possível subversão do projeto amoroso conservador de Priscilla e Elvis são, inclusive, objeto do olhar afiado de Sofia Coppola. As pílulas para dormir e acordar consumidas por ele e, logo, também por ela, significam pouca ou nenhuma transgressão; a viagem lisérgica de ácido que protagonizam no quarto escuro, onde os vemos isolados repetidamente, é autorreferente, pouquíssimo imaginativa, quase decepcionante.

Priscilla é uma espécie de bibelô, um objeto na decoração da imensa casa, uma personagem marginal da fotografia do astro em sua mansão

É sobretudo a captura da sexualidade de Priscilla pelo controle tirânico de Elvis, que denuncia os limites da vida a princípio ousada que a jovem criou para si: ele constrange seu desejo — primeiro o estimula, e depois lhe põe freios, dela retirando o controle sobre a própria sexualidade. Ao mesmo tempo, controla seu corpo e sexualiza a menina de feições angelicais: tinge seu cabelo, escolhe suas roupas e tenta redesenhar o seu sorriso, esvaziando a autonomia de forjar para si uma nova imagem de mulher. Essa tensão entre a sexualização autoritária e a esterilização da sexualidade de Priscilla está também traduzida na imagem da estudante de maquiagem pesada, cabelos escuros e uniforme escolar – algo entre a ingenuidade de menina e sua fetichização. Assim, Priscilla é, para Graceland e seu dono, uma espécie de bibelô – um objeto na decoração da imensa casa, uma personagem marginal da fotografia do astro em sua mansão, sentado à poltrona, criança no colo e esposa ajoelhada ao lado.

Mas eis aqui um ponto que nos parece fundamental. Em nenhum momento, contudo, a diretora sugere que a relação distanciada de Priscilla com o mundo a seu redor e a intromissão de Elvis Presley na imaginação que faz de si mesma sejam expressão de uma vida interior adormecida. Pelo contrário, há uma contraposição marcante entre a esterilidade do mundo exterior e a intensa angústia do mundo interior de Priscilla – angústia essa que, afinal, é subvertida numa atitude de enfrentamento e busca por autonomia.

Encontramos no filme, desse modo, uma janela interessante para pensar a agência e o protagonismo feminino — Coppola é delicada e crítica ao demonstrar que, longe de jornadas de heroína romântica ou leituras simplificadas de empoderamento, o caminho de autonomia feminina é complexo: é a história da menina que enfrenta os pais para cruzar o mundo e viver o amor que sonha; é a contestação da tirania do namorado e marido, e os recuos diante do medo de perdê-lo ou desagradá-lo; é a relação com o corpo que se renova na prática das artes marciais — e também na sugestão de um caso amoroso com seu professor. É, por fim, a decisão de reclamar a própria história e partir, deixando para trás, com esforço e com certeza, um sujeito esgotado, autocentrado e entregue à penumbra de um quarto de hotel. É bonita, ainda que literal, a imagem de Priscilla dirigindo o carro, cruzando os portões de Graceland, enquanto Dolly Parton — cantora que desafiou o gênero country, até então, tão dominado por homens — canta no rádio a dor de “I will always love you”…

Ao subverter o projeto amoroso na matriz reprodutiva do patriarcado que tanto tenta confinar a mulher ao “culto da domesticidade”, para usar a expressão da escritora Anne McClintock, “Priscilla”, de Coppola, descongela e recusa as fotografias da família e da fama nos padrões Hollywoodianos. São imagens emolduradas em porta-retratos que exibem, como monumentos, o sonho norte-americano tão repleto de padrões misóginos: um sistema organizado de imagens. Podemos por aí, finalmente, arriscar que os arquivos de “Priscilla” são, de certo modo, memórias também coletivas. Eles vocalizam trajetórias de muitas mulheres públicas confinadas às sombras e aos lares claustrofóbicos de seus “reis” -, Diana e Jackie Kennedy, retratadas por outro sensível realizador, Pedro Larraín, Maria Antonieta, também de Sofia Coppola, e, no limite, a própria diretora, cujo sobrenome de peso já sugere ser ela mesma uma personagem, mesmo que não explícita, em seus filmes

MARÍLIA ARIZA é historiadora, professora, doutora e pós-doutora pela USP

PAULO AUGUSTO FRANCO é antropólogo, pós-doutor e pesquisador da USP, professor do curso de Direito da ESPM-SP


O valor volta à política

Renato Janine Ribeiro, A Terra é nossa (expandir)

Apresentação do autor ao livro recém-publicado

O futuro será melhor

“A política voltará a ter futuro” é um título-aposta, que preciso justificar. Hoje vivemos o descrédito dos políticos e da própria política. É um fenômeno mundial. Se deixarmos de lado o papa Francisco, o Dalai Lama e a chanceler alemã Angela Merkel, que líderes democráticos temos no mundo, no começo de 2021? E notem que os dois primeiros são do campo espiritual: no plano da política propriamente dita, que por definição é leiga, restou apenas a dirigente da Alemanha, que aliás quando sair este livro já deverá ter deixado o poder, como anunciou. Restam governantes medianos, médios ou medíocres, na melhor das hipóteses; a maior parte é realmente ruim. É verdade que Rússia e China, dois países ex-comunistas que não são democracias, têm governantes acima da média; mas isso apenas prova que hoje faltam lideres às democracias.

Já o descontentamento com a política pode se dever a muitas causas – até mesmo ao fato de que o mundo se democratizou. O descontentamento seria – paradoxalmente – fruto de um relativo sucesso? Como talvez meia humanidade hoje disponha de liberdade pessoal e política, já não a empolgaria lutar por mais, nem para si mesma, nem para os outros seres humanos a quem faltam essas liberdades.

A democracia, realizando-se – mas de forma banal, nada utópica – nos teria colocado frente a nossa própria banalidade: teríamos líderes medíocres, porque o eleitorado se reconhece neles. A frase célebre de Umberto Eco, segundo a qual a internet deu voz aos imbecis, implicaria que esses imbecis não queiram mais eleger pessoas que admirem, em quem se possam inspirar – mas sim os clones deles, imbecis. A mediocridade hoje é vista como sinal de autenticidade. Comparem, na França, Sarkozy e Hollande, em nosso século, a de Gaulle e Mitterrand, poucas décadas antes: um abismo separa os dois chefes de Estado que tinham noção da grandeza de seu país e os presidentes mais recentes (e que não foram os piores chefes de Estado de nosso século, notem bem).

Ou o descontentamento com a política pode decorrer, trivialmente, da crise econômica de 2008, que demorou a repercutir no Brasil mas, destruindo riquezas mundo afora, gerou uma queda generalizada do nível de vida. Nesta hipótese, a vida política se torna efeito da vida econômica. A confiança num líder derivaria do crédito com o qual ele irriga a economia, facilitando a compra de bens de consumo (o que desenvolvo num artigo deste livro). Já faz tempo se afirma um declínio do homem contemporâneo, que estaria indo de cidadão a consumidor. Parece que, finalmente, em nossos dias, a cidadania foi substituída pelo consumo – ou, pelo menos, se viu fortemente subordinada a ele. Se nosso nível de vida não subir o tempo todo, nos decepcionamos. Parece ser esse o principal critério para as pessoas decidirem o voto.

Não se trata de pessoas indignadas com a perda de seu nível de vida: elas se revoltam porque se frustrou seu desejo de terem sempre mais. Vivem na comparação: embora no Brasil os anos Lula tenham melhorado a vida dos miseráveis e pobres sem prejudicar os mais abastados, estes se sentiram diminuídos, muitas vezes, ao se compararem àqueles. Viveram uma perda de status, mas só por comparação. (Rousseau considerava isso o pior traço da vida em sociedade: o ser humano deixa de ser “homem da natureza”, o que traduzo simplificadamente como “ele mesmo”, do modo que nasceu, e passa a ser “homem do homem”, isto é, alguém incapaz de saber quem é e que só consegue se enxergar emprestando o olhar alheio).

Assim, estes anos se tornaram maus para a política. Ainda mais se eu tiver razão na hipótese que levantei, em meu livro A boa política, de que hoje política se torna sinônimo de democracia, isto é: em vez de política se referir a poder, e de o substantivo “poder” se dividir em democrático, ditatorial, despótico autoritário, totalitário, em suma, em várias espécies, somente haverá política (o regime no qual a força é substituída pela palavra, pela persuasão) em nossos dias quando houver democracia. Quer dizer: estes últimos anos também foram negativos para a democracia.

Por quê?

Há duas respostas possíveis.

1.

A primeira, sugeri acima, é que se teria chegado a certa satisfação com o que se obteve. Com metade da população mundial protegida da fome, da miséria, da opressão deslavada, o que essa maioria há de querer ainda? O pensamento liberal e o capitalismo – que sabe que não pode fornecer o melhor dos mundos imagináveis – promoveram uma desqualificação em regra da utopia. Ela passou a ser entendida como algo impossível, ou pior, negativo: porque, lutando por um homem melhor, se entraria no mundo da ditadura, do totalitarismo, da mentira.

Ora, se é inútil melhorar a sociedade, o que podemos esperar – além do consumo? Viveríamos numa “democracia resignada”. A cada tentativa de ir além, ouvimos a mesma resposta: é impossível. Muitos argumentos foram construídos para justificar tal mediocrização da política. Alega-se que o ser humano é egoísta e que o comunismo, querendo criar um “homem novo”, acabou produzindo contrafações, mentiras. Melhor, então, termos um homem egocêntrico, mas que respeite as leis e maximize seus ganhos, do que um homem que se diz melhor, mas, na prática, é pior. Nós nos deteríamos num saudável, ainda que enfadonho, meio termo. (E insistamos no enfadonho…).

Mas o erro dessa perspectiva é que só faz sentido se for contraposta a uma miragem, a um espantalho. Ela precisa desesperadamente do comunismo como contraponto. Daí que hoje, quando nada resta do comunismo no poder ou mesmo como alternativa de poder, haja quem denuncie como “comunismo” o que é simples social-democracia ou, mesmo, liberalismo. É o que faz a extrema-direita no Brasil, nos Estados Unidos, nos países em que chegou ao governo ou se tornou alternativa de poder, como na própria França, onde há um receio de que, por insistência, algum Le Pen acabe chegando à presidência… Daí que a própria ecologia, ou os movimentos por uma vida mais saudável mental e fisicamente, sejam desqualificados como totalitários, o que é puro absurdo.

Esse erro de concepção é, porém, muito eficaz, ao abortar voos maiores, ao manter a humanidade numa vida mesquinha, do ponto de vista espiritual e moral. Resumindo, o capitalismo triunfou ao custo de reduzir, o máximo que pôde, o alcance da democracia.

2.

A segunda resposta é que estejamos vivendo uma reação. Muitos estudiosos da sociedade já usaram a metáfora do coração, que alterna sístole e diástole. A um período de fechamento, segue-se um de abertura, e assim sucessivamente. Ocorre que se abriu muito o leque de liberdades. Houve quem se chocasse com isso. Com efeito, as mulheres se tornarem iguais em direito aos homens, os negros aos brancos, as diversas orientações sexuais serem aceitas, imigrantes se destacarem nas sociedades para onde foram – tudo isso aconteceu rapidamente.

Pensemos no casal: poucas décadas atrás, o homem era o chefe da família. Bastava ele se casar para ser investido numa série de poderes, entre eles o de definir o domicílio familiar (portanto, se quisesse mudar de casa ou mesmo cidade, poderia impor a mudança à esposa), para não falar numa quantidade de privilégios mesquinhos – como, por exemplo, a mulher só poder abrir conta bancária ou tirar passaporte com a permissão dele. O fim dessa prepotência é recente, e sucedeu praticamente de uma geração para outra. Então, um homem cujo pai mandava na mãe se casa hoje com uma mulher com quem precisa repartir todas as decisões, sem haver uma instância final que resolva todas as pendências.

Por milhares de anos, em todas as estruturas de poder, em caso de impasse, sabia-se quem decidia. Hoje, no casal, não há mais isso – ou há cada vez menos. E em outras relações de poder, como com os filhos, a mesma tendência se observa. Antes, o laço se mantinha a todo custo, porque um mandava. Hoje, não há mais esse Um que manda – não nas relações de amor, pelo menos. O impacto social dessa mudança é enorme. A quantos maridos seus pais não disseram, essas últimas décadas, que tinham de mandar na mulher, eventualmente até usando da força bruta? Só que isso, além de não funcionar mais, virou crime.

A reação então é exatamente isso: uma resposta reacionária. Diante do avanço da liberdade das mulheres, acumulou-se um rancor cada vez menos surdo dos que se sentiram diminuídos. Temos machos diminuídos, brancos diminuídos, ricos diminuídos (esses, nem tanto…), nativos “da gema” (como dizíamos das pessoas cujas famílias viviam havia muito tempo na mesma cidade ou Estado) ou “quatrocentões” (como se dizia dos paulistas cujas famílias imigraram há mais tempo para o Brasil) diminuídos. Confusamente, essas diminuições, essas humilhações com frequência mais imaginadas do que reais, se somaram. E, vindo uma crise econômica que debilitou o governo petista, o qual ficou diretamente associado a essas mudanças, e também o partido que antes governou o Brasil, o PSDB, que igualmente defendeu os direitos humanos, ambos foram assimilados como “imorais” e até mesmo “comunistas”, e o ódio envolveu a todos na mesma lama.

Se esta segunda resposta valer, estaremos diante de um período transitório de reação, como o que se chamou Restauração e dominou a Europa depois da derrota de Napoleão em 1814-15, mas depois ruiu. Em 1830, na França, o regime conservador foi substituído por uma monarquia burguesa, constitucional.[i] Em 1848, as revoluções que se alastraram pela Europa foram esmagadas na maior parte, mas mudaram decisivamente a forma de ver a política. No final do século XIX, restrições ao poder dos reis já valiam em muitos países. Espero, evidentemente, que não demoremos tanto tempo!

3.

Não demoraremos, pela simples razão de que o tempo se acelerou. O que tardava décadas hoje dura anos. Anos passam em meses ou semanas.

O que fazer? Depende do peso de cada uma das duas respostas que sugeri acima, mas as ações desejáveis convergem em ambos os casos. Se prevalecer a segunda possibilidade, isto é, se estivermos vivendo uma reação dos que neste mundo novo se sentem como peixes fora d’água, a retomada da onda democrática será questão de tempo. Lembro o plebiscito britânico sobre o Brexit: a saída do Reino Unido triunfou, mas graças aos mais velhos, mais interioranos, menos estudados.

O resultado de sua decisão é provavelmente irreversível – pelo menos por muito tempo – mas a verdade é que, se o plebiscito tivesse lugar dez anos depois, o eleitorado decidiria de outro modo. Como a igualdade tem crescido nos últimos tempos, dentro de alguns anos a reação reacionária (um pleonasmo proposital, para deixar claro de que se trata) se terá esgotado. Aqueles que escolheram o retrocesso perderão a parada. Terão causado sofrimento, às vezes agudo, mas não têm futuro.

E se valer mais a primeira resposta, isto é, o apelo democrático se tiver esgotado? Essa hipótese é mais grave. Mas sustento que, se ele se exauriu, foi porque se viu reduzido a um apelo medíocre, limitado, enfraquecido. Para a democracia vencer, ela abriu mão de muitas de suas potencialidades. Para ir direto ao ponto: a democracia parou na porta da empresa. Houve democratização na política, sim; no casal; até mesmo no amor e na família. Mas, lá onde o capital manda mesmo, democracia não houve. É o que temos de conquistar agora. Por um lado, manter a defesa e expansão da democracia no amor (que despertou os demônios da reação), por outro, assegurar que ali onde a maior parte das pessoas passa a maior parte de seu tempo – o local de trabalho – também aumente a liberdade.

Não será fácil.

A política anda a passo rápido e, por isso mesmo, se a filosofia política quiser continuar discutindo apenas os grandes conceitos, terá dificuldade em apreender o que de fato acontece, o vivido imediato. Ou seja: temos que rever nossos grandes conceitos, acrescentar-lhes outros, aceitar o inesperado.

Mas tem que ficar claríssimo que para a democracia é essencial ela expandir-se. A democracia não é um regime do qual se possa dizer paramos aqui. Proclamamos a independência (no Brasil) ou ela e a República (nos Estados Unidos) e agora mantemos a escravidão. Fazemos democracia, mas só para os ricos, só para os brancos. Não, não: ela contagia. Stendhal percebeu isso muito bem, numa passagem que já citei em outro artigo – e a fantástica convergência conosco é que ele falava de um fenômeno brasileiro, a revolução de 1817 em Pernambuco: “A liberdade é como a peste. Enquanto não se lançou ao mar o último pestífero, não se fez nada”. [ii]

4.

Os artigos aqui reunidos foram inspirados por um forte otimismo: o Brasil tinha consolidado a democracia e daí em diante apenas a fortaleceria. Hoje, vivemos um retrocesso que não consiste apenas na vitória do antipetismo, mas na da antipolítica, que levou PT e PSDB de roldão. A política foi substituída pelo ódio, e não apenas no Brasil.

Mas a política há de voltar. Ela tem futuro, melhor dizendo: o futuro depende dela. Por política, já afirmei que entendo a política democrática. Política não é mais uma palavra genérica que cobre todos os tipos de poder, inclusive os despóticos. Política não se refere mais a qualquer poder, mas à pólis, à organização de base em que os cidadãos decidem, em que o demos se faz ouvir. As crônicas que aqui reúno eram otimistas. Um moderado otimismo continua fazendo sentido. Isso depende muito de nós.

Comparo o período atual ao posterior à crise de 1929: também uma devastação econômica, à qual se seguem custos sociais elevados e o fortalecimento da extrema-direita. Contudo, hoje dispomos de (i) numerosos movimentos e organizações comprometidos com a melhora do mundo, (ii) um conhecimento sem precedentes dos problemas e de suas soluções. Assim, a grande questão agora é unir as forças favoráveis à democratização, não só da política como das relações macro e microssociais, bem como à sobrevivência de nossa espécie num planeta cuja natureza tem que ser respeitada. Eis nossa tarefa.   

5.

Este livro faz parte de uma espécie de tetralogia: quatro obras que têm em comum, embora em formatos bem distintos, o empenho em aplicar a filosofia política e outros conhecimentos das ciências humanas, em especial a história, à política tal como se faz; aplicar a teoria à prática, em especial à brasileira, que vezes sem conta é tratada, em nossa academia, mesmo  nas áreas de Humanidades e Ciências Humanas, como pouco digna da alta teoria; e, não menos importante, mudar a teoria a partir do confronto com o mundo político e social. Isso porque geralmente a filosofia política lida com altos conceitos, como soberania, representação, democracia, mas se ocupa pouco do frágil e tenso cotidiano da política, que é onde – numa sociedade democrática contemporânea – as coisas se jogam.

Houve uma mudança na temporalidade da política, que nem sempre a filosofia (política) levou na devida conta. Nos regimes não democráticos, o tempo fluía vagaroso. Um faraó, um rei podiam governar décadas. O poder não mudava muito de natureza ao longo de séculos. Hoje, a cada poucos anos há eleições – e não digo que elas sejam a causa da aceleração da política, podem ser sua consequência: a vida aumentou, muito, sua velocidade.

As instituições antigas, quando o poder descia em vez de subir, quando vinha dos Céus em vez de ascender do povo, eram mais sólidas. Já as nossas devem à vontade popular a pouca solidez que têm, mas enfrentam os sobressaltos da economia e a inconstância de seus elementos, que podem em poucos anos desfazer o que parecia consagrado. (Assim foi que o Brasil, em que a democracia parecia consolidada, veio dar no que deu).

A política anda a passo rápido e, por isso mesmo, se a filosofia política quiser continuar discutindo apenas os grandes conceitos, terá dificuldade em apreender o que de fato acontece, o vivido imediato. Ou seja: temos que rever nossos grandes conceitos, acrescentar-lhes outros, aceitar o inesperado.

Artigos escritos ao longo de quatro anos, toda semana, para um jornal sério me permitiram utilizar os conceitos que aprendi, somados a meu conhecimento histórico, para procurar entender o que estava acontecendo. Minha perspectiva não era a do cientista político nem a do economista, que geralmente são quem comenta a atualidade do poder no primeiro caderno dos jornais; não era do economista, por razões óbvias; a diferença com o cientista político pode ser mais difícil de estabelecer. Mas ela tem a ver com a relação com os conceitos e a temporalidade, como afirmei acima. E é claro que o teste dos conceitos na realidade levou-me a contestá-los, até mesmo modificá-los.

6.

Esta obra talvez devesse ter sido a primeira a sair da tetralogia mencionada, mas não é o caso. Ao longo de quatro anos, entre maio de 2011 e março de 2015, publiquei com absoluta liberdade uma coluna no Valor Econômico,em que discuti a política brasileira. Eram tempos de esperança, que coincidiram com o primeiro mandato da presidenta Dilma Rousseff (no livro ora uso a forma presidente, ora presidenta; ambas existem em português; a segunda é abonada por Carlos Drummond de Andrade, o que me basta em termos de qualidade).

Escrever toda semana foi uma espécie de teste, de experiência para ver como os conceitos com que trabalhei a vida toda, na filosofia política e na ética, bem como no conhecimento de história que elas me obrigaram (com enorme prazer) a adquirir, funcionavam na prática. Não há frase do senso comum que eu deteste tanto quanto a teoria na prática é outra. Ela apenas significa que a teoria em questão é ruim. Tem que ser trocada. A prática é a grande fonte para as teorias, é o terreno também onde testá-las.

Aqueles também foram, para mim, anos de formação. Procurando entender o que acontecia na política brasileira por um viés que não é o do jornalista, nem o do cientista político, espero ter aprendido alguma coisa. Uma qualidade do intelectual, que me parece imprescindível, é estar sempre em formação: nunca parar de aprender, nunca parar de se surpreender.

A Boa Política, dos quatro livros o primeiro a aparecer (em 2017), inclui artigos anteriores a minha experiência de colunista, mas também a leva em conta. O objetivo principal dessa obra foi ver o que, em nossa cultura, brasileira e/ou latino-americana, destoa do mainstream do Atlântico Norte. Defendo há tempos a tese de que as teorias políticas hoje dominantes foram gestadas e aplicadas no território que coincide com a antiga OTAN, isto é, os dois países anglo-saxônicos da América do Norte (acho estranho que se inclua nesse subcontinente o México) e as nações da Europa Ocidental.

Lá nasceu, lá cresceu, lá prospera a democracia moderna ou contemporânea. Fora desse espaço podem estar a “maior democracia do mundo”, como é praxe designar a Índia, ou o Japão, potência econômica, bem como vários países da América Latina, mas todos nós temos diferenças específicas que não são devidamente consideradas na alta teoria democrática.

Pensando sobretudo no Brasil e por extensão na América Latina, tenho insistido no elemento afetivo, que é parte essencial de como vemos a política, seja sob a forma de um afeto autoritário (o nome de outro livro meu, em que testei esta questão usando, sobretudo, o corpus da televisão) ou de um afeto democrático, cuja construção pode ser a principal contribuição de nossa parte do mundo para a reflexão e a prática da democracia. Eu me explico: democracia e república, dois componentes essenciais do que chamo “a boa política”, são tratados de forma muito racional no pensamento do Atlântico Norte. Conseguir uma política democrática e republicana decorreria de um grande esforço por superar as tendências egocêntricas e particularistas, que seriam, pensam muitos, mais “naturais” ao ser humano.

A boa política seria uma construção laboriosa e racional. Já, quando a política se assenta nos afetos, ela tenderia a ser facciosa, parcial. O que sustento é que a democracia somente será forte se for capaz de democratizar os afetos: se ela se inscrever nos sentimentos, nas emoções. O que, por sua vez, dá sentido à educação (e a sua irmã, a cultura): são elas que podem gravar no mundo afetivo valores como a igualdade, a solidariedade, a decência. Ter sido ministro da Educação do Brasil, em 2015, obviamente me ajudou a pensar este ponto.

Tal ideia vem junto com a de que a democracia é um regime não só político, mas de convivência humana. Se na modernidade ela dizia respeito essencialmente ao Estado, aos poucos foi-se tornando cada vez mais pertinente à sociedade, isto é, às relações tanto micro quanto macrossociais. Tem que haver democracia no casal, na família, na amizade, assim como na empresa, no lazer – em toda a parte. E evidentemente tal necessidade colide com a realidade do capitalismo, que precisa, pelo menos, ser compensada por exigências sociais e legais que introduzam a democracia nas relações de trabalho.

A Pátria Educadora em Colapso (2018) é uma narrativa e análise do período de seis meses em que fui ministro da Educação, no segundo mandato da presidenta Dilma Rousseff. Eu já tivera uma experiência de gestão como diretor de Avaliação da CAPES, entre 2004 e 2008, mas isso não se compara à direção de um ministério importante: minha diretoria nos anos 2000 tinha um orçamento livre de 1 milhão de reais, em 2015 o MEC movimentava 140 bilhões… O importante, nesta posição, foi ver a política de um ângulo que o pensador independente dificilmente imagina. Aliás, sempre sustentei que uma das ideias mais fortes de Marx – e isso independe de você ser socialista ou não – consiste em enxergar os fenômenos políticos, sociais e econômicos do ponto de vista do poder.

É isso o que faz o marxismo ser diferente de um movimento reivindicatório, que pede (ou mesmo exige, isso não faz diferença) que o detentor do poder ceda ou faça alguma coisa: a questão marxista é tomar o poder e, a partir daí, fazer as mudanças que pretende. Não é se manter na posição pedinte, subalterna ou mesmo rebelde. É inverter radicalmente as relações de poder. Não digo que ser ministro seja propriamente ter poder; como desenvolvo no livro citado, não tínhamos dinheiro; isso enfraqueceu demais o governo Dilma e é a principal razão para ela ter sido destituída. Mas penso que a experiência do poder, forte ou fraca, faz falta a muita gente que pretende pensar a política ou a sociedade.

Assim, A boa política é a obra teórica, um livro de filosofia política, em que me empenhei em pensar a melhor política de nosso tempo e dos vindouros, utilizando em parte os clássicos da filosofia, em parte o que eu chamaria um estilo filosófico de lidar com a política. Tem em comum com este livro o otimismo, a convicção de que a democratização do mundo, inclusive do mundo da vida, das relações pessoais, é um caminho sem volta.

A Pátria Educadora em Colapso é um relato de minha experiência como ministro, bem podendo ser o anúncio da má política, ou de como a terra prometida se converteu em Armageddon. Ou, por outra: se A Boa Política é um livro de teoria descrevendo e talvez prescrevendo a prática, o presente livro é um esforço cotidiano, ao longo de quatro anos, para entender a política vivida, imediata à luz da filosofia. A Pátria Educadora em Colapso é o relato da queda de um anjo, este anjo sendo a democracia.

Ao mesmo tempo que terminava este livro, concluí uma obra mais  curta, sobre Maquiavel, a democracia e o Brasil; ela converge com as outras três: nela discuto como Maquiavel, falando dos príncipes novos, pode servir para pensar a democracia, na qual por definição todo governante é novo, devendo seu cargo à eleição; e também uso seus conceitos de virtù e fortuna, para pensar a ação política, exemplificando com os presidentes brasileiros de 1985 em diante.

7.

Estes artigos foram escritos num período otimista, em que os problemas, como os apontados nos protestos de 2013, pareciam ter solução – talvez difícil, exigente, mas já despontando no horizonte. Depois, tudo mudou. Mas penso que estas colunas continuam valendo: selecionei aqui apenas aquelas que a meu ver têm futuro. Retirei todas as que diziam respeito ao cotidiano da política e cuja publicação obedeceria mais a um critério de registro do que de atualidade. Com isso, pude manter atual este livro, que em vez de se reduzir a uma memória, um documento histórico, pode ajudar a inspirar o futuro.

São Paulo, janeiro de 2021.

*Renato Janine Ribeiro é professor titular aposentado de filosofia na USP. Autor, entre outros livros, de Maquiavel, a democracia e o Brasil (Estação Liberdade). https://amzn.to/3L9TFiK

Referência


Renato Janine Ribeiro. O valor volta à política – discutindo a política a partir da filosofia e da história. São Paulo, Editora Unifesp \ Edições SESC, 2023. 312 págs. [https://amzn.to/48XlUe8]

Notas


[i] Embora a Carta outorgada em 1814 por Luís XVIII previsse um Parlamento, a legislação posterior e a prática dos governos desse rei e de seu irmão e sucessor, Carlos X, foi autoritária. Somente com Luís Felipe, a partir de 1830, se pode falar em monarquia constitucional, comparável à britânica.

[ii] Como o texto é notável, traduzo-o por inteiro:

A admirável insurreição do Br[asil], talvez a maior coisa que pudesse acontecer, me dá as ideias seguintes:

A liberdade é como a peste. Enquanto não se lançou ao mar o último pestífero, não se fez nada.

O único remédio contra a liberdade são as concessões. Mas é preciso empregar o remédio a tempo: vejam Luís XVIII.

Não há lordes, nem brumas, no Brasil.

Stendhal, “Débris du manuscrit”, referentes a Rome, Naples et Florence en 1817, in Stendhal, Voyages en Italie, ed. Pléiade, Paris: Gallimard, 1973, p. 175.

Para os brasileiros pobres, continua um bom negócio votar na esquerda?

Wilson Gomes, Folha (expandir)

Adeus Marx, a luta racial explica tudo, a luta de classes nada esclarece, a população deve votar com o racismo em mente

Se uma pessoa é pobre ou vive na miséria, continua um bom negócio votar na esquerda? Os defensores do liberalismo econômico argumentam que a esquerda não resolve efetivamente o problema dos pobres, por ser incapaz de gerar riqueza. Na visão deles, tudo o que a esquerda consegue fazer é socializar a pobreza ou criar Estados que acodem os pobres, nada mais.

No entanto, esse tipo de argumento, seja verdadeiro ou falso, raramente se torna uma "razão de voto" para os mais vulneráveis da sociedade. Quem tem fome e vive na precariedade, com a vida por um fio, não tem doutrina econômica preferida, tem é urgência.

Ilustração de Ariel Severino para coluna de Wilson Gomes - Ariel Severino

É nessa perspectiva a minha indagação sobre se os pobres continuam tendo boas razões para votar na esquerda. Intuitivamente, pareceria que sim. Afinal, até onde meu conhecimento alcança, ser de esquerda consiste em priorizar a igualdade, inclusive a igualdade econômica.

A questão é que há muita gente se esforçando para convencer os pobres de que a esquerda não é um bom negócio. Conservadores de direita insistem com os pobres, com bastante sucesso há alguns ciclos eleitorais, que colocar a pobreza como principal razão para sua decisão eleitoral é um erro: mais importante do que escapar da pobreza é a vida moral.

Uma conclusão coerente em um universo em que já se aceitou a tese da equivalência entre a esquerda e a corrupção. Corrupção moral, que fique bem claro. Nesse caso, mais vale salvar sua alma imortal do que compactuar com a imoralidade por uma Bolsa Família.

Além disso, governos de esquerda, mesmo que programas sociais e iniciativas para aumentar emprego e renda causem um impacto significativo, não apresentam soluções consistentes para superar a pobreza, nem a curto prazo, nem de maneira sustentável ao longo do tempo. A pedra que nos governos Lula se empurrou ladeira a cima, rolou de volta no governo Dilma e continua lá embaixo.

Se você, como eu, não gosta do raciocínio, isso não tem a menor importância. Não apresento a realidade de que eu goste. Basta não ser cego para notar que muitos brasileiros pobres e miseráveis consideram a moralidade como fator decisivo para o voto, em vez de políticas sociais destinadas a combater a pobreza.

Sabe quem mais está fazendo um esforço significativo para comunicar aos pobres que a esquerda deixou de ser uma opção vantajosa? A própria esquerda. Ou pelo menos uma parte dela que hoje faz muito barulho no governo e no debate público. Essa parcela transmite incessantemente a seguinte mensagem: a razão principal para o voto não deve ser seus interesses de classe, mas sim sua identidade racial, de gênero e orientação sexual.

Se você é pobre e miserável, mas também preto, trans, mulher e homossexual, tudo bem; no entanto, se for pobre e não pertencer a qualquer uma dessas identidades, você é parte do problema. Eu não sou um homem, branco, heterossexual e cisgênero, mas se o fosse —e adotasse a minha "identidade" como principal razão eleitoral, como os identitários propõem— é provável que não votasse em uma esquerda que nada tem a me oferecer a não ser culpa e exigências de compensação por delitos que julgo não ter cometido.

No caso racial, se você pensar que apenas 10,2% dos brasileiros se identificam como pretos, 43,5% acham que são brancos, enquanto 45,3% consideram que não são nem pretos nem brancos, é muita gente deixada de fora do barco da nova esquerda. Se você disser a uma população formada desse modo que ela precisa votar "como negro", condição com a qual cerca de 90% das pessoas não se identifica, e não "como pobre", os resultados são previsíveis. Façam as contas.

No entanto, é disso que se trata. Recentemente, foi noticiado que metade dos concluintes do Ensino Médio no Brasil não participou das provas do Enem. Esse é, sem dúvida, um dos dados significativos para qualquer projeto que pretenda enfrentar efetivamente o problema da pobreza no país. Fora um registro de perplexidade do ministro da Educação, o escandaloso dado praticamente escapou ao debate público.

Como ninguém "racializou" o fato de que metade dos nossos estudantes interrompeu sua formação, condenando-se automaticamente a uma vida muito mais difícil, o assunto foi deixado de lado. Em vez disso, o foco central da discussão foi a ministra da Igualdade Racial explicando enchentes e desigualdade urbana com base no racismo.

Adeus Marx, a luta racial explica tudo, a luta de classes nada esclarece. Sobretudo, não vote com base na sua condição de pobre, vote com o racismo em mente.

Vai dar muito certo, confia.

Forças democráticas empolgam Conferência Nacional de Educação e teses progressistas ganham destaque em documento final do evento

cena brasileira

Você compraria alguma coisa dessa gente?

O que a PF investiga contra os Bolsonaro

# O vereador Carlos Bolsonaro faria parte do ‘núcleo político’ de um esquema de monitoramento ilegal por meio da Abin (leia aqui a matéria completa em Carta Capital) # O que se sabe e o que ainda não se sabe sobre a Abin paralela (BBC) # Uma organização criminosa sob Bolsonaro, define ministro Padilha (RBA)

o que há de novo? 29-01-24

O que está por trás da pressão contra a indicação de Guido Mantega para a presidência da Vale?

Argentina: # Por que 'los hermanos' inundam as ruas. Veronica Gago (O.P.)

Gaza:  # As causas do massacre. José Luiz Fiori (A Terra é redonda)

Campos Neto confronta Lula e articula PEC para ampliar descontrole do Banco Central

Eduardo Gayer, Estadão (expandir postagem)

Presidente do BC defende dar ao Congresso o poder de fiscalizar a instituição, enquanto Fazenda prefere supervisão pelo Conselho Monetário Nacional; autarquia não se pronunciou


O presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, negocia a PEC da autonomia financeira da autoridade monetária em termos rechaçados pelo governo federal. Na avaliação de interlocutores do Palácio do Planalto, uma crise entre o economista e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva — após meses de calmaria — está contratada para fevereiro, se os bombeiros de plantão não buscarem mediar o impasse já na volta do recesso parlamentar.

Sem ter procurado, até agora, o ministro Fernando Haddad (Fazenda) para falar sobre o assunto, Campos Neto sinalizou a aliados no Senado seu apoio ao trecho da PEC que dá ao Congresso o poder de supervisionar o Banco Central. Pelo texto, de autoria do senador Vanderlan Cardoso (PSD-MG), o BC terá “a autonomia de gestão administrativa, contábil, orçamentária, financeira, operacional e patrimonial sob supervisão do Congresso Nacional”. Procurado, o BC não comentou.

A tese está em rota de colisão com o pensamento de Lula, que tenta frear o avanço de Câmara e Senado sobre o que considera prerrogativas do Executivo. Nos bastidores do governo, uma proposta considerada razoável para negociação seria designar o Conselho Monetário Nacional (CMN) como o fiscalizador do BC. O órgão é formado pela presidência do banco, pelo ministério da Fazenda e pelo ministério do Planejamento, hoje sob o comando de Simone Tebet.

A autonomia do BC em três dimensões —operacional, administrativa e financeira — era uma bandeira de Roberto Campos. Seu neto, o atual presidente da autarquia, não quer deixar o cargo em dezembro sem transformar ver o sonho do avô se concretizar. Com o calendário de votações no Congresso apertado pelo ano eleitoral, Campos Neto sabe que precisa acelerar as tratativas.

Designado relator da PEC na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, Plínio Valério (PSDB-AM) diz não ter opinião formada sobre a divergência entre BC e governo em torno da fiscalização da autoridade. “A única coisa que decidi é que vou conversar com todos: com Roberto Campos Neto, com os funcionários do Banco Central e com o Jaques Wagner (líder do governo no Senado)”, afirmou à Coluna do Estadão. As tratativas devem esquentar com o fim do recesso parlamentar, em fevereiro.

De qualquer forma, Plínio Valério é favorável a dar mais independência à autoridade monetária. Ele foi o autor da lei complementar que deu autonomia ao BC, ainda no governo Jair Bolsonaro. “Se agora for para melhorar a autonomia do nosso projeto, legal, eu vou melhorar”, acrescentou.

Histórico entre Lula e Campos Neto é de divergências

No início do mandato, Lula direcionava sua artilharia em Campos Neto pela alta taxa de juros, e chegou a chamá-lo de “esse cidadão”. Com o início do ciclo de cortes na Selic, a tensão diminuiu e o presidente do BC chegou a comparecer à confraternização de fim de ano promovida pelo presidente a seus ministros na Granja do Torto.

A relação institucional entre Lula e Campos Neto foi costurada por Haddad e por Gabriel Galípolo, ex-secretário executivo da Fazenda e hoje diretor de Polícia Monetária da autoridade por indicação do presidente.

pensatas do fim de semana 26-28-01-24 

Americanas: delícias do capitalismo brasileiro
# Justiça avalia se patrimônio do trio bilionário deve pagar funcionários (Uol)

Tragédia de Mariana: delicias da privatização
# Vale, BHP e Samarco são condenadas a pagar 47,6 bi pelo desastre de 2015 (Uol)

Rio Grande do Sul: delícias da privatização:
# Porto Alegre no escuro (A Terra é redonda)

o que há de novo? 24-01-24

Quem mandou matar Marielle

Ronnie Lessa delatou Domingos Brazão como mandante da morte de Marielle Franco. André Uzeda, Fávio Costa, Carol Castro (Intercept). 

Marielle Franco virou um símbolo internacional após seu assassinato no dia 14 de março de 2018. Com os olhos do mundo no Rio de Janeiro, todos estão perguntando: 

# Quem mandou matar Marielle? E por quê?

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CONFIRA A SÉRIE COMPLETA


Ronnie Lessa, o ex-PM acusado de matar Marielle Franco e Anderson Gomes, delatou Domingos Brazão como um dos mandantes do atentado que matou a vereadora e seu motorista. A informação exclusiva foi confirmada pelo Intercept Brasil por fontes ligadas à investigação.

Preso desde março de 2019, Lessa fez acordo de delação com a Polícia Federal. O acordo ainda precisa ser homologado pelo Superior Tribunal de Justiça, o STJ, pois Brazão tem foro privilegiado por ser conselheiro do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro.

Procuramos o advogado Márcio Palma, que representa Domingos Brazão. Ele disse que não ficou sabendo dessa informação. Disse também que tudo que sabe sobre o caso é pelo que acompanha pela imprensa, já que pediu acesso aos autos e foi negado, com a justificativa que Braz
Em entrevistas anteriores com a imprensa, Domingos Brazão sempre negou qualquer participação no crime.

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O também ex-policial militar Élcio de Queiroz, preso por participação na morte da vereadora do Psol, já havia feito uma delação em julho do ano passado. À Polícia Federal, ele confessou que dirigiu o carro durante o atentado que chocou o país. O crime aconteceu no dia 14 de março de 2018, no bairro de Estácio, centro do Rio de Janeiro.

Ex-policial do Bope, Ronnie Lessa foi condenado em julho de 2021 por destruir provas sobre o caso. Lessa, a mulher, o cunhado e dois amigos descartaram armas no mar – entre elas, a suspeita de ter sido usada no assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes.

Conselheiro do TCE do Rio, Domingos Brazão foi apontado como mandante do caso, segundo informação exclusiva obtida pelo Intercept. Foto: Foto: Tércio Teixeira/Domingos Brazão

A motivação de Brazão para mandar matar Marielle Franco

Ex-filiado ao MDB, Domingos Brazão figurou entre os suspeitos do caso. Em 2019, chegou a ser acusado formalmente pela Procuradoria-Geral da República, a PGR, de obstruir as investigações.

Brazão passou quatro anos afastado do cargo de conselheiro no TCE, após ser preso, em 2017, na Operação Quinto do Ouro, um desdobramento da Lava Jato no Rio de Janeiro, sob acusação de receber  propina de empresários. 

A principal hipótese para que Domingos Brazão ordenasse o atentado contra Marielle é vingança contra Marcelo Freixo, ex-deputado estadual pelo Psol, hoje no PT, e atual presidente da Embratur. 

Quando era deputado na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, Domingos Brazão entrou em disputas sérias com Marcelo Freixo, hoje no PT, e com quem Marielle Franco trabalhou por 10 anos até ser eleita vereadora, em 2016.

Domingos Brazão foi citado, em 2008, no relatório final da CPI das milícias, presidida por Freixo, como um dos políticos liberados para fazer campanha em Rio das Pedras.

Marcelo Freixo teve também papel fundamental na Operação Cadeia Velha, deflagrada pela Polícia Federal em novembro de 2017, cinco meses antes do assassinato da vereadora. Na ocasião, nomes fortes do MDB no estado foram presos, a exemplo dos deputados estaduais Paulo Melo e Edson Albertassi e Jorge Picciani – morto em maio de 2021.

Freixo defendeu a manutenção da prisão dos três deputados no plenário da Assembleia Legislativa. A Comissão de Constituição e Justiça da casa votou no dia 17 de novembro de 2017 um relatório favorável à soltura dos deputados. Freixo enfatizou sua posição contrária aos colegas da Casa.

Em maio de 2020, quando foi debatida a federalização do caso Marielle, a ministra Laurita Vaz, do Superior Tribunal de Justiça, informou que a Polícia Civil do Rio e o Ministério Público chegaram a trabalhar com a possibilidade de Domingos Brazão ter agido por vingança.

“Cogita-se a possibilidade de Brazão ter agido por vingança, considerando a intervenção do então deputado Marcelo Freixo nas ações movidas pelo Ministério Público Federal, que culminaram com seu afastamento do cargo de Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro”, diz o relatório da ministra.

“Informações de inteligência aportaram no sentido de que se acreditou que a vereadora Marielle Franco estivesse engajada neste movimento contrário ao MDB, dada sua estreita proximidade com Marcelo Freixo”, escreveu Vaz.

Ministério Público levantou informações sobre Brazão

O Intercept Brasil mostrou na quinta-feira, 11, que o Ministério Público já tinha voltado a analisar documentos e anexos do inquérito policial sobre a milícia em Rio das Pedras, na zona oeste do Rio. 

Esse grupo é suspeito de ter ligação com a família Brazão e também com o Escritório do Crime, de acordo com as investigações da Polícia Civil e do próprio MP.
A família Brazão é um importante grupo político do Rio de Janeiro. Além do líder, Domingos, o clã é composto pelo deputado estadual Manoel Inácio Brazão, mais conhecido como Pedro Brazão, e Chiquinho, colega de Marielle na Câmara na época do assassinato.

# Link da matéria original no Intercept

Nova Indústria Brasil

Lula anunciou projeto de estímulo à recuperação da indústria brasileira com forte participação do Estado através do BNDES. O modelo que inspira a proposta é claramente desenvolvimentista e resgata a percepção de que os agentes privados da economia nacional acomodaram-se aos vícios da forte concentração da renda, da estagnação dos investimentos e da reduzida inovação tecnológica. 

Com isso, a dinâmica da acumulação que estimula o mercado consumidor com ocupação da mão de obra e salários é frágil e não produz crescimento econômico. Na verdade, isso mostra que o capitalismo brasileiro é parasitário e se apropria da renda gerada pelo trabalho de forma a reproduzir as condições de pobreza e marginalidade social. É só olhar em volta...

O projeto NIB contraria essas práticas e põe em discussão uma nova formulação do Estado do Bem-Estar Social. O debate em torno de seus fundamentos já aparece nas primeiras matérias sobre o assunto publicadas nos veículos de comunicação e tudo indica que tende a contaminar o jogo político das forças que atuam nos cenários da representação na sua articulação discursiva: o Congresso, a Sociedade Civil e... a mídia.

As intenções são as melhores possíveis e do ponto vista dos seus enunciados parece que a 1a virtude do projeto NIB é por os neoliberais em retirada, mais do que já vem acontecendo com a reforma fiscal e com outras iniciativas relevantes como é o caso da redução da jornada de trabalho sem a redução dos salários...

O que ainda está faltando é a voz dos sindicatos na arquitetura do novo projeto. A CNI e a Fiesp já anunciaram seu entusiasmo com o que Lula anunciou. Fica a pergunta: qual é a contrapartida dos trabalhadores do campo e da cidade nessa reorientação da política econômica.

As postagens do site a respeito do tema estão disponíveis em página específica (acesse aqui)

o que há de novo? 22-01-24

Diretas Já! 40 anos

Na foto, uma das maiores concentrações populares da História do Brasil: em 1984, em São Paulo, partir de janeiro, o movimento que empolgou a luta contra a ditadura e se estendeu por todo o país. Leia mais na postagem do site sobre o tema.

Depois de anos defendendo operação policial e ações de Moro, jornal lamenta "final melancólico da operação" (Luis Nassif, GGN)

Almas gêmeas

Ex-presidente devia R$ 1 milhão a São Paulo

Tarcísio perdoa multas da pandemia, abre mão de 72 milhões e beneficia Bolsonaro

Carta Capital (expandir)

O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos) sancionou, nesta quinta-feira 9, a lei que concede anistia a quem foi multado durante a pandemia da Covid-19 por descumprir as medidas sanitárias (continue a leitura)

Estafeta de Bolsonaro e militar golpista é o primeiro para promoção a coronel 

Cézar Feitosa, Folha (expandir)

A cúpula do Exército espera que o MPF (Ministério Público Federal) apresente denúncia contra o tenente-coronel Mauro Cid antes de abril.

O prazo é considerado crucial para generais ouvidos pela Folha, já que a turma de Cid na Aman (Academia Militar das Agulhas Negras) disputa a promoção para coronel no dia 30 daquele mês.

Pelas regras atuais, Cid poderia ser impedido de concorrer à promoção caso se tornasse réu na Justiça. Há outras situações em que militares ficam com a carreira congelada, sem possibilidade de promoção, mas o tenente-coronel não se encaixa em nenhuma delas.

Mauro Cid está entre os primeiros lugares da turma e é um dos mais cotados a receber a terceira estrela de fundo dourado. O desgaste no Exército com uma possível promoção do ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro (PL), porém, tem gerado apreensão entre militares próximos do comandante do Exército, general Tomás Paiva.

Mauro Cid no Batalhão de Polícia do Exército, em Brasília, no dia em que foi solto - Pedro Ladeira - 9.set.23/Folhapress

O militar ficou quatro meses preso no ano passado e é investigado em diferentes apurações relacionadas a Bolsonaro. Entre os casos, estão a organização de uma live em que o ex-presidente fez ataques contra o sistema eleitoral, suspeitas envolvendo a gestão de recursos da família presidencial, a apuração da venda de joias recebidas por Bolsonaro e a falsificação de cartões de vacinação para ingresso nos Estados Unidos.

A Polícia Federal espera avançar também com investigações sobre um possível planejamento de golpe de Estado por parte de apoiadores de Bolsonaro após a eleição de Lula (PT), no fim de 2022. O ex-ajudante de ordens firmou um acordo de colaboração premiada com a PF.

Cid se formou na Aman em 2000 com a terceira melhor nota da turma e foi coroado com o primeiro lugar do mestrado na Esao (Escola Superior de Aperfeiçoamento de Oficiais). O prêmio fica exposto em medalha na farda do tenente-coronel.

Colegas de turma consultados pela reportagem, sob reserva, afirmam que, sem um desdobramento no Judiciário, ele é o principal candidato à promoção em abril. Se Cid não se tornar réu até lá, os tenentes-coronéis formados com ele acreditam que somente notas desfavoráveis concedidas no âmbito da Comissão de Promoção de Oficiais poderiam evitar sua progressão na carreira.

O processo para a promoção a coronel da turma de Mauro Cid começou em novembro, com a disponibilização do RIProm (Relatório de Impedimentos de Promoções). Trata-se de um documento montado pelo Exército que mostra quem está impedido ou habilitado a concorrer à promoção.

Segundo relatos feitos à Folha, o RIProm de Cid não apontou impedimento. O tenente-coronel está habilitado para concorrer à promoção e já assinou e enviou os documentos necessários ao órgão responsável por analisá-los.

Os processos internos de avaliação de documentação e mérito para a promoção, porém, ainda não começaram. A fase atual é a de atualização da base de dados de pessoal.

"O Centro de Comunicação Social do Exército informa que não foi dado início ao posicionamento para as promoções que ocorrerão em 30 de abril de 2024. Fato este que inviabiliza a resposta", disse a Força, em nota, ao ser questionada sobre a situação de Cid.

Também acrescentou que "informações de caráter pessoal são protegidas" pela Lei de Acesso à Informação e pela Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais".

Colegas de Cid na Aman afirmam que o tenente-coronel está confiante com a promoção e espera seguir na carreira militar apesar das investigações conduzidas pela Polícia Federal e os impactos de sua superexposição à família.

Como forma de demonstrar apoio ao ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, os amigos de Cid iniciaram uma vaquinha no fim de dezembro para arrecadar R$ 300 mil. O objetivo, segundo as mensagens que circularam em grupos de WhatsApp, seria auxiliar no pagamento dos honorários do advogado do militar, Cezar Bittencourt.

O texto disparado para atrair colaborações dizia que o objetivo era ajudar Cid "a pagar os custos com advogados, que são imensos". Relatava ainda que os elevados gastos fizeram com que "ele vendesse vários bens para honrar com os custos de honorários advocatícios".

"Vamos juntos ajudar esse amigo que sempre foi leal, pai de família e um excelente militar. Nosso objetivo com essa vaquinha é arrecadar 300 mil, pois é apenas uma parte do que ele precisa pagar. Vamos juntos unir forças para conseguir esse valor para o nosso companheiro. Compartilhe essa mensagem ao máximo", dizia o texto.

A lei que define os critérios e processos para a promoção de oficiais das Forças Armadas é de 1972, período de endurecimento da ditadura militar. Ela foi sancionada pelo general Emílio Garrastazu Médici.

O decreto que regulamenta as promoções é de 2001, período em que o então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) tomava medidas duras de restrição orçamentárias e cerco a benefícios dos militares.

Pelas normas do Exército, as promoções são analisadas pela Comissão de Promoções de Oficiais. O grupo é composto por 18 generais e presidido pelo chefe do Estado-Maior do Exército.

O colegiado analisa ao menos nove critérios básicos, como o rendimento escolar, o desempenho nos cargos ocupados e a capacidade de chefia e liderança.

Mauro Cid está sem função no Exército desde setembro passado, quando o ministro Alexandre de Moraes, do STF (Supremo Tribunal Federal), decidiu soltar o militar após ele fechar acordo de colaboração premiada.

Na decisão, Moraes determinou que Cid utilizasse tornozeleira eletrônica e comparecesse semanalmente à Vara de Execuções Penais. Ele decidiu ainda que o Exército deveria deixar Cid sem cargo durante o avanço da colaboração premiada.

Bomba! Ronnie Lessa, autor dos disparos, fecha acordo de delação no caso Marielle

RBA: Se homologado pelo STJ, acordo pode levar ao esclarecimento do crime, que irá completar  6 anos em março (expandir) 

São Paulo – O ex-policial militar Ronnie Lessa, acusado de ser o executor do assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL) e do motorista Anderson Gomes, em março de 2018, no Rio de Janeiro, fechou um acordo de delação premiada com a Polícia Federal. A informação foi publicada neste domingo (21) pelo jornalista Lauro Jardim, do jornal O Globo.

A delação, que ainda precisa ser homologada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), pode, enfim, levar aos mandantes do crime, cuja investigação estaria em sua fase final, como afirmou o ex-ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino.

Leia também: Assessora que sobreviveu ao atentado lança livro sobre o ‘mandato interrompido’ de Marielle Franco

Em dezembro, Dino disse que o caso seria finalizado “em breve”, e se dirigiu ao diretor-geral da PF, Andrei Rodrigues, para cobrar uma solução. “É claro que eu não controlo o inquérito, não tenho a honra de ser policial. Mas o Dr. Andrei está aqui. Eu quero reiterar e cravar. Não tenham dúvida, o caso Marielle em breve será integralmente elucidado”, declarou, durante evento de balanço do ano de 2023 no Ministério. No dia 22 de fevereiro, Dino assume uma cadeira no Supremo Tribunal Federal (STF).

Quase seis anos após o crime, o que se sabe é que o ex-policial Élcio Queiroz, conforme admitiu aos investigadores, dirigia o carro de onde partiram os tiros, disparados, segundo ele, por Ronnie Lessa. Élcio foi preso em 2019.

A investigação

O processo de investigação do crime, ocorrido no dia 14 de março de 2018, no Centro do Rio de Janeiro, foi conturbado. A Polícia Civil teve cinco delegados responsáveis pelo caso na Delegacia de Homicídios do Rio de Janeiro. No Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ), três equipes diferentes atuaram no caso durante esses anos.

Em fevereiro do ano passado, o então ministro da Justiça, Flávio Dino, determinou que a Polícia Federal (PF) abrisse um inquérito paralelo para auxiliar as autoridades fluminenses. 

pensatas para o fim de semana 19/21-01-24 

Livro sugerido: Vida ao vivo

A mídia como ela é

Romance de Ivan Angelo faz um retrato do país que os grandes veículos de comunicação ajudaram a construir (expandir)

Maurício Stycer, 451

Ivan Angelo

Vida ao vivo

Companhia das Letras • 296 pp • R$ 79,90

No episódio inaugural da série Black Mirror (2011), o primeiro-ministro britânico é acordado no meio da noite com a notícia de que a princesa mais popular do Reino Unido foi sequestrada. Num vídeo vazado no YouTube, o governo é informado sobre a exigência para a libertação: que o primeiro-ministro faça sexo com um porco numa transmissão ao vivo pela TV.

O episódio termina (atenção: spoiler) com o país parando para assistir à inimaginável cena de zoofilia. Segue-se, então, a libertação da princesa, o suicídio do artista plástico que arquitetou tudo como “a primeira grande obra de arte do século 21” e a notícia de que a popularidade do primeiro-ministro triplicou. A audiência global da cena foi de 1,3 bilhão de espectadores. Vida ao vivo.

A premissa do mais recente romance de Ivan Angelo lembra vagamente a distopia britânica, mas com sinal invertido. É por vontade própria, e não em consequência de uma chantagem, que o dono da maior rede de televisão do país decide expor detalhes sobre a sua vida pessoal no horário nobre, antes da novela das nove. “Boa noite. Hoje, 24 de novembro de 2021. Desculpem adiar a novela e o prazer de vocês. Não vão sair perdendo, o que vão ver é inédito. Prometo emoções”, avisa na primeira das dezoito transmissões que fará.

Numa sequência vertiginosa de desabafos, Fernando Bandeira de Mello Aranha ajuda a compor um retrato sobre a elite, da qual faz parte, e do país que ajudou a construir com seus veículos de comunicação. Ainda no primeiro dia, ele faz uma síntese esclarecedora do seu papel na história:

Redirecionei os negócios, reequipei nossa primeira emissora de televisão, a pioneira, em vez de vender fui financiando, comprando, pagando dívidas, recuperando, comprando […] tomando, aproveitando os corruptos dos governos dos generais, […] as oportunidades da redemocratização, entrando em extração de metais raros, fertilizantes, agronegócio, olho no futuro, tecnologias da comunicação… Agora parei.

O protagonista (eu ia escrever “herói”, mas pode soar exagerado) de Vida ao vivo tem nome e sobrenome tanto de quatrocentão paulista quanto de gente que batiza rua na zona sul do Rio. Não se precipite, porém. Dando uma pista aqui, outra ali, o autor construiu um tipo que parece um amálgama dos donos das grandes empresas de comunicação do Brasil. Um homem que, ao chegar ao último turno da vida, recorre ao “sincericídio” para avaliar os seus erros e, de certa forma, demonstrar alguma evolução moral.

Trata-se de um personagem orgulhoso de sua formação intelectual, que abusa de citações pedantes, e é também chantagista (ameaça políticos com vídeos comprometedores), fofoqueiro (tece considerações sobre a sexualidade de Carlos Lacerda) e grande observador. Debochado e autoirônico, relembra o relacionamento pouco republicano dos ditadores com os empresários de comunicação nos anos 60 e 70. Faz comentários sensatos sobre a elite política do país, lamenta os anos Bolsonaro. E deixa claro como ele e seu grupo de comunicação se beneficiaram da impunidade. 

Fernando Bandeira de Mello Aranha é fruto da imaginação de Ivan Angelo, mas também da vivência profissional e do bom ouvido do autor. Nascido em 1936, em Barbacena, iniciado no jornalismo em Belo Horizonte na década de 50, Angelo se mudou para São Paulo no final de 1965. Fez parte do que Humberto Werneck descreveu em O desatino da rapaziada (Companhia das Letras, 1992) como “a primeira leva de mineiros do Jornal da Tarde”. Foi um dos jovens jornalistas contratados por Murilo Felisberto para montar a redação do vespertino da família Mesquita, lançado em 1966, sob o comando de Mino Carta.

De temperamento cordial, Ivan Angelo fez longa carreira no JT em funções na chamada “cozinha” da redação, ou seja, na administração do trabalho dos repórteres. Foi editor, editor-executivo e, por décadas, secretário de redação, abaixo apenas do editor-chefe. Atuou lá até se aposentar. Entre amigos, ganhou o apelido de “bon vivângelo”, porque raramente se estressava ou levantava a voz, fato incomum em ambientes jornalísticos. Como é possível perceber em algumas passagens de Vida ao vivo, conheceu muito de perto diferentes integrantes da família que comandava o conservador Estadão.

Em paralelo ao ofício jornalístico, desenvolveu uma respeitada carreira literária. A festa, seu romance mais conhecido, ganhador do Jabuti em 1976, se tornou uma referência pelo retrato de época que captou e por sua construção engenhosa, em que os capítulos podem ser lidos fora de ordem como contos. Também ganhou o Jabuti em 1996, com a novela Amor?, na qual o narrador descreve num monólogo sua hesitação entre o bom casamento com a esposa e o romance com uma amante. O livro pode causar, aos olhos do leitor de hoje, algum estranhamento, mas creio que o ponto de interrogação no título alivia a barra do autor.

Como outras obras de Angelo, Vida ao vivo chama a atenção por uma construção formal que foge ao modelo mais convencional. A cada capítulo em que o protagonista se exibe na televisão corresponde um outro, igualmente mirabolante, com a repercussão e os desdobramentos da sua fala. A narrativa assume um ritmo que lembra o universo jornalístico, num diálogo permanente entre fatos, versões e interpretações. Políticos, artistas, familiares, gente anônima e até o crítico de televisão dialogam com Fernando Bandeira de Mello Aranha durante o reality show que ele promove.

Ivan Angelo, em depoimento ao livro de Werneck, confessou não enxergar maiores qualidades no texto jornalístico: “Tão desinteressante, tão sem colorido, tão sem invenção”. No máximo, afirma, o jornalismo pode contribuir para a ficção com pequenos truques, como os que ajudam a prender o leitor já na primeira linha do texto.

Vida ao vivo deve muito à imaginação, mas também, e inegavelmente, ao jornalismo entranhado no autor. “Ah, antes que me esqueça: toda narrativa é versão”, avisa o protagonista deste romance hilário e imperdível.

Os sentidos do trabalho

Neoliberalismo incorporou ética conservadora: labor é um dever, a ser cumprido nas condições que o mercado fixar. Contra ela emergiu a ideia do trabalho significativo, socialmente necessário e digno. História de um conflito inacabado (expandir)

Elizabeth Anderson, Dissident Magazine, via Outras Palavras

Em março de 2020, a maioria dos governadores dos Estados Unidos emitiu ordens de permanência em casa para todos, exceto os “trabalhadores essenciais” – pessoas envolvidas na prestação de serviços necessários para apoiar as necessidades humanas básicas. O público saudou os trabalhadores essenciais como heróis e apelou para que recebessem subsídios de periculosidade. Muitos empregadores aceitaram esta exigência. No entanto, pouco depois, o tratamento severo dos trabalhadores essenciais tornou-se a ordem do dia. Os empregadores acabaram com o adicional de periculosidade. Hospitais demitiram profissionais de saúde por reclamarem da falta de equipamentos de proteção individual. Os proprietários de matadouros aceleraram as linhas de desmontagem, forçaram os trabalhadores a aglomerarem-se e aumentaram a propagação da COVID-19.

Este conflito sobre o tratamento adequado dos trabalhadores durante a pandemia da COVID-19 é a mais recente batalha numa luta de três séculos sobre as implicações políticas da ética do trabalho que tradicionalmente vige no país. O fato de os trabalhadores estarem envolvidos em trabalho socialmente necessário dá-lhes direito a respeito, remuneração digna e condições de trabalho seguras? Ou significa que têm o dever de trabalhar incansavelmente, sem reclamar, sob quaisquer terríveis condições e baixos salários que o seu empregador imponha em sua busca pelo lucro máximo? Chamo a primeira visão de versão progressista ou pró-trabalhador da ética do trabalho; a segunda, chamo de ética do trabalho conservadora. Em vários períodos da história europeia e norte-americana, um lado ou outro dominou o pensamento moral e a política econômica.

As três décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial foram o ápice da social-democracia, um período de triunfo para a ética do trabalho progressista. Nas democracias ricas da Europa e da América do Norte, o período pós-guerra foi caracterizado por altas taxas de crescimento econômico, amplamente partilhadas entre as classes econômicas, com sindicatos fortes, um robusto estado de bem-estar social orientado pelo seguro social universal, investimento estatal na educação e na saúde, poderosos governos liberais e instituições democráticas e um sentimento geral de otimismo.

Hoje, os habitantes da Europa e da América do Norte sofrem a reversão dessas conquistas. As políticas neoliberais são em grande parte culpadas. A financeirização, a austeridade fiscal, as reduções fiscais para os ricos, as duras restrições sociais, os ataques aos sindicatos e os acordos comerciais internacionais favorecem os interesses do capital e restringem a governação democrática. Estas políticas aumentaram a desigualdade econômica, minaram a democracia e reduziram a capacidade do Estado de responder às necessidades e interesses das pessoas comuns.

No meu novo livro, Hijacked: How Neoliberalism Turned the Work Ethic Against Workers, and How Workers Can Take It Back [Sequestro: Como o neoliberalismo virou a ética do trabalho contra os trabalhadores e como os trabalhadores podem recuperá-la], defendo que o neoliberalismo revive a ética do trabalho conservadora, que diz aos trabalhadores que devem aos seus empregadores trabalho incansável e obediência sem questionamento. Diz aos empregadores que eles têm direitos exclusivos para governar os seus empregados e organizar o trabalho com vistas a obter o lucro máximo. E diz ao Estado para consolidar a autoridade destes executivos por meio de leis que tratam o trabalho como nada mais do que uma mercadoria. Para reforçar a mercantilização do trabalho, a ética do trabalho conservadora instrui o Estado a minimizar o acesso dos trabalhadores à subsistência a partir de outras fontes que não o trabalho assalariado, incluindo bens fornecidos publicamente, segurança social e benefícios sociais.

A ligação entre o neoliberalismo e a ética do trabalho conservadora pode não ser óbvia à primeira vista. Os neoliberais definem a sua posição em termos de uma preferência libertária por ordens de mercado “voluntárias” em detrimento da ação estatal, supostamente deixando os indivíduos livres para buscarem a sua própria concepção de bem. À primeira vista, diferem ligeiramente neste aspecto dos proponentes originais da ética do trabalho conservadora, como Joseph Priestley e Jeremy Bentham, que sublinharam a necessidade de impor uma visão única do bem – a ética do trabalho – aos trabalhadores preguiçosos e imprudentes. Mas estas opiniões são apenas duas faces da mesma moeda. Os defensores da ética do trabalho conservadora, como Edmund Burke e Thomas Malthus, argumentaram no final do século XVIII, tal como fazem hoje os neoliberais, que o trabalho é uma mercadoria devidamente sujeita às leis do mercado. Os conservadores tornaram explícito o que os neoliberais hoje deixam implícito: os mercados de trabalho são os canais através dos quais a maioria dos trabalhadores fica sob o governo dos seus empregadores, que lhes impõem a disciplina da ética do trabalho.

A melhor maneira de caracterizar o neoliberalismo não é, portanto, em termos de liberdade individual dentro do mercado. Em vez disso, ele pode ser visto como um modo de governo por e para interesses de capital – por parte de empresas e proprietários ricos. Isto é exatamente como insistiram os defensores britânicos da ética do trabalho conservadora durante a Revolução Industrial, quando o direito de voto estava atrelado à propriedade. A doutrina neoliberal do capitalismo de acionistas – a afirmação de que o único objetivo de uma corporação é maximizar seus lucros – é simplesmente mais uma implementação do governo por e para os interesses do capital. Durante a Revolução Industrial, os proprietários de terras e os capitalistas usaram o seu poder para apropriar-se de riqueza às custas de outros, através de práticas como cercamentos, monopólios, aluguéis exorbitantes, colônias privadas autorizadas pelo Estado e a usura. Hoje, as políticas neoliberais autorizam inúmeras práticas comerciais exploratórias semelhantes, incluindo a monopolização, os empréstimos predatórios, a repressão aos sindicatos, o rebaixamento de funcionários estáveis para trabalhadores temporários e vários esquemas de capital privado que prejudicam os cuidados de saúde, os cuidados veterinários, as vendas de varejo, as organizações de imprensa, o aluguel de moradia e a diversos outros setores, explorando tanto os trabalhadores como os consumidores.

Há mais de um século, Max Weber apresentou a sua própria avaliação sombria da ética do trabalho na conclusão do seu A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Ao promover um regime de trabalho disciplinado, baseado no ascetismo religioso, escreveu ele, a ética do trabalho acabou por dar origem a um sistema capitalista secular que prendeu as pessoas numa “gaiola de ferro” de trabalho penoso e desprovido de sentido, em prol da infindável acumulação de riqueza. Mas Weber formulou apenas uma leitura parcial dos ministros puritanos do século XVII que inventaram a ética do trabalho. Ele não percebeu que os pastores também formulavam uma visão edificante para os trabalhadores – uma visão que antecipava características importantes da social-democracia.

Qual era, então, a ética do trabalho protestante original? No âmbito da moralidade individual, compreendia um conjunto de virtudes: competência, frugalidade, temperança, castidade e prudência. O hábito de trabalhar arduamente era altamente valorizado nesta ética. Mas os puritanos também tinham atitudes ambivalentes em relação ao trabalho que, em última análise, foram tomadas em direções contraditórias. Por um lado, argumentavam que o trabalho era uma disciplina ascética que exigia labuta incessante em busca do ganho. Eles criticavam os mendigos fisicamente aptos como parasitas. E instrumentalizavam todas as atividades, não deixando espaço para lazer e prazer, exceto quando necessário para restaurar a capacidade de trabalho. Por outro lado, exaltavam a dignidade do trabalho, insistiam na igualdade de todas as vocações e promoviam a liberdade de escolha profissional. Eles exigiam salários justos e dignos, condições de trabalho seguras e alívio contra os empregadores tirânicos. Procuravam proporcionar empregos aos desempregados involuntários – uma tentativa inicial de garantia de emprego – e argumentavam que qualquer pessoa incapaz de trabalhar tinha direito à caridade. Os seus sermões e textos sobre a ética cristã condenavam os ricos ociosos e predadores – proprietários de terras, monopolistas, usurários, arrendatários exorbitantes, manipuladores de preços, maquinadores financeiros, comerciantes de escravos e qualquer outra pessoa que lucrasse tirando partido da vulnerabilidade e necessidade dos outros. Eles promoviam um ideal de trabalho que, em última análise, inspirou a concepção de trabalho não alienado de Marx. A vocação de um trabalhador, argumentavam eles, deve ser uma atividade livremente escolhida que promova o bem-estar dos outros e inspire o entusiasmo do trabalhador, proporcionando um campo para o desenvolvimento e exercício dos seus talentos pessoais.

Os puritanos foram capazes de reconciliar as tensões entre estes dois lados da ética do trabalho porque os seus modelos de trabalhadores eram os pequenos agricultores e os artesãos – isto é, trabalhadores que eram simultaneamente trabalhadores manuais e proprietários. As mesmas pessoas que cumpriam as exigências da ética do trabalho conseguiam colher os seus frutos. (No século XVII, o trabalho assalariado ainda era relativamente raro.) No entanto, no final do século XVIII, a Revolução Industrial separou os proprietários de capital dos trabalhadores manuais, estes últimos ficando reduzidos a trabalhadores assalariados. Isso levou a uma profunda divisão de classe na ética do trabalho. Os defensores da ética do trabalho progressista continuaram a insistir que as mesmas pessoas que cumprem os deveres da ética do trabalho – envolvidas num trabalho que ajuda os outros – têm direito a uma vasta gama de benefícios. Os proprietários de terras e os capitalistas predatórios – os alvos da crítica puritana da classe alta – sequestraram a ética do trabalho e transformaram-na num instrumento de luta de classes. Eles enfatizaram a disciplina, a frugalidade e o ascetismo para os trabalhadores, ao mesmo tempo que retiravam para si a maior parte dos benefícios desse trabalho disciplinado. Usando a riqueza como prova de virtude e a pobreza como prova de vício, rentistas ociosos e capitalistas ocupados que lucravam com a exploração de outros se apresentavam como heróis e os pobres como canalhas. Assim surgiu a ética de trabalho conservadora.

À medida que os capitalistas da Revolução Industrial levaram os trabalhadores à pobreza, destruindo as suas alternativas ao trabalho assalariado, a procura de alívio ao abrigo da tradicional Lei dos Pobres – o sistema britânico de alívio da pobreza com base em condições de recursos – aumentou. Os defensores da ética do trabalho conservadora atribuíram a pobreza à preguiça, à imprevidência e à licenciosidade, e culparam a Lei dos Pobres por promover estes vícios. O economista político (e químico famoso) Joseph Priestley propôs substituir a Lei dos Pobres por planos de poupança individuais obrigatórios. Thomas Malthus propôs a sua abolição gradual, deixando os pobres dependentes de uma caridade privada incerta. Jeremy Bentham propôs que a administração da ajuda fosse terceirizada para uma empresa privada licenciada para encarcerar indigentes e forçá-los a trabalhar em panópticos por pouco ou nenhum pagamento. A reforma da Lei dos Pobres inglesa de 1834 e a política britânica durante a fome irlandesa de 1845-1852 impuseram condições punitivas e estigmatizantes à assistência, incluindo trabalho forçado, confinamento em asilos, perda de direitos civis, despojamento de bens, limites de tempo arbitrários e burocracia onerosa.

Nos últimos 40 anos, os neoliberais nos Estados Unidos propuseram e por vezes implementaram políticas semelhantes. George W. Bush tentou substituir a Segurança Social por planos de poupança individuais. O cientista político Charles Murray argumentou que os benefícios sociais para os saudáveis ​​deveriam ser abolidos, lançando um debate que acabou por levar à substituição parcial do bem-estar social [welfare] pelo workfare – pagamentos vinculados às necessidades de trabalho – em 1996. Esforços recentes para colocar os requisitos de trabalho no acesso para Medicaid e SNAP seguem a mesma lógica. Os legisladores neoliberais impuseram requisitos de documentação onerosos que impedem muitas pessoas, que teriam esse direito, de usufruir do seguro de invalidez, do Crédito de Imposto sobre o Rendimento do Trabalho, da ajuda financeira para a faculdade e de numerosos programas administrados pelo Estado. Os limites punitivos de ativos nos programas de segurança social de alguns estados forçam os pobres a liquidar as suas poupanças para a reforma e para a faculdade, a fim de se qualificarem, garantindo a sua pobreza na velhice e ao longo das gerações. As políticas neoliberais de baixos impostos levaram os departamentos de polícia a financiarem-se a si próprios e aos tribunais, multando os pobres com multas excessivas por infracções insignificantes e arbitrárias. Numa represália ao plano de Bentham para os panópticos indigentes, alguns que não podem pagar estas multas e taxas são remetidos para casas de recuperação geridas por empresas prisionais privadas, onde são forçados a trabalhar por pouco ou nenhum salário. Pessoas que lutam contra o vício em drogas são frequentemente sujeitas a tratamento semelhante.

Como podemos superar este regime vicioso? Os defensores da ética do trabalho progressista oferecem algumas sugestões. Desde a Revolução Industrial até ao século XX, têm surgido debates sobre a melhor forma de promover e recompensar o trabalho. Os conservadores argumentavam que os pobres só poderiam ser induzidos a trabalhar arduamente se estivessem sujeitos à precariedade e sujeitos ao governo dos seus empregadores. As classes médias, nesta perspectiva, poderiam ser motivadas através de uma cultura de consumo conspícuo competitivo. Os progressistas responderam que todos os trabalhadores trabalhariam arduamente se recebessem todos os frutos do seu trabalho. Rejeitaram a ideia de que uma boa vida é uma questão de aquisição competitiva num jogo de estatuto de soma zero essencialmente antagônico. Defendiam arranjos econômicos que emancipassem os trabalhadores da subordinação rastejante aos superiores e nos quais o trabalho fosse um domínio significativo para o exercício de competências variadas e sofisticadas. Eles ansiavam por uma sociedade em que todos pudessem desfrutar de uma vida além da ética do trabalho – que, embora reconheça as virtudes da ética do trabalho, também promove um conjunto mais amplo de valores e bens. Em vez de fazer horas extras no que David Graeber chamou de “empregos de merda”, as pessoas desfrutariam de amplo tempo de lazer, bem como de um trabalho significativo que fosse genuinamente útil para os outros.

Esta linha de pensamento progressista começa com os Levellers do século XVII e John Locke e continua através de figuras revolucionárias americanas e francesas como Thomas Paine e Nicolas de Condorcet, economistas clássicos como Adam Smith e James e John Stuart Mill, socialistas ricardianos como William Thompson e marxistas como Friedrich Engels e Eduard Bernstein. Estes pensadores apresentaram análises e propostas muito diferentes, mas cada um compreendia que as relações de propriedade precisavam mudar para enfrentar os desafios dos seus tempos. Longe de considerarem sagrada a propriedade privada, até os economistas políticos liberais desta linhagem propuseram mudanças dramáticas na lei de propriedade para promover o bem-estar das pessoas comuns. Todos defenderam a abolição dos direitos de propriedade feudal porque rejeitaram qualquer ligação entre a propriedade da terra e o direito de governar outras pessoas. Todos se opunham à primogenitura, aos vínculos e a outros dispositivos de herança que mantinham grandes propriedades intactas em perpetuidade para o benefício exclusivo de algumas famílias. Smith defendeu a abolição da escravidão, dos estágios de aprendizagem não remunerados, dos monopólios autorizados, das colônias privadas e da maioria das sociedades por ações. Paine e Condorcet inventaram a ideia do seguro social universal. O programa de segurança social proposto por Paine, que seria financiado por um imposto sobre heranças, também incluía subsídios universais às partes interessadas. Os Mills argumentaram que os aluguéis dos terrenos deveriam ser limitados por meio de um imposto de 100% sobre o aumento dos aluguéis. J.S. Mill, defensor do proprietário camponês, usou a teoria da propriedade do trabalho de Locke para justificar a expropriação dos proprietários irlandeses e a redistribuição das suas propriedades aos camponeses que trabalhavam a terra. Ele também apoiou os sindicatos e argumentou que as cooperativas de trabalhadores eram a forma organizacional ideal para a indústria moderna.

As ideias apresentadas pelos defensores da ética do trabalho progressista foram parcialmente concretizadas nas social-democracias do pós-guerra da Europa Ocidental. Estes países adotaram um conjunto de políticas para atingir os seus objetivos, incluindo seguro social abrangente, facilitação de sindicatos e negociações setoriais, codeterminação (gestão conjunta do local de trabalho por representantes do trabalho e do capital), expansão dramática do ensino superior público acessível ou gratuito e garantia de férias remuneradas e licenças familiares. No entanto, como argumentaram Sheri Berman e Thomas Piketty, a social-democracia perdeu a sua visão e vigor, em parte sob a pressão das instituições e da ideologia neoliberais.

Para renovar o projeto social-democrata, podemos aprender com o seu antecessor, a ética do trabalho progressista. A nível político, os economistas políticos da tradição progressista da ética do trabalho propuseram revisões criativas e ousadas dos direitos de propriedade. Deveríamos experimentar não só o rendimento básico, mas também os subsídios concedidos às partes interessadas por Paine – que proporcionam acréscimos à riqueza – como forma de prevenir a precariedade. Deveríamos também considerar limites rígidos à herança, como J.S. Mill propôs. Ele argumentou que ninguém deveria herdar mais do que o suficiente para uma “independência moderada”. Seguindo as esperanças de Mill, poderíamos também fazer muito mais para promover as cooperativas de trabalhadores, uma ideia que os países social-democratas do pós-guerra nunca levaram a sério.

Também podemos aprender com os economistas políticos da tradição progressista da ética do trabalho a renovar a visão normativa da social-democracia. Eles compreenderam que, de longe, o produto mais importante do nosso sistema económico somos nós próprios. Ao considerar o desenho institucional, a nossa primeira questão deveria ser: como são as pessoas moldadas pelos nossos modos de organização da produção, troca, distribuição e fornecimento de bens públicos? Esta questão se desenvolve em pelo menos mais duas. Primeiro, o trabalho e outros arranjos institucionais melhoram ou degradam as capacidades e virtudes dos indivíduos? E, em segundo lugar, como é que as diferentes formas de conceber a produção e a troca, os modelos de negócio, a governo empresarial, a distribuição de bens públicos e as políticas de bem-estar social afetam a forma como nos relacionamos uns com os outros? Será que os nossos arranjos econômicos encorajam a confiança, a simpatia e a cooperação, ou fomentam a desconfiança, a exploração, a dominação, o desprezo e o antagonismo entre indivíduos e grupos sociais? Com a ascensão de empresas de alta tecnologia que lucram com a disseminação de desinformação e semeando indignação e malícia, investidores de capital privado que lucram com a quebra de confiança de outras partes interessadas e prestadores de cuidados de saúde que tiram partido dos vulneráveis ​​e os enterram em dívidas intermináveis, é mais do que tempo de integrarmos a preocupação com a qualidade de nossas relações sociais em nossas avaliações das regulamentações de empresas.

Como J.S. Mill antecipou e os social-democratas como Bernstein compreenderam, a democracia está no centro dessa visão normativa mais ampla. Um lugar para construir a democracia é o local de trabalho. O modo de governo neoliberal no local de trabalho sob o capitalismo acionista desqualificou o trabalho e degradou os trabalhadores. Também infligiu grandes danos morais aos trabalhadores, forçando-os a participar em danos a outras pessoas, animais e ao ambiente no processo de maximização dos lucros. Se os trabalhadores tivessem uma voz poderosa no governo do seu local de trabalho, não escolheriam reduzir-se a escravos desqualificados ou infligir danos morais a si próprios. A democratização do trabalho é uma forma poderosa de promover competências e disposições democráticas, demonstrar que a democracia pode responder às preocupações das pessoas comuns e, assim, fortalecer a democracia a nível estatal. A maioria das pessoas deseja um trabalho significativo, tal como entendido na tradição da ética de trabalho progressista: um trabalho que proporcione um meio para uma pessoa exercer o seu arbítrio e habilidade ao ajudar outras pessoas. A democratização do trabalho, através de cooperativas de trabalhadores e de modelos melhorados de co-gestão, é uma forma promissora de garantir um trabalho significativo para todos.   

Elizabeth Anderson

Professora de Filosofia Pública da Universidade de Michigan.

Pe. Júlio Lancelotti: "moradores de rua são pessoas"

Entrevista à revista Focus publicada no site IHU (expandir)

Rodeado de colaboradores e fieis, o coordenador da Pastoral do Povo de Rua declarou que jamais usaria as mesmas armas de seus algozes. “Não sou o primeiro padre a ser perseguido por um vereador. As fotos, as imagens, os ângulos, tudo é feito com um propósito. Eu conheço, entendo tudo. Compaixão e humanidade, não tem”, afirma.

Os termômetros já batiam a casa dos 30ºC ainda nas primeiras horas da manhã de quinta-feira, 11, transformando o pequeno quintal da Paróquia de São Miguel Arcanjo, no bairro da Mooca, em São Paulo, em um verdadeiro forno. O pároco Júlio Lancellotti, depois de cumprir uma extensa rotina matinal – celebrar a missa, participar da distribuição de pães no Centro Comunitário Santa Dulce dos Pobres da Paróquia, atender e aconselhar os moradores em situação de rua, ajudar na limpeza do espaço e interagir com todos chamando-os sempre pelo primeiro nome -, recebeu a reportagem da Focus para comentar a mais recente onda de ataques contra ele.

Ainda nos primeiros dias de janeiro, ganhou destaque no noticiário nacional a intenção de um vereador de extrema direita da Câmara Municipal de São Paulo de instalar uma CPI para “investigar Organizações Não Governamentais (ONGs) que fornecem alimentos, utensílios para uso de substâncias ilícitas e tratamento de usuário que frequentam a região da cracolândia”, segundo o requerimento do parlamentar.

O texto da CPI não menciona o nome de nenhuma entidade específica. Porém, um vídeo do próprio vereador, que é filiado ao partido União Brasil, publicado em suas redes sociais no dia 7 de dezembro, no qual informa estar colhendo assinaturas para instalar uma CPI, trata o padre por “esse sujeito”, além de atacar com ofensas outros parlamentares e ministros, levantando suspeitas a respeito de vídeos impróprios envolvendo o padre Júlio.

Em entrevista à Focus, padre Júlio, com respostas pausadas e didáticas, manifesta indignação com o comportamento da mídia.

“Tudo que a gente fala na mão da imprensa vai ser dissecado”, enfatiza. “Tudo é estudado. Nada é feito sem uma intenção, até as fotos. A bondade é uma coisa que rareia. Tudo que puder ser feito para destruir, a imprensa é a primeira. Na imprensa não tem manual de redação, tem manual de retaliação”, desabafa.

Padre Júlio não faz parte da diretoria de nenhuma ONG, é coordenador da Pastoral do Vicariato Episcopal para a Pastoral do Povo da Rua, um braço da Arquidiocese de São Paulo, sediada na Paróquia de São Miguel Arcanjo. Fundada na década de 1990, sua atividade não envolve a administração de recursos financeiros. Ele também não integra a diretoria ou o conselho do Centro Social Nossa Senhora do Bom Parto, conhecido como Bompar, entidade mencionada pelo vereador em entrevistas sobre o caso. A presidência do Conselho Deliberativo é ocupada por um membro da Igreja Católica.

O Bompar possui certidões que a reconhecem como de utilidade pública municipal, estadual e nacional. Atuando desde 1946, acolhe diariamente mais de 10.000 pessoas por dia, em 52 núcleos de atendimento. Desenvolve, entre outras atividades, o projeto Consultório na Rua, uma parceria com a municipalidade para atendimentos na área de saúde, prática corriqueira nas atividades assistenciais de governos em todos os níveis: municipal, estadual e federal. A Bompar é uma das entidades para as quais o padre encaminha pessoas em situação de rua que necessitam desses ou de outros serviços.

Na entrevista, ele fez questão de convidar para sentarem-se ao seu lado, João, de 27 anos, e Antônio, de 39 (nomes fictícios). “Essas são pessoas importantes pra mim”, afirma ao colocar em prática o que prega em suas celebrações. No decorrer da conversa, ele se referiu diversas vezes aos dois homens para exemplificar seus argumentos.

João é um dos voluntários que ajudam na distribuição do café da manhã, limpeza, recepção e outras atividades de rotina da paróquia. Ele nos conta que quando chegou a São Paulo “ninguém falava ‘sim’, era sempre ‘não’. As portas estavam fechadas”. Sem dinheiro, acabou desabrigado e foi dormir na rua, quando decidiu procurar ajuda para voltar para o Estado do Rio de Janeiro.

O padre pediu que ele voltasse no dia seguinte para receber a passagem. Mas João retornou alguns dias depois, para comunicar ao sacerdote que havia conseguido trabalho. Hoje recebe um salário mínimo e complementa a renda com uma bolsa aluguel, por estar realizando um tratamento de saúde. “Este meu amigo me ajuda muitíssimo” diz, abraçando João, que abre um largo sorriso.

O mineiro Antônio convive com padre Júlio desde 2016, e se lembra da data exata que o conheceu. Retornou à terra natal no ano passado, para viver com a família. Dependente químico, ele explica que teve dificuldade de integração devido ao vício. “A pessoa que não usa (a droga), não vai aceitar. Ela não tenta compreender que talvez aquilo seja uma doença, eu vejo como uma doença”, lamenta. “Este aqui é meu amigo”, diz Antônio sorrindo e esfregando as mãos nervosamente, ao se referir ao padre, que lhe oferece um afago e pede que alguém traga um copo de água para Antônio.

Enquanto padre Júlio acolhe os “indesejáveis”, o vereador extremista autor do pedido de CPI, destinou só em 2021, R$1,5 milhão para festas, incluindo uma na qual o tema era os anos 80. A igreja evangélica Mensagem de Paz também recebeu mais de R$1 milhão de recursos públicos direcionados pelo parlamentar, segundo reportagem do site Intercept Brasil. Até o fechamento desta edição, após a repercussão negativa do caso, ao menos 10 vereadores dos 23 que apoiaram o requerimento, haviam retirado sua assinatura.

A entrevista é de Fernanda Otero, publicada por Focus Brasil, 16-01-2024.

Eis a entrevista.

Como é seu dia a dia, quem te ajuda nesse trabalho?

Meu dia a dia é o que você viu, começa com a missa às 7h, depois da missa, a partilha daquilo que a gente tem. Muita gente ajuda, as irmãs, pessoas leigas, muitas pessoas da comunidade, os que doam.

Quem o senhor defende? Quem são essas pessoas?

Não é quem defende, é quem convive. Convivo com os indefensáveis. Quem defende e quer conviver com as pessoas que ninguém quer, numa sociedade tão marcada pela desigualdade? Se você está do lado daqueles que são rejeitados, você vai ser rejeitado. Então, não é que eu diria ser maldade das pessoas, é a lógica. Isso até nas amizades interpessoais, se você não se dá bem com ela (apontando outra jornalista), e eu me dou bem com ela e converso e acolho bem a ela, você vai achar o quê? Por que você é amigo dela? Você viu tudo o que ela me fez? Isso acontece, não é? Até no ambiente de trabalho, você conversa com determinada pessoa do ambiente de trabalho, do escritório, o outro que teve problema com ela, você diz, ‘nossa, você sabe quem é aquela ali?’ Você está todo de amizade com ela, mas sabe o que ela fez pra mim? Não é isso que acontece? Então, você conviver com os que são rejeitados, você vai ser rejeitada também. Você não muda ninguém. Ninguém muda ninguém. A mudança se dá se a pessoa quer mudar. Não é a consciência que determina a realidade, é a realidade que determina a consciência, e como diz o Leonardo Boff, todo ponto de vista é a vista a partir de um ponto. Então precisa saber a partir de que ponto você vê. Nisso eu sou muito marxista, a realidade é que determina a consciência.

Como é esta convivência?

Estou convivendo com pessoas. Eu sempre digo, os moradores de rua não são anjos nem demônios, são pessoas. Alguns deles são terraplanistas, alguns deles são machistas, são homofóbicos, são racistas. Eles também são atingidos pela grande mídia, pelo pensamento dominante. Eles também pensam o que todo mundo pensa. Não é porque eles estão na rua, que eles são diferentes. Eles são diferentes do ponto de vista da desigualdade. Mas a ideologia dominante é a mesma. A mesma novela que você assiste, eles assistem. O mesmo jornal que você lê, eles leem. O mesmo apresentador que fala aquilo que o povo tem que pensar, eles ouvem também. Eles não têm uma rádio alternativa deles. Eles pensam o que todo mundo pensa. Se você não convive, você não conhece. Se você não convive, você não ama. Nenhum de nós é só uma coisa. Você não é só o que eu tô vendo. Eu não sou só o que você tá vendo.

Esta nomenclatura “Cracolândia” surgiu pela primeira vez em 1995. Naquela época, o senhor já atuava na região. Nos últimos anos, pelo menos quatro programas diferentes foram iniciados. Seria justo dizer que algum deles esteve próximo de algum sucesso?

A questão dos programas é que eles são programas de governo e não de Estado. Essa é a diferença. Parece uma coisa sutil, mas é uma nomenclatura específica. Uma coisa é programa de governo, outra questão é programa de Estado. O que a gente viu nessa região durante todo esse tempo foram programas de governo, não era o programa municipal para as pessoas em cena de uso, mas o programa da Marta, o programa do Haddad, o programa do Kassab, o programa do Serra. Programa de governo não resolve, porque o governo funciona por quatro anos, não daria nem tempo. Essa questão de sucesso, até um jornalista me perguntou: “Será que o que você faz não foi medido? Qual é a eficácia do que você faz? Será que se não tivesse eficácia, não convenceria?” Aí eu perguntei para ele: “a vacinação contra poliomielite, tem estudo que ela é eficaz? Por que as pessoas não tomam? Por que a vacinação da poliomielite caiu? Você quer mais evidência? Você quer mais evidência de que o tabaco faz mal à saúde? Isso já está cientificamente provado, comprovado, existem dados, gráficos, estudos, pesquisas, e as pessoas fumam”. A nossa lógica é muito cartesiana, e o jornalismo é muito cartesiano também, além de ser sensacionalista e abusivo, é cartesiano também, porque não tem explicação lógica...

As pessoas ficam esperando uma resposta…

Um tal programa, foi eficaz? Em quatro anos não dá tempo de saber. Usando um paralelo, na Igreja Católica, quando se diz que aconteceu um milagre, para que um candidato a santo seja canonizado, o milagre tem que ser total, irreversível e completo. Em quatro anos de programa tal, resolveu o problema de 50. Mas tem duas mil pessoas lá. Então, programas sociais, para serem avaliados, eles têm que ser no longo tempo, eles têm que ser programas de Estado. Esse é o nosso problema. A chamada democracia representativa, ela elege a cada quatro anos um. Aí não dá tempo. E aí, quando a prefeita X entrou, ela desmancha tudo o que o anterior fez. Aí o outro que a sucede, desmancha tudo o que foi feito. Então, como você vai avaliar? Para a Prefeitura, é um número. É um número. Não leva em conta a pessoa. Ele é um número que vai para uma vaga. Não é uma pessoa que precisa de um lugar, é um número que precisa de uma vaga. Ninguém pergunta pra eles o que eles sentem. Ninguém pergunta. Na vida deles, lhes é negado o afeto.

Em uma entrevista o senhor passou a impressão de que sabia da existência do pedido de CPI desde dezembro…

Desde dezembro, sim…

Mas não tinha se manifestado. O autor do requerimento disse em entrevista recente que o senhor “pulou à frente das armas”. Qual a sua reação a esta afirmação?

Alguém te aponta uma arma, você vai fazer o quê? Vai reagir. Isso é jogo de palavras. Eu posso te afirmar uma coisa. Eu jamais ia apontar uma arma para ele. Jamais! Ele acha que eu pulei diante da arma. É interessante. Porque eu jamais vou apontar uma arma para quem quer que seja. E nunca vou usar a arma que eles me atingem. Quando o vereador fala: “Eu nunca citei o Padre Júlio”, tem a gravação dele dizendo: “Ele será trazido algemado, coercitivamente”. Isso não é abuso de autoridade? Digo para as pessoas que não entendem o que se passa aqui, qual a situação dessas pessoas, para que venham. Serão bem recebidos.

O senhor sabe de alguma denúncia de algum Conseg (Conselho de Segurança) ou qualquer outra denúncia que justificasse a realização de uma investigação a seu respeito?

Os Consegs de São Paulo, entre as cinco maiores queixas, a população de rua está entre todas. Porque São Paulo hoje é a vitrine da especulação imobiliária. Hoje, o grande ponto da cidade é a especulação imobiliária. E a presença da população de rua, que cresce muito e cresceu muito em São Paulo, passa a ser uma presença ameaçadora, incômoda. Então, é o que eles dizem: “Você os alimenta. Ao invés deles irem embora, eles vêm”. O raciocínio seria “vamos matá-los de fome, porque assim eles desaparecem.”

Como é que o senhor interpreta esse argumento?

É um argumento da lógica neoliberal. É que nós pensamos de maneira neoliberal. Então, a gente quer analisar a lógica neoliberal. Quando você examina a lógica neoliberal, você também assume essa lógica. Nós, a sociedade de um modo geral. A mídia é neoliberal, a sociedade é neoliberal, o pensamento dominante é neoliberal. Então, quando você entra nessa discussão, você entra dentro dessa mesma lógica. O Papa Francisco, em seu livro Evangelii Gaudium, diz que a lógica do neoliberalismo é o descarte. Essas pessoas estão descartadas. E fica descartado quem está com elas também. Agora, quando a gente começa a discutir, “ah, mas ele falou isso, ah, mas ele falou aquilo”, a gente entra na lógica dele (que tem a visão neoliberal). Eu não sei o que ele pensa. Ele pensa dentro de uma lógica. Eu não quero pensar dentro dessa lógica. Porque aí fica esse bate-boca. Dentro da casa do Big Brother, todos pensam a mesma lógica.

O filósofo Jason Stanley, que fez parte do documentário “A Sociedade do Medo”, do qual o senhor também participou, disse: “os políticos fascistas sempre acusam os seus oponentes daquilo que eles são culpados”, eu queria que o senhor comentasse essa frase.

É uma forma de pensar. É um pensamento. O próprio Papa Francisco diz: “Cuidado com quem é rígido demais, alguma coisa está sendo escondida. Alguém começa a ser muito moralista com você, você logo percebe que deve ter alguma coisa ali. Eu não consigo dar conta de todas as lógicas, porque eu não quero fazer parte da lógica neoliberal, embora esteja dentro da cultura neoliberal. As pessoas me perguntam: “Quantos você já tirou da rua?” Eles querem fazer contabilidade. Eu não tiro ninguém. O Paulo Freire diz que ninguém educa ninguém. Você me educa e eu te educo. Não sou eu que tiro ele da rua. Ele é que sai, com as pernas dele. Eu não posso caminhar por ele.

Caso se confirme a instalação da CPI, que ainda depende do Colégio de Líderes, o que o senhor gostaria que ela investigasse?

Eu já sugeri várias vezes que se faça uma auditoria técnica e econômica, eu acho que essa é uma questão que tem que ser examinada. Por exemplo, hoje uma pessoa em situação de rua custa para a Prefeitura de R$1.500 a R$2.000. Alguns que estão em hoteis sociais chegam a custar R$4.000 para a Prefeitura. Só que neles chega a salsicha. Onde é que fica o restante? Onde fica? Então, isso acho que é uma coisa que teria que se verificar. Então, não chega uma roupa, não chega um sabonete, não chega um creme dental, não chega uma escova dental. Então, esse recurso, que lá eles levantam na Prefeitura, milhões, vai para as entidades, que pagam o coordenador, o vice-coordenador, o técnico, o assessor, o educador. Vai pagando, pagando, pagando, pagando, quando chega neles, não tem lençol na cama, não tem nem a cama. Então, que se verifique isso. Porque já está mais do que claro. Espaços com muita gente não dão certo. As pessoas também querem seus próprios espaços, querem, e gostam de cozinhar. Também querem namorar. Se ele quiser namorar, como ele faz? A gente conseguiu, quando agora teve a mudança climática, que aumentou muito a temperatura, que a prefeitura fizesse a Operação Altas Temperaturas.

O senhor conversou sobre isso com o prefeito?

Sim, pedi, eu tenho aqui a conversa com ele, ele agradeceu e disse que imediatamente estava chamando e tal. Eu estive com ele por esses dias, falei para ele, o horário que termina é muito cedo. Está fechando às 16h, às 16 horas é quando está no auge, com o calor mais forte, é a hora que baixa o calorão mesmo. Entre às 16h e às 18h parece que fica pior.

O senhor tem alguém que te inspire?

Irmã Dulce é uma inspiração. Muito antes do padre Júlio, a Irmã Dulce também foi perseguida por um vereador. A sobrinha da irmã Dulce me mandou (o relato) sobre o que um vereador fez na ocasião contra ela. Mas, a inspiração maior é Jesus. Admiro São Tito Brasman, cuja imagem tenho aqui na Paróquia. Ele foi preso, torturado, muito maltratado. Ele morreu em um campo de concentração, era um jornalista e reitor que protegeu os alunos judeus nas escolas católicas, é o padroeiro dos jornalistas católicos. Seu lema era ‘amar os que nos odeiam’, e por isso, eles tinham mais raiva dele.

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Triplica a renda da elite brasileira e mais pobres continuam na penúria


A renda das 15 mil pessoas pertencentes ao topo da pirâmide social no Brasil cresceu nos últimos anos até o triplo do ritmo observado entre o restante da população, elevando a concentração da riqueza ao fim do governo Jair Bolsonaro (PL).

Entre essa elite, que representa 0,01% da população, o crescimento médio da renda praticamente dobrou (96%) entre 2017 e 2022.

Enquanto isso, os ganhos da imensa maioria da população adulta (os 95% mais pobres) não avançaram mais do que 33% —pouca coisa acima da inflação do período (31%). Clique aqui para continuar a leitura.

Adriana Fernandes, Folha

A conclusão está em nota técnica elaborada pelo economista Sérgio Gobetti, publicada pelo Observatório de Política Fiscal do FGV Ibre (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas).

É o primeiro cálculo da concentração no topo da pirâmide no Brasil feito após a divulgação de dados mais detalhados das declarações do IR (Imposto de Renda) pela Receita Federal.

Com essas informações, foi possível verificar quanto ganham as pessoas mais ricas do país e comparar com a evolução da renda de todos os brasileiros, apurada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

Ao ampliar a análise para identificar a renda do grupo 0,1% mais rico, formado por cerca de 154 mil pessoas, Gobetti constatou que ela cresceu em média 87% entre 2017 e 2022. O ganho mensal desses brasileiros subiu de R$ 236 mil para R$ 441 mil nos cinco anos do levantamento.

Na fatia 1% mais rica, o crescimento também foi alto, de 67%. Entre os 5% com mais ganhos, de 51%.

Para o economista, os cálculos preliminares apontam que a concentração chegou a níveis inéditos.

"Ao que tudo indica, o nível de concentração de renda no topo bateu um novo recorde histórico, depois de uma década de relativa estabilidade da desigualdade", afirma o economista.

Gobetti ressalta que a proporção do bolo da renda nacional apropriada pelo 1% mais rico da sociedade brasileira cresceu de 20,4% para 23,7% —ou seja, mais de três pontos percentuais, o que é considerado muito para um período tão curto de tempo.

Segundo o estudo, a concentração de renda ocorre principalmente entre aqueles que ganham acima de R$ 140 mil mensais líquidos. A fatia do bolo que fica com esse grupo cresceu de 9,2% para 11,9% ao fim dos cinco anos marcados pela pandemia e pelo governo Bolsonaro.

Entre os fatores que explicam o crescimento da renda na elite, Gobetti destaca dois em especial: os ganhos com a atividade rural (parcialmente isentas), que cresceu especialmente entre os mais ricos, e o aumento do valor distribuído em forma de lucros e dividendos, que passou de R$ 371 bilhões em 2017 para R$ 830 bilhões em 2022.

A revogação da atual isenção sobre dividendos é o principal ponto da proposta de reforma da tributação da renda que o governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) deve enviar até março para o Congresso, conforme previsto pela emenda constitucional da reforma recentemente promulgada.

A emenda deu prazo de 90 dias para o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, enviar a reforma da renda e do patrimônio e 180 para a proposta de regulamentação das mudanças nos impostos sobre o consumo, aprovadas no final do ano passado pelo Congresso.

As duas propostas devem disputar espaço nas negociações do Congresso. Interlocutores do governo admitem que a votação das mudanças no IR pode ficar para 2025.

Haddad quer reformar o IR para eliminar as brechas de elisão usadas pelos mais ricos e, ao mesmo tempo, aumentar a arrecadação sobre a renda. Unir o útil ao agradável, como afirmam os técnicos do Ministério da Fazenda.

o que há de novo? 17-01-24

Evento evangélico trará ao Brasil pastor americano que defende escravidão

Douglas Wilson, da congrefação americana Igreja de Cristo, é um dos expoentes de uma lista de pastores que usam a Bíblia para defender o direito de cristãos escravizarem os negros. Wilson fará palestra na Paraíba.

Ronilson Pacheco, Intercept (expandir)

OS ORGANIZADORES do congresso mais importante do campo evangélico calvinista, a Consciência Cristã, têm se gabado de trazer esse ano ao Brasil um defensor contumaz da ideia de que a Bíblia autoriza a escravidão: o pastor americano Douglas Wilson. Líder da cada vez mais influente Igreja de Cristo, ele escreveu dois livros que buscam “tirar o estigma” do sistema escravista do sul dos Estados Unidos.

A tradição calvinista é uma linha do segmento evangélico guiada pelos ensinamentos de João Calvino, um dos nomes mais importantes da Reforma Protestante. Disputado por teólogos de diversas tendências, Calvino refletiu teologicamente sobre estado e política, governo e sociedade.

A Consciência Cristã acontecerá em Campina Grande, na Paraíba, no próximo mês, já que ela é realizada no período de carnaval. O evento é organizado pela Visão Nacional para a Consciência Cristã, associação conservadora liderada por diversas igrejas evangélicas.

No congresso, estão frequentemente os maiores nomes da direita evangélica calvinista, como os pastores Augustus Nicodemus, considerado uma espécie de “papa” entre os presbiterianos conservadores, e Franklin Ferreira, de posições mais agressivas contra o campo progressista e teólogos liberais.

Embora haja muitos palestrantes considerados moderados e não alinhados com o fundamentalismo, não se espera do congresso nada próximo de uma teologia progressista, defensora dos direitos humanos ou do diálogo interreligioso. Com a vinda de Douglas Wilson, porém, o congresso cruzará uma linha inaceitável – a da defesa aberta da naturalização da escravidão.

Wilson é um dos teólogos fundamentalistas mais reconhecidos da atualidade e exerce grande influência entre os conservadores reformados brasileiros. É, também, um dos principais nomes do nacionalismo cristão, fenômeno considerado por muitos especialistas como a maior ameaça à democracia dos Estados Unidos hoje – principalmente após a invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2022.

O convite feito a Wilson, portanto, levanta muitas questões a serem consideradas no contexto brasileiro, algumas das quais vou explicar a vocês neste texto.

Escravidão teria dado certo se seguisse princípios bíblicos, defende Wilson

Na década de 1960, como reação contra o movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos, uma nova geração de teólogos ultraconservadores retomou e atualizou o pensamento do pastor calvinista Robert L. Dabney, capelão de um general confederado durante a Guerra Civil. 

Dabney via os negros como uma “raça moralmente inferior”, uma “mácula sórdida e alienígena” marcada por “mentira, roubo, embriaguez, preguiça, desperdício”. Nas palavras dele, “uma diferença insuperável de raça, feita por Deus e não pelo homem, torna claramente impossível para um homem negro ensinar e governar os cristãos brancos”.

Entre os teólogos que recuperaram seu pensamento está Rousas Rushdoony, que publicou em 1973 “Institutes of Biblical Law”, livro que deu as bases para a fundamentação teológica de uma sociedade “reconstruída” segundo o Antigo Testamento, com classes com direitos diferentes. Nele, Rushdoony opôs-se ao casamento interracial e atacou o igualitarismo.

Douglas Wilson é da geração de teólogos conservadores imediatamente posterior a esse movimento e um dos mais aguerridos defensores públicos da justificação bíblica para escravidão. 

Ele trabalhou pelo revisionismo histórico sobre o legado “positivo” da escravidão e sustenta a visão de que, se o sistema escravista do Sul tivesse sido fiel aos princípios bíblicos, teria funcionado harmoniosamente, ou desaparecido “pacificamente” com o tempo. 

Wilson chega a dizer que a vitória dos abolicionistas impediu, por exemplo, que africanos escravizados pudessem ir para lugares como o estado da Virgínia, onde ele acreditava que havia maiores condições de encontrarem “mestres piedosos”. Com isso, em suas palavras, “eles foram levados para lugares como o Haiti e Brasil, onde o tratamento dos escravos era simplesmente horrendo”.

A despeito de toda a densidade de documentos, dados e relatos sobre o período da escravidão, Wilson insiste na ideia de que os escravizados tinham uma dieta alimentar superior à de um cidadão americano médio hoje. 

Além disso, ainda segundo Wilson, seguindo a compreensão do pastor confederado Dabney, os maus tratos sofridos por alguns escravizados – como as chibatatadas, os estupros, açoites, enforcamento, e outros tipos de humilhação e tortura – “foram raros e pouco frequentes”.

Apoiador incondicional de Donald Trump, Wilson apoiou a fala do então presidente americano sobre o confronto entre neonazistas e manifestantes antirracistas em Charlottesville, na Virgínia, em 2017. 

Grupos de supremacistas brancos fizeram uma marcha de “orgulho confederado”, convocada pelo presidente do movimento de extrema direita neoconfederado Liga do Sul, Michael Hill, no seguinte tweet: “Se quiser defender a civilização do Sul e do Ocidente dos judeus e dos seus aliados de pele escura, esteja em Charlottesville no dia 12 de agosto”. 

Trump se recusou a reprovar a marcha de supremacistas brancos e afirmou que “havia culpa dos dois lados”, sendo fortemente criticado. Wilson, então, publicou a carta “Em louvor ao nosso presidente”, defendendo Trump e afirmando categoricamente: “Eu igualo o Black Lives Matter à Ku Klux Klan”. 

O chamado nacionalismo cristão, que vem se espalhando nos Estados Unidos e no Brasil, é uma séria ameaça à democracia. Foto: Pedro Ladeira/Folhapress

Nacionalismo cristão ameaça a democracia nos EUA e aqui

Além de defender a escravidão, Douglas Wilson ainda se identifica assumidamente com o nacionalismo cristão nos Estados Unidos. A ideia de uma cooptação total da ordem social por um cristianismo fundamentalista que deve orientar a sociedade política, moral, religiosa e culturalmente se tornou um risco político antidemocrático crescente.

Essa ideologia de extrema direita se vale de uma gramática religiosa para justificar sua visão de mundo e projeto de poder; uma mistura explosiva do radicalismo cristão com novos movimentos de supremacia branca e saudosistas do Sul confederado escravista.

Ela teve na eleição de Donald Trump um marco e está diretamente vinculada ao ataque ao Capitólio em 6 de janeiro de 2022 – e também mostrou a sua cara brasileira no ataque às sedes dos três poderes em Brasília em 8 de janeiro de 2023

Mas, segundo Wilson postou no Twitter, “o nacionalismo cristão é uma resposta cristã, baseada na Bíblia, à loucura dos nossos tempos”. Por isso, “os cristãos devem, portanto, desejar que as escolhas morais da sociedade a que pertencem sejam fundamentadas na vontade do Deus verdadeiro, e não na vontade dos ídolos”. 

Aqui, não cabe nenhuma ilusão ou visão de um evangelho “genuíno”. O “Deus verdadeiro” é o eufemismo escolhido para um projeto político que não aceita que qualquer outra orientação ideológica, mesmo cristã, paute a sociedade.

Nenhuma outra religiosidade deve ter parte na construção e estruturação dos valores morais e culturais. Nessa guerra, portanto, os “ídolos” são todos os outros, inclusive a própria democracia.

Extrema direita evangélica brasileira dobra aposta

A escolha de Douglas Wilson para ser o principal palestrante da Consciência Cristã não foi recebida com festa por todos. Mesmo entre evangélicos conservadores nos Estados Unidos, ele não é uma unanimidade e chega a ser considerado um líder polêmico. 

A pergunta que fica, então, é: por que a Consciência Cristã escolhe como convidado essa figura nesse momento político tenso tanto aqui quanto nos Estados Unidos? 

Lá, Trump ganha força enquanto a extrema direita evangélica se convence de que ele é ideal para guiar o país na “guerra cultural” contra a esquerda e movimentos antirracistas. Aqui, com a vinda de Wilson, a nossa direita religiosa mostra estar em perfeita sincronia com a americana. 

Veremos em novembro se essa força se sustentará – e, nos meses e anos seguintes, como repercutirá por aqui.

A expansão dos movimentos ultraconservadores


A ultradireita, o neoliberalismo e as contradições do capitalismo

Aldamir Marchetti e Alfredo Gugliano, A Terra é redonda (expandir)

A ascensão da ultradireita tem sido vertiginosa desde a crise financeira de 2008, especialmente na Europa e nas Américas. A expansão tem sido marcada por vitórias eleitorais importantes, como as recentes de Javier Milei na Argentina (2023) e Geert Wilders na Holanda (2023). Pesquisas indicam ainda a possibilidade de Donald Trump retornar à presidência dos Estados Unidos em 2024, o que traria um novo ímpeto para a ultradireita. Haverá eleições em mais de 40 países, incluindo seis na América Latina. Há muito espaço para a expansão da extrema direita.

É crucial compreender como chegamos numa situação em que o avanço da ultradireita coloca os setores de esquerda, que defendem uma democracia plena, em posição defensiva. Os partidos políticos que historicamente sustentaram o neoliberalismo perderam espaço, como evidenciam os casos do Brasil e da Argentina. Nesse contexto, os movimentos sociais e os partidos de esquerda devem opor-se ao movimento ultraconservador.

Nas primeiras décadas do século XX, a ascensão da ultradireita, representada pelo nazismo e fascismo, ocorreu a partir da crise do liberalismo clássico. A crise econômica na Alemanha e Itália serviu como catalisador para a expansão desses movimentos. De modo semelhante, a grande crise de 1930, marcada pela queda da acumulação de capital e pelo empobrecimento das massas trabalhadoras, propiciou um terreno fértil para a expansão de governos ditatoriais de ultradireita em diversos países. Muitas vezes, a violência contra os setores da esquerda organizada foi a maneira que a ultradireita encontrou para chegar ao poder, como nos casos da Espanha e da Alemanha.

A expansão atual da ultradireita possui paralelos com o século passado, especialmente em sua associação com o processo de crise da economia capitalista. Notavelmente, grupos extremistas conservadores se fortalecem durante recessões econômicas, aumentos do desemprego, desigualdade e incertezas. Diante da contradição entre os governos neoliberais que adotam a austeridade e a solução da crise pela ação do Estado, os neoconservadores ocupam espaço, enfatizando a liberdade individual, a expansão dos mercados e promovendo o combate às minorias.

Michel Löwy (2015) sublinha que essas agrupações se apresentam com diferentes roupagens. Na Europa, o mais comum é que grupos ultraconservadores formem novos partidos ou reformem agremiações políticas tradicionais. Esses partidos ou podem ter um programa explicitamente fascistas ou nazistas; ou ser semifascistas, não assumindo o conjunto desse ideário; ou ainda podem ser partidos ultraconservadores que não assumem o fascismo, mas compartilham valores como o racismo, xenofobia, retórica anti-imigrante e islamofobia.

Em outras regiões a situação é diferente. Como explica Michel Löwy (2015), no Brasil não existe um partido de massas cuja principal bandeira seja o racismo, mas grupos políticos espraiados por diversos partidos políticos, cujo discurso está centrado na valorização do papel dos militares, a facilitação do uso de armas e a intolerância com as minorias. Junto com essas bandeiras o racismo, o sexismo e o antiecologismo igualmente prosperam.

O advento do neoliberalismo, na década de 1980, após a crise da Idade Dourada contribuiu para uma crescente desigualdade social, transferindo renda do trabalho para o capital, especialmente o financeiro, e reduzindo empregos bem remunerados na indústria. Diante dessa nova realidade, Wolfgang Streek (2018) sublinha que o século XXI não enfrenta apenas uma desaceleração da economia de mercado, mas enfrenta a iminência de uma crise do capitalismo democrático.

A crise de 2008 impulsionou o crescimento da ultradireita, a diminuição na acumulação de capital impactou severamente os setores sociais já prejudicados pelo neoliberalismo, ampliando a incerteza, reduzindo a renda, e abrindo espaço para o discurso ultraconservador. Com ênfase na valorização de princípios tradicionais, como a moral cristã e a estrutura familiar patriarcal, juntamente com a adoração aos símbolos nacionais e a suposta defesa da liberdade, os setores da extrema-direita conquistaram apoio entre aqueles mais atingidos pela crise econômica global.

Wendy Brown (2019) observa que a ultradireita adota um discurso no qual a liberdade é posta em risco por qualquer política que desafie o modelo tradicional da sociedade cristã, conforme interpretado por grupos neopentecostais. Isso inclui não apenas o combate a questões relacionadas a sexo, raça e gênero, mas também a demonização da justiça social e da democracia, em favor da liberdade dos mercados.

A ultradireita atribuiu as causas da crise econômica a fatores que ela apresenta como externos ao funcionamento da economia de mercado capitalista como, por exemplo, a globalização, a imigração, os políticos de esquerda e os movimentos sociais, o comunismo e as políticas identitárias. Também apontaram o estado como vilão e responsável pelos problemas sociais, denunciando que as burocracias públicas e a classe política agem somente na defesa de interesses próprios.

Assim, a solução proposta por esses setores envolve a redução do estado, o resgate do nacionalismo frente à globalização e a promoção de ataques aos setores de esquerda. Enquanto suas principais propostas estão a reconfiguração estatal, redução de serviços públicos e impostos, e avanço nas reformas liberais, diminuindo direitos dos trabalhadores e garantias democráticas. Em uma clara aliança com as tendências mais radicais do neoliberalismo, a ultradireita mescla o tradicionalismo cultural com o ultraliberalismo econômico. Seus governos buscam promover reformas liberais, reduzir os direitos trabalhistas, diminuir a intervenção estatal e desmontar instituições participativas e espaços de controle popular. Atacam a renda do trabalhadores e a democracia.

Ao adotar a agenda econômica do neoliberalismo, a ultradireita conquistou o espaço anteriormente ocupado pelos partidos neoliberais, os quais perderam influência política. Muitas das propostas dos economistas neoliberais foram fortalecidas, como é perceptível nas primeiras medidas anunciadas pelo presidente Javier Milei, na Argentina. Ideário que se aproxima ao proposto pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, no Brasil, e que será o programa defendido pelo representante do bolsonarismo em 2026.

A ascensão política da ultradireita coincide com um aumento da tensão pela hegemonia mundial e o ressurgimento de conflitos com forte capacidade de desestabilização internacional. Por exemplo, há uma série de confrontos diplomáticos entre os Estados Unidos e países desenvolvidos com a China e os países em desenvolvimento. A Rússia adotou uma política que mescla defesa e expansionismo, evidenciada pela guerra contra a Ucrânia. Além disso, deve-se considerar o conflito entre o estado de Israel e os palestinos, que tem servido de pretexto para o expansionismo israelense na Faixa de Gaza, e que pode levar a guerra envolvendo outros países da região.

É fundamental lembrar que regimes ultradireitistas tiveram um papel crucial no desencadeamento da Segunda Guerra Mundial e na perseguição de minorias. A derrota da ultradireita veio após um custo humano inestimável, com milhões de mortes em diferentes continentes. Atualmente, esses setores estão tendo um papel central no acirramento de um conjunto de conflitos mundiais que podem resultar em guerras.

Para complementar o contexto em que vivemos, mais dois fatores se somam para compor o quadro do estágio atual da sociedade capitalista. A crise climática, possivelmente o maior desafio enfrentado pela humanidade no século XXI, é resultado de uma fase muito específica denominada por Jason Moore (2016) como capitaloceno. Os impactos ambientais decorrentes da produção capitalista estão alcançando um ponto crítico, com vários cientistas e organizações internacionais alertando sobre a iminência de um ‘ponto de não retorno’.

Além disso, a crise emerge em um cenário em que vários indicadores internacionais, como o Latinobarômetro e o V-Dem, sinalizam uma crescente insatisfação das sociedades em relação à democracia. Pesquisas frequentemente revelam indignação em relação aos políticos, descrédito nos partidos políticos e, especialmente, desconfiança em governos percebidos como afetados pela corrupção. É precisamente essa combinação entre os efeitos negativos das grandes crises do capitalismo e a descrença na política e na democracia como meios de solucionar problemas sociais que alimenta o crescimento da extrema direita.

Nesse contexto, a expansão dos segmentos ultraconservadores não significa que tenhamos uma batalha perdida. A esperança reside na democracia e no abandono do neoliberalismo como um caminho para construir um modelo econômico mais equitativo e sustentável capaz de confrontar a ascensão da ultradireita. Cabe aos setores populares que sofrem as consequências da crise econômica e do discurso da ultradireita ocupar o seu papel na construção dessa sociedade e elaborar uma nova agenda política com alternativas reais para enfrentar as crises decorrentes do capitalismo.

*Adalmir Marquetti é professor do Departamento de Economia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

*Alfredo Gugliano é professor titular do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Referências


BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo. São Paulo, Politeia, 2019.

LOWY, Michael. Conservadorismo e extrema-direita na Europa e no Brasil. Serviço Social e Sociedade, 124, pp. 652-664, 2015.

MOORE, Jason. Anthropocene or Capitalocene? Nature, History and the Crisis of Capitalism. Oakland, PM Press, 2016.

STREECK, Wolfgang. Tempo Comprado. A crise adiada do capitalismo democrático. São Paulo: Boitempo, 2018.


Página recomendada

Um dos melhores sites da crítica de cinema feita sob vários ângulos de análise: da semiótica à política. Material de 1a linha (acesse aqui)

o que há de novo? 16-01-24

Glenn Greenwald: "eleitores consideram irrelevantes acusações contra Trump" (expandir)

# Ex-presidente vence com folga primária de Iowa

247 – O jornalista Glenn Greenwald comentou sobre a significativa vitória de Donald Trump na primária republicana de Iowa, afirmando que a dimensão massiva e histórica do triunfo deveria suscitar reflexão sobre o colapso da fé na legitimidade das instituições de autoridade e justiça nos Estados Unidos. Em sua declaração, Greenwald observou que os eleitores parecem ignorar quatro casos criminais contra Trump, considerando-os irrelevantes ou até mesmo como uma vantagem.

A vitória de Trump na primária foi expressiva, conquistando 51% dos votos, uma margem sem precedentes na história das primárias republicanas de Iowa, conforme divulgado pela Edison Research e reportado pela Reuters. A liderança de Trump sobre seus concorrentes, com Ron DeSantis em segundo lugar com 21% e Nikki Haley com 19%, destaca sua dominação nas pesquisas nacionais, refletindo sua popularidade duradoura entre os eleitores republicanos.

Os resultados indicam um amplo apelo de Trump, obtendo maiorias tanto entre homens quanto mulheres, conservadores e independentes. Esta vitória ressalta a aderência notável que Trump mantém sobre o Partido Republicano, tornando improvável uma rápida consolidação do campo contra ele, de acordo com o estrategista republicano Jimmy Centers.

Greenwald mencionou que, apesar das acusações criminais e das controvérsias ligadas ao ataque ao Capitólio e à eleição de 2020, os eleitores parecem desprezar esses fatores, o que levanta questões sobre a confiança nas instituições judiciais e de autoridade nos EUA.

A declaração de Greenwald lança luz sobre a complexidade do cenário político atual, onde fatres jurídicos não parecem ter um impacto significativo nas escolhas dos eleitores. Enquanto Trump avança para as próximas primárias em New Hampshire com uma liderança sólida, a estratégia do ex-presidente de evitar debates e adotar uma abordagem não convencional parece ser eficaz, conforme destaca a análise do jornalista.

A participação massiva dos eleitores em Iowa, mesmo diante de condições climáticas adversas, ressalta o fervor dos apoiadores de Trump. O Partido Democrata em Iowa, por sua vez, reorganizou seu calendário de indicações, não realizando primárias na segunda-feira. Os democratas votarão por correspondência, com os resultados previstos para março. Iowa, historicamente influente nas campanhas presidenciais, permanece como um bastião republicano, demonstrando uma inclinação consistente para o partido nas últimas eleições.


Desigualdade S/A, da Oxfam: no Brasil, 1% da população tem 63% dos ativos financeiros

E os cinco homens mais ricos do mundo mais que duplicaram suas fortunas em 2023: de 405 para 869 bilhões de dólares

Victor Ohana, Carta Capital (expandir)

O documento da Oxfam, intitulado Desigualdade S/A,  foi divulgado neste domingo, 14 de janeiro (# leia aqui a íntegra da reportagem da Carta Capital) 

o que há de novo? 15-01-24

Exaltação a Julieta Hernández

Caio Guatelli, na Folha. Ilustração: Jean Galvão 

Julieta Inés Hernández Martínez era o nome da palhaça Jujuba, uma artista itinerante, imigrante venezuelana e cicloviajante. Morava no Brasil desde 2015 (expandir)

Em 2019 saiu pedalando do Rio de Janeiro, mirou o norte e foi cruzando os estados brasileiros devagarzinho, rumo às suas origens. Queria reencontrar a mãe.

Pedalando sozinha, percorria as estradas desse país quebrando paradigmas, derrubando preconceitos e levando valiosa bagagem: pura alegria e sabedoria para doar às pobres cidadezinhas por onde passava.

Morreu em 23 de dezembro de 2023, aos 38 anos de idade. Foi estuprada, enforcada, queimada, enterrada em cova rasa por um casal de brasileiros num matagal de Presidente Figueiredo (AM).

Nesse país vacilante, que se deixou guiar pela truculência das armas, o assassinato de uma palhaça deveria gerar uma reação contrária de igual potência, de celebração da paz e do desarmamento, que pusesse um fim definitivo na tenebrosa e covarde política do medo.

Mártir da independência feminina e da alegria brasileira é como essa mulher-imigrante-palhaça-ciclista há de ser lembrada, para sempre.

Para disseminar sua sabedoria, nada melhor do que as palavras da própria Julieta, reproduzidas aqui de um discurso espontâneo, dito em português com um belo sotaque, que ela mesma gravou em alguma parada de sua justa, correta, honesta, linda e longa pedalada:

Ser mulher, palhaça e imigrante venezuelana são 3 coisas que estão entrelaçadas. E nesse momento sou imigrante venezuelana itinerante viajando de bicicleta pelo interior dos estados nordestinos do Brasil. Ainda que não seja o país que nasci, é um pouco meu sim, porque inevitavelmente a gente como migrante acaba se permeando pela cultura e realidade do país ao qual por necessidade ou escolha a gente teve que morar.

Ser mulher palhaça imigrante é uma grande responsa. Porque a gente querendo ou não, vira referência de mulher que viaja só. referência de mulher que escolhe uma profissão que geralmente é de homem. Porque nesses lugares é difícil que chegue palhaço, e quando chega, é homem.

E ser talvez a primeira venezuelana que muitos e muitas pessoas aqui conheçam, em um momento no qual companheiros do meu país moram em situação migratória em diferentes partes, incluindo a América Latina, e sofrem xenofobia.

Ser venezuelana imigrante é uma grande oportunidade de poder chegar nas pessoas para falar do meu país, do quão próximo somos da nossa realidade, que eles possam ter uma referência além da que a televisão dá para eles, e assim fazer com que os próximos venezuelanos e venezuelanas que cheguem a eles sejam recebidos de braços abertos, como eu fui.

Nesta sexta-feira (12), o Brasil exaltou Julieta Inés Hernández Martínez em uma pedalada nacional.

Na cidade de São Paulo a concentração de ciclistas aconteceu às 18h30, no vão livre do Masp.

# Link para acesso à matéria original publicada na Folha

Futuro imperfecto #21: promesas y mentiras de la tecnología para 2024

Martín Sacristán, Jot Down, em espanhol (expandir)

Adeptos y defraudados. Hasta 2020 la tecnología era algo que iba mejorando nuestras vidas. O al menos lo intentaba. Pero eso solo podía saberse una vez muchos usuarios empleasen una nueva tecnología y decidieran si era mejor, peor, o inútil. Ahora los avances y lanzamientos son una bandera que defender, y ningún ejemplo mejor que los fans de Elon Musk, que no admiten críticas a ninguno de sus emprendimientos, ni siquiera a los que fracasan. Basta escuchar a los profetas de las criptomonedas para entender que ni la lógica del análisis, ni la evaluación por críticos expertos sirve con los convencidos. Próxima emisión de deuda pública de El Salvador, en cripto. Su argumento es que si las bondades prometidas no se han concretado ya, lo harán mañana, y eso es seguro. Este razonamiento ha sido adoptado además por los medios, que obtienen más audiencia si se suman a la exageración de la promesa científica o tecnológica. Así es como se ha creado una corriente de opinión pública fomentada por la lógica mercantil del capitalismo actual, donde los milagros posibles atraen inversores o aumentan la cotización en bolsa. Exageremos. Como no cabe duda de que la tecnología ha cambiado el presente, por qué no abrazar la fe de que cambiará el futuro. El único matiz, en 2024, es que tal vez no lo haga a mejor.

1. La mierdificación

La perspicaz traducción del término enshittification, acuñado por el escritor y activista de la tecnología Cory Doctorow, ha sido hecha por Manuel Ligero en La Marea. Y en español define a la perfección un fenómeno sobre el que nos ha llamado la atención el escritor y activista de la tecnología neoyorkino.

Cualquier servicio tecnológico se enmierdifica una vez la big tech que lo promociona alcanza la hegemonía. Los productos que ofrecen logran su éxito por el uso masivo, pero cuando todos lo adoptamos, es imposible evitar que pierdan sus cualidades y calidad hasta convertirse en una mierda. Google es el mejor ejemplo, hace justo un año se volvió tendencia la pregunta de por qué era tan difícil ahora encontrar algo decente en su buscador. Ha pasado de entregar información muy relevante a ser puro escaparate de venta. Doctorow prevé que esto solo vaya a peor, para todas las tecnológicas, en los años venideros. La internet que conocimos, fuente de información y descubrimiento, será un gran centro comercial y publicitario. Donde la verdad será pura exageración de unos medios compitiendo por la atención a base de bombo y platillo.

2. Los robots como compañeros de trabajo

El miedo a que un robot nos sustituya es tan injustificado como a que lo haga la inteligencia artificial. Ahora bien, en labores de baja cualificación, donde antes trabajaban diez humanos, pronto habrá uno solo, con nueve robots de compañeros. Elon Musk ha presentado Optimus 2, que aún anda como entre escocido y convaleciente de algún traumatismo, pero que va mejorando en su capacidad de cumplir tareas. El plan a futuro es que sirva para cuidar a los niños, hacer la comida y la limpieza de la casa, de tal modo que esté tan presente en nuestras casas como el coche o la nevera. No será en 2024: además de mejorar su movilidad tiene que saber interactuar con humanos, prever situaciones de peligro, quizá incluso evitar que un humano sufra daño, como especificaba Asimov en sus tres leyes de la robótica. También los Teslas tienen que conducir solos todavía, así que paciencia.

Pero en 2023 ya hay setecientos cincuenta mil robots humanoides trabajando en los almacenes de Amazon, en el mismo espacio físico que el millón de trabajadores humanos contratados allí. De momento solo reciclan el cartón, una tarea cansina y repetitiva. El costo por hora de estos robots es de doce dólares, inferior por tanto a los quince del trabajador humano, que se reducirán, siempre según datos de Amazon, a solo dos en cuanto escalen su producción. Aunque la compañía niega que vayan a sustituir a humanos, la lógica lleva a pensar que con un par de personas vigilando un equipo de robots el coste laboral se reducirá drásticamente. Si la inteligencia artificial escala lo suficiente, tales robots podrían acabar siendo ingenieros. Será otro año.

En este vídeo vemos al robot cogiendo cajas que le da un humano, apilando, transportando y andando por el almacén.

3. La panacea de la nueva medicina CRISPR

Aprobada este año la terapia Casgevy, que modifica el ADN humano. Ya tenemos personas editadas. Usando la técnica CRISPR/Cas9 es capaz de eliminar la anemia de células falciformes y la beta talasemia, enfermedades congénitas. Casi parece justicia poética que una enfermedad incurable cuyos pacientes suelen morir jóvenes haya podido curarse por primera vez en Reino Unido. A finales de los setenta, Ridley Scott encontró en un pub del Soho londinense al nigeriano Bolaji Badejo, un gigante de más de dos metros y anormalmente delgado que fijó para siempre en nuestras retinas la imagen del alien gracias a su cuerpo inusual. Su anomalía física tenía como origen la anemia de células falciformes, que lo llevaría a la muerte años después de vestir el disfraz del xenomorfo. Hoy se curaría en el mismo país donde saltó a la fama.

También se han curado dos adolescentes de un tipo de leucemia no tratable con otra técnica CRISPR, la de editores de bases, que borra una parte del ADN para insertar en la parte borrada una modificación. Esta es experimental todavía, no un tratamiento autorizado, pero ya ha llevado a la exageración en algunos titulares, y a la promesa de que con CRISPR podríamos acabar con el cáncer.

No es tan sencillo. Primero porque son terapias con efectos secundarios. La segunda puede provocar graves infecciones en el paciente, por la alteración de su sistema inmunológico. De ambas desconocemos si tendrán consecuencias en el genoma a medio y largo plazo. Segundo, porque su coste tampoco augura una revolución médica universal, la terapia Casgevy para anemia falciforme cuesta dos millones de dólares por paciente. ¿Veremos algo así incorporado a los sistemas europeos de sanidad pública, como el español? El precio no es necesariamente un obstáculo, el medicamento para curar la atrofia muscular espinal, Zolgensma, que cubre la Seguridad Social, cuesta 1 340 000 euros por paciente. Es una enfermedad rara, como la citada, y para la que hay pocas alternativas, pero siempre que exista un tratamiento habitual y con un porcentaje de efectividad alto se optará por él. La medicina CRISPR no será, al menos en 2024, la que nos curará todo.

4. La inteligencia artificial generativa es el nuevo ordenador

Quienes afirman que la IA acabará con el trabajo son o demasiado optimistas o demasiado categóricos. No digamos ya quien le atribuye una inteligencia humana. La máquina es espectacular, pero es que no llega ni al nivel de razonamiento de tu mascota. Donde la encontraremos en 2024 es en la ofimática, cambiándola radicalmente como ya hace Copilot de Office. Sigues haciendo presentaciones de Power Point, pero das unas bases a la aplicación, la IA las desarrolla y tú solo tienes que hacer retoques. Sigues contestando al correo, pero Outlook responde de forma automática a muchos de ellos, elimina la basura, y al final solo tienes cuatro o cinco realmente relevantes en tu bandeja. Y así, un largo etcétera que ha iniciado Microsoft pero que veremos seguir, como pauta, al resto de compañías.

En cuanto a la generación de contenidos por IA, Google ha presentado Gemini, su chatGPT pronto accesible para todos. Su capacidad multimodal permite generar texto e imagen a la vez, así que podrías darle unas instrucciones y que te haga un vídeo o unas páginas de cómic. Más youtubers y tiktokers, pero esta vez automáticos.

5. ChatGPT 0, creadores 1

¿Estamos condenados a desaparecer quienes escribimos y quienes ilustran? Los gurús predicen que la creación de contenidos será entregada definitivamente a las máquinas generativas de IA. Es solo uno de los primeros trabajos que desaparecerán. Exageración o realidad, esa predicción se ha saltado las preferencias del público. Los lectores, de momento, no quieren textos generados por inteligencia artificial.

La revista Futurism descubrió en un artículo publicado en noviembre que Sport Illustrated había publicado numerosos artículos escritos por IA, pero con fotos y perfiles profesionales de periodistas, también generados por IA, para que pareciese que los escribían personas. Es interesante porque la revista deportiva fue un referente en su momento, porque despidió a toda su plantilla, pero sobre todo porque ningún medio, hoy por hoy, quiere admitir que publica contenido generado por IA. Ellos tampoco, una vez desvelado lo han borrado todo.

Los lectores no quieren textos automáticos que se hagan pasar por reales. Los anunciantes tampoco, y hoy por hoy son las dos fuentes de ingresos de los medios. No puedes enfadar todo el tiempo a todo el mundo. El periódico francés L’Est Républicain ha usado ChatGPT para resumir y poner gancho a los textos de sus corresponsales. ¿La queja de los lectores? Que no les avisaron que eso lo había hecho una IA.

En cuanto a las imágenes generadas por IA son muy reconocibles, así que se aceptan como relleno, pero nadie compraría un álbum ilustrado, un cómic o una obra de arte de una IA en Sotheby’s. Puede que eso acabe cambiando. Que mejoren tanto como para sustituirnos. Pero de momento, en 2024, los creadores seguiremos. Feliz año.



pensatas para o fim de semana 13/14-01-24 

Essa gente que trabalha enquanto o coach dorme

Fabiana de Moraes, Intercept (expandir)

As mais de 20 milhões de pessoas que labutam no período noturno no Brasil têm mais a nos ensinar do que o coach que não as enxerga


Ninguém tem mais certeza do que o coach. Ninguém é mais assertivo, rápido, resolvedor. Um manancial de soluções muito eficientes que nós, os não-coaches, povo que não é feito de poeira estelar, nunca vai saber propor.

Ninguém requenta melhor do que o coach. Ele retrofita práticas, conclusões e frases espetacularmente antigas como se fossem novidades recém-paridas por seu cérebro supostamente brilhante. Ele cita Cicrano que cita Beltrano que cita Fulano que neste momento dá um google procurando as aspas surradas e tranquilizadoras de alguém.

Mas ninguém, ninguém, trabalha mais do que o coach. Ele, do alto de sua barba bem-feita e das tatuagens saídas de alguma linha de produção fordista, afirma que, se tu tá aí pendurada no Serasa, foi pura falta de esforço, de dobrar o tempo, de produzir mais, de ser mais eficiente.

Afinal, ninguém é melhor do que o coach, esse cara que produz enquanto os outros dormem. 

Ninguém, a não ser mais de 20 milhões de mulheres e homens que trabalham no período noturno no Brasil, gente espalhada em locais como postos de gasolina, aeroportos, indústrias, farmácias, supermercados, setor de transportes, entregas, restaurantes, bares, etc. 

São, de acordo com a bióloga Frida Fischer (coautora de pesquisas como “A saúde do trabalhador na sociedade 24 horas“), pessoas bem mais expostas a doenças como depressão, problemas cardíacos e digestivos, estresse e fadiga crônica, entre outros. Problemas de relacionamento também são mais comuns entre profissionais cujas jornadas de trabalho se dão entre 22h e 5h da manhã.

Abaixo, uma breve conversa com algumas dessas pessoas, essa gente que trabalha enquanto o coach, tantas vezes dono de uma obtusidade exuberante, dorme.

1. Josefa Maria da Silva, 42 anos, babá. Lila, codinome pelo qual é geralmente tratada, mora no bairro da Mirueira, na cidade de Paulista, em Pernambuco, e trabalha na Jaqueira, bairro nobre de Recife. São cerca de 20 quilômetros entre um local e outro, nada tão dramático em termos de distância. 

Porém (ah, porém), a coisa não é tão simples. Uma googlada no Maps, e as opções de ônibus aparecem: a média de uma hora de viagem informada é apenas virtual. Lila gasta o dobro do tempo – às vezes mais – para chegar às 7h da manhã na casa na qual trabalha há 8 anos, cuidando de três crianças.

As opções de ônibus da casa para o trabalho de Josefa Maria da Silva, uma das milhões de brasileiras ignoradas pela filosofia dos coaches.

Para isso, trabalha enquanto o coach faz a barba: salta da cama às 4h. Às 5h, ela já está no ponto de ônibus. Embarca na linha 1943 Mirueira/TI Pelópidas. Depois, segue na Linha 1906, que liga o terminal Pelópidas ao Terminal Integrado da Macaxeira, no bairro de Dois Irmãos, Recife. Lá, embarca em mais um ônibus, a linha 520, rota Macaxeira-Parnamirim. 

Sai do emprego apenas às 18h – e é nesse retorno para casa, depois de uma jornada longa de trabalho, que o bicho mais pega: Recife é, há tempos, uma das cidades mais congestionadas do país. Lila só consegue chegar em casa entre 20h30 e 21h. Assim, gasta cerca de 5 horas, todos os dias, no deficitário transporte público da cidade e sua região metropolitana. 

Lila bem que poderia transformar esse tempo e essa dificuldade em uma chance para aprender mais e se superar, diria o coach enquanto prepara seu shake com creatina. Mas não é possível ler nada quando se vai e volta em pé, espremida entre dezenas de pessoas. 

Mas que tal ouvir uma música ou conferir nas redes os conselhos do pessoal que afirma “o dia de 24 horas para todo mundo“? Depois de ser assaltada três vezes nos coletivos, Lila prefere manter o telefone escondido. 

“É um tempo perdido, que não posso recuperar. Seria um ótimo momento para estudar. Mas não dá”. A babá, que trabalha e se espreme em seis ônibus por dia enquanto os coaches dormem, tem carteira assinada, ganha R$ 1,5 mil líquidos ao mês e folga às terças-feiras ou, a cada 15 dias, um fim de semana.

2. Fernando Cirino de Souza, 49 anos, motorista. Vive na zona rural de Paudalho, a 47 quilômetros de Recife. Trabalha de segunda a sexta para uma granja que vende e distribui ovos para cidades no interior de Pernambuco, além da Paraíba e do Rio Grande do Norte. 

Tem carteira assinada e acorda às 2h da madrugada quando faz viagens interestaduais (em média, duas vezes por semana). Às 3h, chega na empresa, onde deixa a motocicleta. Cerca de três ou quatro horas depois, já está em Guarabira, Paraíba, a pouco menos de 225 quilômetros da capital pernambucana. 

Descarrega toda a carga com a ajuda de mais uma pessoa e, só então, toma o café da manhã. O sono bate na volta, na estrada, após o almoço às 11h. “Quando começo a bocejar, já sei que tenho que ficar mais alerta. É minha segurança, a de quem está comigo, a de quem está na estrada”. 

Quando as viagens são feitas para o agreste de Pernambuco, consegue levantar um pouco mais tarde, às 3h. Segue com a carga para cidades e povoados como Garanhuns, Águas Belas, Caetés, Brejão, Angelim, Palmerina, Bom Conselho. Pernoita na estrada e só volta para casa, onde vive com a mulher, Marília, no outro dia à noite. 

Em um mês, consegue cerca de R$ 2 mil líquidos. Fernando cruza, de madrugada, as tantas vezes muito inseguras rodovias no país. Enquanto isso, o coach e suas tatuagens de linha de produção fordista, insere no Canvas mais uma frase motivacional sobre a imagem de um homem usando terno.

3. Geovane Araújo, 50 anos, técnico em segurança do trabalho e ex-vigilante. Antes de conseguir uma maior estabilidade trabalhista – assim como Fernando e Lila, ele também tem carteira assinada –, Geovane trabalhou diariamente como vigilante em uma escola. 

Saía do quase extremo norte do litoral pernambucano, na cidade de Itapissuma, para a zona sul da capital, em Boa Viagem. Quarenta e cinco quilômetros. O detalhe é que precisava estar às 7h no local. Pegava o primeiro ônibus disponível – para isso, chegava no ponto às 3h50 da madrugada. 

Seguia para o terminal de Igarassu, onde embarcava em outro ônibus até Recife. De Recife, ia na Linha 050 (PE-15/Boa Viagem). É a mesma pisada de Lila: três ônibus para ir, três ônibus para voltar, jornadas de 5, às vezes 6 horas no total de viagens. 

“Levantava da cama às 3h20 para tomar um banho, um café preto e seguia. O café da manhã era no serviço. Levava o almoço ou comia algo perto do trabalho mesmo”, me contou. 

Geovane ganhava por hora trabalhada. Assim, apesar de dedicar quase a totalidade do seu dia ao trabalho, só recebia pelos horários de 7h às 9h e das 14h às 17h, quando estava no portão da escola. O total por mês: R$ 470. Sim, quatrocentos e setenta reais. 

O ano era 2018, e Geovane só chegava em casa, após sair de Boa Viagem, por volta das 21h – enfrentava quilômetros de engarrafamentos, esse inferno cotidiano naturalizado, essa máquina de moer gente pobre.

A intentona fascista de 8 de janeiro de 2023: pequena antologia

# A guerra contra o Brasil moderno

Jorge Branco (A Terra é redonda)

# O que foi o 8 de janeiro?

Bernardo Ricupero (A Terra é redonda)

# O mito da democracia inabalada

Igor Felipe Santos (A Terra é redonda)

Menos Exército, mais carro de som: a extrema direita um ano depois do 8 de janeiro

Jonas Medeiros, piauí (expandir)

Ao longo do ano que se seguiu aos acontecimentos de 8 de janeiro de 2023, a extrema direita voltou a ocupar as ruas. Depois de meses acuada pela falta de legitimidade da depredação profanadora das sedes dos três poderes e pelos processos judiciais protagonizados por Alexandre de Moraes e de sequer ter buscado disputar espaço na data do Sete de Setembro, houve uma primeira tentativa, fracassada, no feriado da Proclamação da República, com apenas duzentas pessoas respondendo à convocatória. Em seguida, ocorreram protestos maiores em 26 de novembro e 10 de dezembro de 2023.

Fui a campo na Avenida Paulista para observá-los. Descrever os discursos, símbolos e emoções que circularam nessas manifestações na capital de São Paulo permite também identificar e interpretar tendências e contratendências de como o campo reacionário pode influenciar o desenvolvimento do processo político brasileiro.

O primeiro desses protestos, de 26 de novembro, teve a sua convocatória protagonizada pelo pastor Silas Malafaia, e houve uma tentativa de avançar uma pauta única, dando centralidade à morte de Cleriston Pereira da Cunha, o Clezão, um autointitulado patriota que foi preso por conta do 8 de janeiro e teve um mal súbito na penitenciária da Papuda. Nesse contexto, deu-se uma surpreendente apropriação pela extrema direita da temática dos direitos humanos. A grande novidade dessa manifestação na Paulista foi a inédita ocorrência de um carro de som unificado. Eu acompanho protestos da direita desde março de 2015 e nunca havia observado tal fenômeno; as domingadas desde a época da campanha pró-impeachment de Dilma Rousseff até chegar aos protestos pró-governo Bolsonaro entre 2019 e 2022 sempre foram marcados pela existência de múltiplos carros de som, que disputavam a atenção dos manifestantes. 

Ao contrário da tradição da esquerda de organizar protestos como passeatas – com local de concentração e marcha até um ponto de chegada negociado entre organizadores e PM no qual os manifestantes se dispersam, muitas vezes sob bombas de gás lacrimogêneo – a direita inaugurou com suas domingadas uma dinâmica de protesto singular, na qual as pessoas circulam de um lado a outro das faixas da Paulista, mas sem que a manifestação como um todo saia em qualquer momento do local de concentração. Contudo, a pluralidade de carros de som sempre implicou um grau de flutuação dos corpos e das atenções das pessoas. Elas davam mais bola para os encontros que aconteciam no chão do que para os discursos das lideranças nos caminhões. Muitas vezes os equipamentos de som inclusive se sobrepunham, disputando os olhos e ouvidos de apoiadores nada sedentários, sempre se movendo de um lado para o outro.

Dois dias antes do protesto de novembro, Silas Malafaia foi a público atacar a iniciativa de Carla Zambelli e de seu movimento NasRuas de alugar o próprio carro de som. Ele foi capaz de minar no nascedouro a pluralização desses veículos ao emplacar a interpretação de que a atitude seria divisionista e personalista. Assim, o pastor estabeleceu pela primeira vez o monopólio da atenção dos manifestantes que atenderam sua convocatória. Isso teve implicações profundas para a dinâmica desse protesto e do seguinte, com as atenções voltadas para os discursos.

A faixa pendurada no carro de som de novembro dizia: “Em defesa do estado democrático de direito, dos direitos humanos e em defesa da memória de Cleriston Pereira da Cunha.” Inúmeras falas, cartazes e camisetas emulavam o discurso da esquerda nos tempos da ditadura militar, como se estivesse se desenhando um fechamento de regime. Enquanto um cartaz dizia “sem urnas eletrônicas com contagem pública de votos não há democracia”, um outro clamava “abaixo o regime lulofascista”. O deputado Marcel Van Hattem (Novo), o primeiro a discursar depois de o hino nacional abrir os trabalhos no carro de som, se referiu aos “patriotas” como “presos políticos” que estariam sendo “torturados injustamente”. A também deputada Bia Kicis (PL) afirmou que Clezão foi “vítima da tirania”. Já o ex-deputado Sebastião Oliveira (Avante) alegou que “o sangue do Cleriston está nas mãos do Moraes”. O deputado Marcos Pollon (PL) se referiu ao processo de implantação de uma “ditadura absoluta”. Por fim, um homem que eu não consegui identificar apresentou a diferença entre a democracia (“quando o povo se opõe à vontade de um homem”) e a tirania (“quando um homem se opõe à vontade do povo”).  

Depois de senadores e deputados federais e estaduais falarem no carro de som, o evento foi chegando ao final. O discurso mais longo foi o penúltimo, realizado por Silas Malafaia. Depois de se referir a Moraes como “ditador de toga”, o pastor desenvolveu uma crítica jurídica em torno dos presos do 8 de janeiro, uma vez que eles não têm foro no STF, para ele o “Supremo Tribunal Político”. Os “patriotas”, ele acredita, tiveram seu direito ao “duplo grau de jurisdição” desrespeitado; nessa situação, ele apresentou a pergunta retórica que, para mim, sintetiza o encaminhamento coletivo proposto pelos organizadores frente ao diagnóstico de um fechamento “ditatorial” do regime político brasileiro: “A quem recorrer? Só ao povo e a Deus.” Só há essas duas soluções para o dilema político do campo bolsonarista: a primeira é o povo ocupar massivamente as ruas (a fim de exigir o impeachment de Moraes e de outros ministros do STF, para demandar anistia aos “presos políticos”, ou com o objetivo de salvar a democracia e a liberdade). A segunda revela um pouco o ceticismo político da principal liderança que convocou esse primeiro ato diante da encruzilhada em que a extrema direita se encontra: “Se esses caras escaparem do supremo povo e da justiça eles não vão escapar da justiça divina, que eu declaro em nome de Jesus!”

Essa bifurcação entre, de um lado, o povo fazer justiça pressionando nas ruas o sistema político e, de outro, a justiça divina, revela as grandes ausências em termos de solução política para o que esse grupo político enxerga hoje como implementação de uma “tirania” ou “ditadura absoluta”: as Forças Armadas e a reivindicação (tão recorrente no final de 2022) da “intervenção militar”. Tais palavras simplesmente não foram mencionadas durante todo o protesto, nem em cima do carro de som, nem no chão do ato em conversas, cartazes, faixas ou camisetas. Isto é sintomático do esgotamento da breve hegemonia do intervencionismo militar no campo reacionário. O 8 de janeiro não foi tanto o ápice dessa hegemonia, mas a consequência do seu ocaso: diante do fracasso da esperança messiânica por meio da qual os “patriotas” terceirizavam a salvação do país com relação à “fraude eleitoral” e ao “comunismo”, só restou a ação direta de tomar a história pelas próprias mãos e invadir as sedes dos três poderes, em uma tentativa desesperada de criar a desordem que poderia acelerar e legitimar uma intervenção militar que restaurasse a lei e a ordem.

Entre o segundo turno da eleição presidencial de 2022 e a posse de Lula em 1º de janeiro de 2023, havia no discurso e na experiência dos “patriotas” uma verdadeira fusão entre povo, Deus e Forças Armadas. Quando os bolsonaristas bradavam naquele momento “O Brasil é nosso”, o significado político (e teológico) dessa expressão não era nada superficial; dizia respeito ao encontro de duas matrizes: um cristianismo de reconquista da terra prometida e o golpismo secular das Forças Armadas. A desejada intervenção militar sempre foi interpretada também como uma intervenção divina. Quando Exército, Marinha e Aeronáutica não compareceram diante de setenta dias de orações na frente dos quartéis e de tentativas dispersas de espalhar caos e baderna, se movendo do interior do Sul, Norte e Centro-Oeste em direção à Brasília, os “patriotas” entraram em curto-circuito; para preservar o líder Bolsonaro do fracasso da empreitada, foi preciso queimar os militares como “melancias”, verdes por fora, vermelhos por dentro (vulgo “comunistas”). Com a matriz do intervencionismo militar desgastada e descartada, o tripé povo/Deus/Exército que se retroalimentava reciprocamente ficou manco e se tornou um binarismo que se enfraquece mutuamente: ou “o Povo” retorna às ruas ou só resta a justiça divina. Como ficou evidente no protesto seguinte, a primeira opção exige uma desafiadora massificação, enquanto a segunda opção é despolitizante, o que enfraquece e sabota a mobilização política dos bolsonaristas que poderia efetivar essa mesma massificação.

Navegando pelo protesto de 26 de novembro, cheguei a um ponto de estreitamento do espaço entre as pessoas, bem na frente da calçada do Parque Trianon. Uma manifestante falou nesse momento para a sua amiga “Encheu!”, enquanto a outra replicou: “Graças a Deus!” Esta falsa impressão de que a manifestação seria um sucesso quantitativo não era compartilhada de maneira nenhuma pelas lideranças que estavam em cima do carro de som. Repetidas vezes, eles reconheceram que “ainda” não eram “milhões” que ocupavam as ruas, mas tão somente “milhares”, demonstrando que a organização do ato tinha plena consciência de que não se tratava de um público massivo.

O deputado Nikolas Ferreira (PL) verbalizou com precisão a narrativa que estavam tentando emplacar: “Não menosprezem os pequenos começos.” Embora a referência paradigmática (e mesmo autobiográfica) da maioria dos oradores seja a campanha pró-impeachment de Dilma Rousseff, que de fato começou com três pequenos atos no final de 2014 e apenas se massificou em seguida (com destaque para os protestos de março de 2015 e de 2016), é significativa a apropriação da extrema direita do grito “Amanhã vai ser maior!”, que sintetizava a tática do Movimento Passe Livre em junho de 2013 de reunir cada vez mais manifestantes até que se formasse uma revolta popular que forçasse o sistema político a recuar e aceitar a sua demanda de derrubada do aumento de 20 centavos na passagem do transporte público.

De acordo com reportagens e colunas de opinião na grande imprensa e na mídia alternativa de esquerda, o protesto de 26 de novembro foi “flopado”. Meu diagnóstico é outro. Focar única e exclusivamente na quantidade de pessoas que saíram de suas casas nesse dia específico é um equívoco, pois obscurece outros elementos fundamentais. Em primeiro lugar, é preciso sempre contextualizar o tamanho do público inserindo-o em uma série histórica. Por um lado, é evidente a flutuação declinante da mobilização bolsonarista se comparada com os anos anteriores: se eram centenas de milhares no Sete de Setembro de 2021, tornaram-se em seguida dezenas de milhares (tanto no Bicentenário da Independência, também na Paulista, quanto no feriado de Finados, na frente do quartel na região do Ibirapuera, ambas as vezes em 2022) e em novembro de 2023 eram meras centenas na Proclamação da República, se tornando, por fim, milhares em 26 de novembro. Por outro lado, a manifestação no final de novembro foi a primeira vez que a extrema direita voltou a ocupar as ruas de modo significativo depois da ressaca pós-8 de janeiro. Neste sentido, é preciso encarar o protesto como um possível pontapé inicial na busca da reconstrução da legitimidade de sua ação coletiva diante da derrota eleitoral e da campanha golpista que desaguou nas depredações em Brasília bem como em sérias consequências judiciais, que a colocaram em posição defensiva diante da opinião pública.

Em segundo lugar, a dimensão quantitativa sempre anda lado a lado com uma dimensão qualitativa, algo que só pode ser apreendido por meio da observação in loco. Embora o formato de comício eleitoral tenha sido surpreendente e inédito, ele não chegou a esgotar a dinâmica emocional do protesto de novembro. A produção de um mártir “assassinado” por um ministro do STF “tirano” foi uma poderosa narrativa que energizou os manifestantes, reposicionando a identidade coletiva dos “patriotas” como vítimas antissistêmicas da perseguição de uma “ditadura”. Quando você está rodeado por mais de 10 mil pessoas chamando espontaneamente e a plenos pulmões Alexandre de Moraes de “Assassino! Assassino!”, torna-se difícil menosprezar o evento como simplesmente “flopado”, como sugeriu a imprensa, tendo em vista a consciência de que um setor da população que não é politicamente desprezível acredita que não estamos vivendo em uma democracia e que o Estado brasileiro matou um de seus cidadãos por perseguição política.

Como as próprias lideranças elegeram a dimensão quantitativa como índice de sucesso do futuro da mobilização – já que o protesto de amanhã precisa ser maior do que o de hoje – torna-se inevitável o questionamento se a promessa foi cumprida no protesto seguinte, no início de dezembro. A resposta simples e direta é: não. Levantamentos realizados pelo Monitor do Debate Político no Meio Digital com softwares que analisam fotos aéreas comprovam que o público decaiu para menos da metade de um protesto para o outro: de 13.300 pessoas em novembro a 5.600 em dezembro.

Para ser coerente com a análise anterior, não basta a quantificação para diagnosticar os rumos da mobilização. Dessa vez, a dinâmica de comício eleitoral se repetiu, mas sem a mesma intensidade emocional do protesto anterior. Em especial pela combinação de dois elementos. Em primeiro lugar, o protagonismo no carro de som deixou de ser de políticos profissionais e passou a ser de lideranças de movimentos conservadores, com carisma e retórica inferiores. Em diversos momentos, os oradores foram atropelados e silenciados por palavras de ordem e gritos espontâneos, puxados pelos manifestantes no chão do ato.

O segundo elemento foi a incapacidade do foco em pressionar o Senado para barrar a indicação de Flávio Dino ao STF e em energizar os manifestantes da mesma forma que a memória de Clezão, o que escancarou os limites de um protesto organizado em torno de um carro de som unificado, que antes estavam obscurecidos pela poderosa narrativa que opunha um “mártir” a um “assassino”. Minha hipótese aqui é que a retórica de origem olavista teve um efeito colateral de desgastar e dificultar uma mobilização que estivesse à altura do necessário para evitar a chegada de Dino à Suprema Corte – se todo o sistema político brasileiro já é “comunista” há anos e décadas, sua indicação deixa automaticamente de ser algo inédito, urgente ou particularmente relevante.

Não apenas havia mais pessoas em novembro do que em dezembro, como elas estavam com seus corpos, olhares e atenções mais centralizados no carro de som, repetindo de uma certa forma a relação totêmica com que os “patriotas” se relacionaram com os quartéis durante a sua campanha golpista de contestação do resultado eleitoral. O ato de 26 de novembro foi organizado de forma meticulosa e eficiente, como um comício ritualizado: o hino nacional abriu e fechou o evento; os oradores pré-inscritos, a maior parte políticos profissionais, tinham falas curtas e precisas; Silas Malafaia foi o penúltimo a falar; e a última etapa do protesto foi o protagonismo da família de Clezão. A viúva e suas duas filhas encarnaram o clímax emocional do evento. A mãe disse: “A gente era uma família, nós somos agora incompletos”, ao passo que uma filha pediu para que os manifestantes “não deixem a morte dele ser esquecida”. A outra filha complementou: “Meu pai deu a vida pra que tudo isto acontecesse.” Se fosse um protesto de esquerda, a palavra de ordem poderia facilmente ter sido “transformar o luto em luta”.

Tudo em 10 de dezembro estava mais frágil. Músicas podem ser importantes catalisadores de identificação coletiva e solidariedade compartilhada. Mas a insistência dos organizadores em canções que não eram de conhecimento da plateia teve o efeito contrário. O samba Dino não foi tocado insistentemente. Alguns dos versos diziam por exemplo: “Dino não/Dino não/Esse cara no Supremo/é uma esculhambação/Dino não/Dino não/Já não basta o desmando/do tal ministro Xandão.” Ninguém acompanhava a cantoria, pois a música era recém-lançada – e, portanto, desconhecida – além de ter sobreposições e modulações difíceis de acompanhar. Já a música Canção da Liberdade havia sido gravada no início de 2022 e circulou modestamente durante a campanha golpista, mas esse misto de música sertaneja e country também não ressoou muito entre os espectadores.

Talvez as coisas teriam sido diferentes se a organização tivesse optado pela versão brasileira (e golpista) de Stand Up (originalmente, canção de Cynthia Erivo para o filme Harriet, sobre a abolicionista Harriet Tubman), gravada e imortalizada pela cantora gospel Fernanda Ôliver, que se tornou musa nos acampamentos em frente aos quartéis e chegou a ser presa por incentivar os atos de 8 de janeiro. Todos ali certamente conheciam a música e poderiam cantar em uníssono. Mas isso implicaria ressuscitar a disposição insurrecionista (dizia um dos versos da canção: “Lutarei com as forças que tenho até o final”), o contrário da disposição apassivadora diante do carro de som, um ano depois da baderna em Brasília. Nem sequer o hino nacional se salvou em 10 de dezembro. Em vez da reprodução da clássica gravação oficial, convidaram uma jovem para cantar. De forma melancólica, a ressonância foi baixa, quase ninguém ressoando a letra de forma imponente e patriótica; o ato já estava esvaziado depois de quase 3 horas ininterruptas de discursos pouco empolgantes e músicas desconhecidas no carro de som, e as poucas pessoas que permaneceram até o final preferiram se dirigir para suas casas.

O engajamento afetivo dos manifestantes em dezembro foi prejudicado por vários fatores: menos pessoas presentes, narrativa menos poderosa e oradores menos carismáticos, porém bastante teimosos em fazer valer a lista de inscrição para falar no carro de som, essa tecnologia de gestão racional e burocratizante da relação entre líderes e sua base. A dinâmica do carro de som unificado que monopoliza a palavra sob a forma de discursos eletrificados e amplificados é chata e cansativa, além de exigir corpos disciplinados, como os que costumam comparecer nos atos da esquerda institucional.

Esse comício ordeiro com público e intensidade emocional declinantes contrasta com as principais características da campanha golpista do final de 2022: emoções profundas mobilizadas e potencializadas por uma impressionante criatividade tática (bloqueios em rodovias, acampamentos em quartéis, ações diretas múltiplas que borraram a fronteira entre “desobediência civil”, violência política e ao menos um atentado terrorista, na véspera do Natal) e orientadas por uma poderosa noção de guerra santa – reconquistar o Brasil das mãos dos “comunistas” dado que esta é uma segunda terra prometida por Deus a um segundo povo escolhido. Se antes a extrema direita parecia surfar no uso da internet e na inovação tática (se apropriando inclusive de alguns dos repertórios da esquerda autônoma), agora eles passaram a copiar o que a esquerda institucional faz de pior em termos de repertório maçante e desmobilizador.

No ato pela memória de Clezão, os dilemas e encruzilhadas inerentes a uma reviravolta institucionalista e ordeira da extrema direita não tinham ficado evidentes, mas em 10 de dezembro eles se tornaram gritantes. Qual poderia ser o significado da reconstrução da legitimidade do grupo político em ocupar as ruas depois das ações diretas de profanação do 8 de janeiro passar pela mimetização do repertório político mais moderado e burocratizado da esquerda institucional? A encruzilhada do campo bolsonarista se localiza na desproporção do diagnóstico (supostos presos políticos sendo assassinados por uma suposta tirania) e o prognóstico em termos de ação coletiva apresentado pelas lideranças (um comício que sequer conta com o seu líder eleitoral, pois ele se tornou inelegível). O desemaranhamento desse nó parece estar diante de três caminhos.

Se essa reorientação institucionalista for para valer, diante da ilegitimidade pública do estado de insurgência anterior, o desafio é forjar uma nova liderança que seja elegível e capaz de manejar o campo reacionário e manter unida uma frente ampla que viabilize a hegemonia da extrema direita sobre a direita e a centro-direita. Isto não é trivial, tanto porque essa era a grande habilidade retórica de Bolsonaro de falar com “autenticidade” para múltiplos públicos quanto porque a centralidade de sua família nesse campo político pode implicar o boicote a lideranças emergentes que não pertençam ao clã.

Ou talvez estejamos vendo apenas uma pausa temporária do caráter insurgente da extrema direita. Em sua dissertação de mestrado, intitulada Contestando a ordem, o cientista político Caetano Patta relata uma conversa que ele teve sobre um ato “Fora Temer” com um secundarista que havia ocupado sua escola em 2015 – alguém, portanto, que foi educado politicamente na ação direta, sob a hegemonia da esquerda autônoma. Embora impressionado com a retórica de Lula, que ele havia presenciado pela primeira vez, o jovem estava atônito com a desconexão entre os discursos no carro de som de que Dilma tinha sido alvo de um golpe e o encaminhamento inconsequente das lideranças políticas: “Mas tipo, os cara falam que é golpe… que não sei o que lá… Aí é tipo um comício, com os tiozinho falando uma pá de groselha… Tinha que parar tudo então se a parada é treta assim… se é golpe, coisa de ditadura… Não sei, fui lá e achei meio coxa…”

Qual é então o significado profundo dos bolsonaristas diagnosticarem a aliança entre STF e governo Lula 3 como uma “tirania” ou uma “ditadura absoluta”? É “uma pá de groselha” ou, se esse diagnóstico de fechamento do regime for levado a sério, isso poderia inclusive conduzi-los a alguma forma de clandestinidade e de múltiplas formas de ação direta e violência política?

Um terceiro e último caminho poderia ser o reconhecimento de que a derrota eleitoral de 2022 e a derrota política e judicial da campanha golpista dos “patriotas” foram, na realidade, uma derrota verdadeiramente histórica da extrema direita. Assim como em novembro, o ato de dezembro repetiu o binarismo de que apenas o povo ou Deus poderiam intervir no processo político. Conforme o amanhã não foi maior do que o ontem e a massificação da mobilização não se verificou, os discursos no carro de som acabaram reconhecendo que a justiça divina virou o último recurso dos bolsonaristas.

O senador Magno Malta chegou a dizer que, conforme “Nós somos a favor da vida, se fôssemos apenas dois, já bastaria”. A esta altura do campeonato, dispensar tão radicalmente assim a massificação da mobilização é um reconhecimento de fracasso. Outro orador, aparentemente um pastor, clamou em seguida por misericórdia e que Deus interviesse na sabatina de Flávio Dino no Senado, que ocorreria três dias depois: “Que o Senhor coloque a mão nos senadores indecisos, esprema o coração deles para rejeitar esta indicação nefasta. Isto não vai acontecer se o Senhor não quiser.” Terceirizar para Deus o veto a Dino foi uma manobra retórica arriscada, uma vez que a partir do momento em que o cenário político mais provável se comprovasse, como seria possível conciliar a onipotência divina com a realidade efetiva? Arrisca-se o teísmo ou então o reconhecimento de que Deus não seria tão anticomunista como se desejava. Com a matriz cristã desassociada seja da ocupação massiva das ruas, seja do intervencionismo militar, restaria apenas aceitar o curso da história como desejo divino. Esse quietismo religioso é excessivamente apassivador, não inspira e até mesmo dificulta a organização da ação política, podendo então ser expressão simbólica do reconhecimento da própria extrema direita de uma derrota material histórica – ou, no mínimo, da sua incapacidade de se adaptar e se reinventar diante de um novo cenário político, o que já seria por si só uma reviravolta histórica, em contraste com sua habilidade, flexibilidade e inventividade nos últimos anos.

Jonas Medeiros

é cientista social e diretor de pesquisa do Center for Critical Imagination (CCI/Cebrap)

Novo ensino médio em SP: o censo crítico tolhido

Primeiro estado a adotar a reforma curricular reduz drasticamente as aulas de Artes, Filosofia e Sociologia. Nega a formação crítica. Prejudicará alunos no vestibular e Enem. Ideário neoliberal infiltrou-se na Educação. Como barrá-lo? (leia outras matérias ao final da postagem)

Douglas Oliveira, Outras Palavras

Ato primeiro do governo empossado após a reviravolta política que marcou o fim da Nova República e o recente desmonte da nossa rede de proteção social, a Reforma do Ensino Médio, promovida por Michel Temer via Medida Provisória, veio cercada de incógnitas. Desde o início, sabia-se que seu objetivo era conformar o ensino básico às regras do mercado e aos ditames do Capital. De todo modo, até sua implementação, que começou em 2020, pouco era possível afirmar antes das adequações curriculares que as redes de ensino fariam dali em diante.

Pioneira na implantação do novo modelo, a Seduc de São Paulo publicou, no último dia 17 de novembro, as matrizes curriculares dos ensinos Médio e Fundamental II que vigorarão no ano de 2024. No que toca ao Ensino Médio, surpreendendo a todos, o texto promove uma redução drástica no oferecimento das aulas de Artes, Filosofia e Sociologia ao longo dos três anos de curso. No caso da última, a situação é a ainda mais crítica, uma vez que o conteúdo de formação geral fica reduzido a apenas duas aulas semanais no 2º Ano e, diferente das demais, ela não é sequer contemplada como itinerário formativo de aprofundamento.

Um currículo firma projetos ideológicos e este que foi apresentado vem sem caráter oculto e sem disfarces. Ele é completamente identificado com o ideário neoliberal que defende ser a escola um mero mecanismo que antecede a profissionalização. O novo currículo abre mão da formação para a cidadania e fica restrito apenas à formação para o mundo do trabalho, num claro desrespeito à LDB.

A operação visa retirar da grade de ensino matérias que estimulam o senso crítico dos estudantes, colocando em seus lugares Educação Financeira (duas aulas semanais por turma), Liderança (duas aulas no 2º e duas no 3ºAno), além de manter o Projeto de Vida (uma aula por turma). Em conjunto, tais conteúdo institucionalizam saberes tidos pelo mercado como capital humano e oficializam a lógica neoliberal no ensino público da maior das redes estaduais de ensino básico do Brasil.

Mudanças curriculares desta ordem são próprias de momentos históricos e regimes políticos onde a alienação, a apatia e o pensamento único se tornam objetivos governamentais. A última vez que a educação brasileira passou por tal cerceamento do pensamento crítico no âmbito escolar foi durante a ditadura civil-militar, quando Sociologia e Filosofia foram retiradas da grade escolar em favor da Educação Moral e Cívica. Como a “ditadura” hoje é do capital financeiro, não fica difícil entender a razão da troca das referidas disciplinas por outras ideologicamente identificadas o neoliberalismo.

Ao tratar como obsoletos saberes historicamente acumulados e consolidados, o governo de Tarcísio de Freitas (Republicanos) nega aos estudantes da rede estadual uma parcela significativa dos conhecimentos necessários para entender melhor as configurações sociais do país, além de prejudicar sensivelmente aqueles que pretendem prestar vestibulares e o Enem. O abismo entre escola pública e privada também tende a crescer, uma vez que as redes particulares continuam contemplando tais disciplinas em suas grades curriculares. Isso tudo para não falar dos docentes das matérias retiradas que dificilmente completarão suas cargas em uma única escola, o que precariza e desgasta ainda mais o dia a dia da categoria.

A lógica utilitarista é incorporada completamente ao currículo, ao passo que cada estudante se vê tolhido em seu direito de aprimorar sua atitude crítica, a imaginação sociológica e o senso estético. Medidas desta ordem revelam o quão falacioso é o discurso dos movimentos que afirmam existir alguma espécie de doutrinação ideológica de esquerda na educação básica do país. Que a mudança seja promovida por aqueles que há pouco repetiam tal cantilena não chega a surpreender, pois os bolsonarismo já provou que não cora ao sequestrar em seu benefício nossas instituições republicanas.

Embora impacte decisivamente nas vidas dos docentes e na formação dos jovens, a medida ainda carece de uma análise mais aprofundada e crítica na grande mídia. Por ora, apenas algumas associações de professores de Filosofia e Sociologia se manifestaram publicamente. Intervindo no currículo e não no cotidiano escolar, tal como a tentativa de reorganização escolar de 2015, a Seduc claramente se antecipa a uma reação estudantil, uma vez que anunciou a mudança às vésperas das férias escolares.

As previsões mais sombrias a respeito do Novo Ensino Médio, ainda em 2017, já alertavam para a possibilidade de aparelhamento das instituições escolares e educacionais por governantes integralmente identificados com os princípios neoliberais. A negativa do governo federal em revogar a Reforma do Ensino Médio, apesar da ampla mobilização de estudantes, pesquisadores e professores, corrobora com este tipo de medida discricionária, unilateral e antipedagógica. As consequências logo serão sentidas por todos e a Seduc paulista deixa cada vez mais clara que tipo de subjetividade quer desenvolver em nossos jovens.

O cenário que se forma em São Paulo, e que deve servir de referência para as demais redes estaduais, é caracterizado pela incompetência técnica e condução ideológica da pasta da Educação. A parceria entre o governador Tarcísio e o secretário Renato Feder tem sido marcada por experimentalismos, confusões e medidas autoritárias. Num claro movimento de ataque, realizado no apagar das luzes do ano letivo, a Seduc promove uma sabotagem pedagógica que tem absolutamente tudo para ser questionada ao longo de 2024. Acompanhemos com bastante atenção, pois os estudantes logo perceberão o tipo de ensino que Fundações, empresários e governantes alinhados a tais grupos lhes reservam neste período de evidente hegemonia de direita no Brasil.

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# Entenda as mudanças (Folha) #  Daniel Cara  pede a suspensão da votação (X)


Como as igrejas se livraram de pagar R$ 1 bilhão de impostos

Juliana Sayuri e Luiz Fernando Toledo (TAB, Uol) - expandir

Uma lei aprovada pelo Congresso durante a pandemia livrou as igrejas da cobrança de até R$ 1,2 bilhão em tributos.

Os dados inéditos da Receita Federal foram obtidos pelo UOL via Lei de Acesso à Informação.

Trata-se de tributos como contribuição previdenciária e contribuição social sobre o lucro, que deixaram de ser cobrados das igrejas após uma mudança na Lei 14.057.

O articulador do ajuste foi o deputado federal David Soares (ex-DEM, atual União Brasil), filho do pastor R.R. Soares, líder da Igreja Internacional da Graça de Deus.

A lei tem impacto retroativo e, no médio prazo, pode levar à anistia de dívidas antigas — entre elas, cifras milionárias como a da Graça de Deus.

Ela é uma das cinco maiores organizações religiosas devedoras de impostos à União. Hoje, a dívida ativa da igreja é de R$ 89 milhões.

Devido ao sigilo fiscal, a Receita revelou apenas os valores totais e os tipos de impostos que foram "anistiados", mas não os CNPJs diretamente beneficiados com a lei.

David e R.R. Soares foram procurados pelo UOL por telefone e por email em diversas ocasiões, mas não retornaram os pedidos de entrevista.

A Constituição já isenta organizações religiosas do pagamento de impostos como IPTU e IPVA, mas outros tributos, como contribuição previdenciária e contribuição social sobre o lucro, não entravam nessa lista.

Isso começou a mudar em junho de 2020, quando David Soares propôs uma emenda ao projeto de lei do deputado federal Marcelo Ramos (à época no PL-AM) que ofereceria descontos ou negociações de dívidas a diversos setores durante a pandemia da covid-19.

O filho de R.R. Soares propôs incluir as igrejas nessa lista de beneficiados. Como se diz no jargão legislativo, foi um "jabuti": a inserção de uma emenda sem relação com o PL original.

À época, David Soares argumentou que as autuações do Fisco tendem a inviabilizar "relevantes serviços" prestados pelas instituições. Segundo ele, a mudança permitiria "reduzir a judicialização e até mesmo o gasto equivocado de horas de trabalho do Fisco com entidades religiosas", escreveu na emenda.

Em setembro de 2020, o presidente Jair Bolsonaro sancionou a lei, mas vetou a emenda proposta por David Soares. Se não o fizesse, poderia ser acusado de crime de responsabilidade fiscal e até sofrer abertura de processo de impeachment.

"O presidente Jair Bolsonaro se mostra favorável a não tributação de templos de qualquer religião", informou o governo federal à época. "Porém, a proposta do projeto de lei apresentava obstáculo jurídico incontornável, podendo a eventual sanção implicarem [sic] crime de responsabilidade."

No Twitter, no entanto, Bolsonaro deixou claro que estava vetando a emenda a contragosto e que, caso fosse deputado ou senador, votaria pela derrubada do próprio veto presidencial.

Em março de 2021, 439 deputados federais e 73 senadores derrubaram o veto de Bolsonaro e votaram "sim" para o ajuste na lei.

Dados obtidos pelo UOL indicam que, em dezembro de 2020, a Receita Federal já havia suspendido a cobrança de R$ 538 milhões em impostos de organizações religiosas.

Doze meses depois, com a nova lei em vigor, a suspensão saltou para R$ 924 milhões. Em abril deste ano, chegou a R$ 1,2 bilhão.

Inicialmente, a reportagem pediu dados de cobranças canceladas de 2012 a 2022, mas o órgão só respondeu com informações de 2020 a 2023. Num segundo pedido de LAI, apenas sobre 2018 e 2019, a Receita informou que não há dados disponíveis.

Do valor anistiado até 2023, 34% correspondiam a pagamento de contribuições previdenciárias e 12% de CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido).

Quem deve à Receita Federal e não paga vai parar na lista de devedores da PGFN (Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional), que cobra os inadimplentes.

A PGFN diz não conseguir identificar quais igrejas foram beneficiadas pela nova lei.

Entretanto, via LAI, o órgão encaminhou à reportagem uma planilha que indica que o valor suspenso mais que dobrou.

Foi de R$ 23 milhões, entre 2012 e 2020, para R$ 47 milhões entre 2021 e 2022.

Há mais de 30 mil CNPJs cadastrados como organizações religiosas. Entre eles, aproximadamente 10 mil têm dívida ativa com a União.

Cerca de 70% das dívidas ativas estão concentradas em cinco CNPJs: duas igrejas "fantasmas" (o Instituto Geral Evangélico, do Rio, e a Ação e Distribuição, de São Paulo) e três igrejas famosas — além da Internacional da Graça de Deus, de R.R. Soares, estão a Igreja Mundial do Poder de Deus, do pastor Valdemiro Santiago, e a Convenção das Igrejas Evangélicas Assembleias de Deus no sul do país.

O advogado José Maurício Conti, professor de direito financeiro na USP, entende que a lei que isenta igrejas do pagamento desses impostos é ilegal.

"Ela foi aprovada [pelo Congresso] sem preencher os requisitos de responsabilidade fiscal."

O auditor Flávio Prado, diretor do Sindifisco (Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal) de Santos, pondera que "a maioria [das igrejas] é séria e paga tributos direitinho", mas há abusos quando se trata de isenção.

"Se você, igreja, pagar para a subsistência de um sacerdote, padre ou pastor, você não precisa pagar contribuição previdenciária. Mas é subsistência, não salário. Se você paga um valor para o sacerdote A, você não pode pagar 20 vezes o valor para o sacerdote B sem uma justificativa. Para a Receita, isso configura abuso", completa.

Foi o que aconteceu, por exemplo, com a Internacional da Graça de Deus. Em 2009, a igreja de R.R. Soares foi autuada por variação de até 2.000% na "prebenda pastoral", dinheiro que o religioso recebe para seu sustento.

O UOL apurou que a média para um pastor no Brasil é de R$ 3.000 hoje. Considerada a variação de 2.000%, a "prebenda pastoral" na igreja de R.R. Soares seria de até R$ 63 mil.

O processo se arrastou até 2016, quando o Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais) julgou que, dada a diferença de valores que nunca foi explicada ao Fisco, a Internacional da Graça de Deus precisaria pagar a contribuição, sim.

Com a nova lei, ela e outras igrejas ficaram isentas de cobranças desse tipo.

Se, no curto prazo, a Lei 14.507 já pode ter neutralizado a cobrança de mais de R$ 1 bilhão em impostos, no médio prazo ela pode afetar a cobrança de dívidas antigas.

Isso porque ela tem efeito retroativo e pode atingir cobranças pré-2020.

No longo prazo, a nova lei pode levar, inclusive, igrejas a reivindicar a restituição de tributos pagos no passado.

Em outras palavras, abre-se uma brecha para que elas peçam reembolso. "Vai ter muita discussão judicial sobre isso", afirma o advogado Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy, que foi procurador-geral adjunto da PGFN e consultor-geral da União.

Fontes da Receita Federal concordam com o diagnóstico.

Essa não foi a última vez em que as igrejas tentaram se livrar de impostos.

Em março de 2023, o deputado federal Marcelo Crivella (Republicanos-RJ), bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus, propôs uma PEC que pretende blindar templos de qualquer imposto sobre aquisição de bens e prestação de serviços.

No fim de setembro, a proposta passou pela CCJ e, agora, deve ser analisada por uma comissão especial. Entre os coautores está David Soares, o mesmo da emenda que garantiu uma anistia bilionária às igrejas


# leia aqui a versão original da matéria do TAB/UOL

férias

Não mais delirar, nem sentir no corpo esse seguir sem descanso (Fernanda Young)

pensatas para o fim do domingo 17-12-23

# A mão amiga de

Lula

O ano acabou com os militares impunes e prestigiados

Lucas Pedretti (piauí)

# As agruras de

Lula no

presidencialismo mitigado

O presidente (...) pode reverter o quadro pernicioso, se falar ao País.

Roberto Amaral (Carta

Capital)

o que há de novo? 14-12-23

Milei joga a Argentina no inferno neoliberal... e os banqueiros aplaudem

FMI dá apoio instantâneo a programa econômico do ultradireitista argentino – que devasta serviços públicos e penaliza os mais pobres. Atitude sinaliza opção política do 0,1% e serve de aviso aos que, no governo Lula, cortejam a Faria Lima (clique aqui para expandir a postagem)

Os banqueiros preferem a moto-serra
Gláuco Faria, Outras Palavras

Depois de mais de duas horas de atraso no anúncio oficial programado para as 17h desta terça-feira (12), o ministro da Economia do governo de Javier Milei, Luis Caputo, anunciou à noite, via transmissão por streaming, as primeiras medidas econômicas da atual gestão na Argentina. Embora tenha sido o chamado “pacote”, tão comum em países da região nos anos 1980/1990, as linhas gerais podem ser resumidas em duas: maxidesvalorização do peso e cortes em investimentos/despesas do poder público.

Diversas razões para o atraso do anúncio (gravado) de Caputo foram aventadas e uma delas dizia respeito ao ajuste do discurso para justificar politicamente as medidas tomadas. Afinal, como disse o próprio ministro, a situação geral vai piorar nos próximos meses e o próprio Milei já havia falado em um período de estagflação (combinação de quadro recessivo com inflação). Assim, era necessário dizer que a herança do governo anterior era pesada demais e que o momento exigia medidas drásticas para evitar o pior em termos inflacionários.

Não faltou desenhar um futuro sombrio em que haveria uma “inflação plantada de 15.000%”, algo que Milei já havia mencionado no seu discurso de posse. A inflação anual argentina está em torno de 150% e, apesar do cenário grave, nada indica um quadro hiperinflacionário como o vivido em parte dos anos 1980, por exemplo. A argumentação é essencialmente política e nada técnica.

“O problema é que as medidas tomadas não apontam para baixar a inflação, mas sim subir. Então, ele (Milei) não quer que se compare com os 150% de inflação, mas com 15.000% que ele diz que há, ou que poderá haver, ou que poderia ter havido”, aponta o economista Alejandro Bercovich. “Dizem que um litro de leite que vale US$ 1.000 pode chegar a US$ 60.000, então quando chegar a US$ 10.000 você se sente com sorte. Eles estão tomando você por um tolo”, resumiu uma postagem que viralizou nas redes sociais.

Para Caputo, toda culpa da crise argentina é do déficit fiscal, o que obrigaria, segundo ele, a cortes, incluindo a modificação do mecanismo de reajustes de aposentados e pensionistas e eliminação de subsídios em transportes e serviços de energia, o que vai provocar aumento de tarifas. Não faltou também na fala do ministro a surrada e pra lá de equivocada comparação entre o orçamento do Estado e o orçamento doméstico, ignorando-se que o corte de despesas de uma família não induz queda da própria receita, por exemplo.

O homem forte de Milei na economia também falou a respeito do problema do país seguir se endividando, ignorando que ele, no mesmo cargo na gestão Macri, foi o responsável por contrair um empréstimo US$ 57 bilhões, em valores de 2018, junto ao Fundo Monetário Internacional (FMI), aporte necessário após o fracasso das políticas de austeridade fiscal tomadas pelo governo. Acreditava-se (como sempre reza a cartilha neoliberal), que um ajuste nas contas públicas atrairia investimentos internacionais para o país, o que não aconteceu. A pobreza aumentou e um fardo enorme foi deixado para o governo seguinte, de Alberto Fernández, que tampouco soube lidar com a situação.

“Conclusão da mensagem de Caputo: Se você é de classe média, você vai ser pobre e se você é pobre, você vai ficar desamparado. Se você for rico, será muito mais rico”, resumiu o jornalista e economista Ezequiel Orlando em sua conta no Twitter.

Aplausos do FMI

A diretora do FMI, Kristalina Georgieva, felicitou o governo argentino pelas medidas tomadas que, de acordo com ela, são “um passo importante para restaurar a estabilidade e reconstruir o potencial econômico do país”. Caputo e o entorno de sua equipe, na verdade, são parceiros de longa data da instituição e já receberam elogios antes.

Em março de 2018, por exemplo, a então diretora-gerente do FMI, Christine Lagarde, teceu loas à política econômica de Caputo/Macri. “Os dois primeiros anos do governo Macri foram impressionantes e coincidem com a determinação da Argentina de restaurar sua situação e conseguir que o país volte ao círculo internacional dos países e têm feito isso com sucesso”, disse ela ao jornal La Nación.

A fala de Lagarde foi feita apenas dois meses antes de a Argentina voltar a negociar com a instituição, fechando aquele que seria o maior empréstimo da história do Fundo. E também pouco mais de um ano após o então ministro da Fazenda macrista, Nicolás Dujovne, ter prometido que o país não voltaria a recorrer aos empréstimos do FMI.

O Fundo não costuma acertar nem nos diagnósticos, nem nos prognósticos. “Financiadores domésticos e estrangeiros tiveram tempo para tirar seu dinheiro do país, deixando os contribuintes argentinos segurando o saco. Mais uma vez, o país estava fortemente endividado sem nada para mostrar. E, mais uma vez, o ‘programa’ do FMI falhou, mergulhando a economia em uma profunda recessão, e um novo governo foi eleito”, explicou o prêmio Nobel de Economia Joseph E. Stiglitz.

Choques

No seu livro A Doutrina do Choque, Naomi Klein fala sobre os “choque econômicos” promovidos e/ou financiados/apoiados por instituições como o Banco Mundial e o FMI para implementar medidas neoliberais radicais. É preciso superdimensionar ou gerar uma crise para vender soluções típicas do livre mercado como única alternativa possível.

Ela destaca que um economista sênior do Fundo que redigiu programas da instituição de ajuste estrutural para a América Latina e África, Davison Budhoo, admitiu que “tudo que fizemos a partir de 1983 foi baseado em nossa missão de levar a ‘privatização’ ao Sul ou morrer; ao final, e de modo vergonhoso, entre 1983 e 1988, tínhamos provocado confusão econômica na América Latina e na África”.

À época, e seria assim também em parte da década de 1990, as instituições financeiras ofereciam pacotes de ajuda emergencial para países em crise, tendo como contrapartida a adoção de medidas de livre comércio e o receituário de privatizações. Como destaca Klein, um cenário de extorsão: quer salvar seu país? Venda-o. O governo de Carlos Menem seguiu à risca a lição, com o ministro da Economia Domingo Cavallo formando uma equipe com os chamados Chicago Boys.

O governo criou a Lei da Convertibilidade e implantou uma nova moeda, o peso, com seu valor atrelado ao dólar. Em um primeiro momento, conseguiu derrubar a hiperinflação, como muitos outros países da região também o fariam nesse período. Mas a dependência de uma moeda estrangeira, aliada ao elevado endividamento externo, acabariam gerando outra crise mais adiante, no fim dos anos 1990.

O importante para muitos setores econômico-financeiros nacionais e internacionais no governo Menen foi o fato de a equipe de Cavallo ter conseguido colocar em prática um radical plano de privatizações. O próprio ministro admitiria que só obteve êxito por aproveitar um cenário de crise. “(…) o único modo de implementar todas essas mudanças, na época, foi tirando vantagem da situação criada pela hiperinflação, uma vez que a população se encontrava pronta para aceitar as medidas drásticas que estavam sendo tomadas para eliminar o perigo e voltar à normalidade.”

Ao empurrar a conta dos ajustes para os mais pobres e a classe média, pregando a redução do Estado, Milei repete a receita, e a retórica servirá para dar dimensões ainda maiores para uma crise que é grave, mas que não justificaria medidas que não só prejudicam ainda mais uma parte da população já castigada, como também não possuem efeito prático, a não ser o favorecimento de alguns que até pouco tempo o atual presidente definia como “casta”.

É muito provável que setores da população argentina não aceitem, como na época de Menem, arcar com uma estagflação provocada sem sair às ruas e Milei já prometeu repressão. A Argentina vai viver um contexto no qual o ideário salvacionista é o mesmo do auge do neoliberalismo, mas com cores ainda mais fortes, embalado no diversionismo da chamada pós-verdade difundida nas redes sociais.   

Glauco Faria

Glauco Faria é jornalista, ex-editor-executivo de Brasil de Fato e Revista

Fórum, ex-âncora na Rádio Brasil Atual/TVT e ex-editor na Rede Brasil Atual.

Co-autor do livro Bernie Sanders: A Revolução Política Além do Voto (Editora

Letramento). Leia outros artigos no Substack (https://glaucofaria.substack.com/)


Quanto maior a selvageria em Gaza, mais frágil será a posição de Tel Aviv. Como no Vietnã, o 7/10 mostrou que a ocupação é insustentável, fez da Palestina símbolo da luta decolonial

T. Karon e D. Levy (Outras Palavras)

Mulheres negras são apenas 0,4% do corpo docente nas pós-graduações. Mas, em parte da esquerda, o ensino acadêmico é visto como inimigo social.

Fabiana Moraes (Intercept)

Uma sociedade livre de trabalho não estaria necessariamente condenada a não fazer nada. Ela definiria o que é realmente necessário para uma “boa vida” 

Anselm Jappe (A Terra é redonda)

memória

como deixamos que isso tudo acontecesse?

Rodrigo Patto Sá Motta 

(Revista Brasileira de História)

Joelma Franklin (Politize!)

vestígios do dia

12-13 12 23

A trupe de cafonas fascistas brasileiros na Argentina (leia aqui a matéria de Danilo Thomaz, da piauí)

A vergonhosa passagem da extrema direita brasileira por Buenos Aires

Leia ainda: Como Milei capturou a fúria antissistema (Pablo Stefanoni, Outras Palavras)

# A Era da Distopia

Estamos mergulhados no sistema (do) despotismo da mercadoria

Samuel Kilsztajn (A Terra é redonda)

Venda da Sabesp pune o interesse público

# Tarcísio admite que tarifa vai subir mesmo com a privatização

Crianças já são quase metade dos 17 mil mortos em Gaza

Jamil Chade, IHU

* Numa reunião de emergência convocada na OMS neste domingo, e apoiada pelo Brasil, a agência internacional aponta que quase metade de todas as mortes em Gaza é composta por crianças.

# leia aqui a íntegra da reportagem

Clipping de matérias sobre o genocídio em Gaza:
* As bombas israelenses pulverizam o sistema educacional de Gaza e o futuro de uma sociedade onde não havia analfabetismo

11 12 23

o que há de novo?

Milei toma posse

Dejetos políticos da extrema direita transformam Buenos Aires na capital do obscurantismo fascista

# Leia o clipping com seleção de matérias sobre o cenário que ameaça a democracia na Argentina e a estabilidade política da A.L.

Está chegando a hora

Recuperado o vídeo considerado pela PGR  como indispensável para a denúncia de "incitação ao  crime" que é feita contra o ex-presidente.

 
# leia a matéria do Intercept e assista ao vídeo

No país que o próprio hino nacional descreve como a "terra dos livres",  o candidato disse que, se for eleito, não será um ditador, exceto no primeiro dia do seu mandato

Ricardo A. Pereira (Folha)

Vozes contra o genocídio

Munir Naser e Markus Sokol, 

A Terra é redonda


Do rio Jordão ao mar Mediterrâneo – um único Estado democrático

Há dois meses é o horror em Gaza. Israel rompeu a “pausa” de sete dias, mas com honrosas exceções, a maioria dos editorialistas repete a narrativa sionista que justifica o bombardeio de civis. Há mais de 15 mil mortos, 6 mil crianças. Para nós, que aqui assinamos, de origem palestina, um, e de origem judaica, o outro, as crianças estraçalhadas na Faixa de Gaza são iguais às crianças estraçalhadas no gueto de Varsóvia (continue a leitura)

A resistência palestina está de pé. Sucedem-se atos pelo cessar-fogo, dos judeus de Nova York aos muçulmanos de Kerala (Índia), com várias crenças e sem crença. Milhões nas capitais do mundo.

Há manifestos de intelectuais e artistas, entidades médicas e de direitos humanos. No último dia 29, 50 atos expressaram a solidariedade ao povo palestino no Brasil. No dia 30, os sindicatos de portuários europeus fizeram ações de protesto, o porto de Marselha parou por uma hora. E dia 1º de dezembro nos EUA, o poderoso sindicato UAW pediu o cessar-fogo.

Agencias da ONU já se posicionaram, mas como instituição a ONU nada fez de prático. Não obstante, ela define o genocídio como “a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso enquanto tal”. É o que repete Benjamin Netanyahu, armado por Joe Biden, inclusive na limpeza étnica na Cisjordânia.

Nós, que assinamos, perguntamos: como é possível o bombardeio de civis por dois meses? Para nós, isso é uma expressão, há outras – fome e miséria, desemprego, meio ambiente – de uma ordem internacional esgotada, que ameaça arrastar a humanidade para o caos das guerras, o abismo.

Rosa Luxemburgo, revolucionária de ascendência judaica assassinada na Alemanha em 1919, formulou o agudo dilema “socialismo ou barbárie”. Nada mais atual. Se a revolução está atrasada, traços da barbárie protuberam.

É um extermínio bárbaro, o que estamos vendo em Gaza. Ele vem de longe. A partilha da Palestina histórica começou em 1917. Lorde Balfour, ministro de Sua Majestade britânica, o ocupante militar, enviou uma carta ao banqueiro Rothschild prometendo-lhe um “lar nacional judaico”, bandeira do então minoritário sionismo.

A partilha final, na ONU em 1947, foi bancada por Harry Truman, dos EUA, e Joseph Stalin, da antiga URSS, interessados no enclave sionista para manipular os árabes e suas riquezas petrolíferas. Mas a maioria dos milhões de judeus traumatizados que saíram do leste da Europa no pós-guerra, não foram para Israel, foram para EUA, Canadá, Austrália, Europa Ocidental e América Latina.

Israel não respeitou as fronteiras da fundação, nem os “acordos de paz”. É um Estado em guerra permanente – com as detestáveis mortes de civis em todos os lados – para ampliar fronteiras “seguras”, frente à inaceitável expropriação e expulsão de 750 mil palestinos na Nakba. O Estado-apartheid de Israel nega aos palestinos o direito ao retorno, e aos do interior, os direitos civis.

Hoje, está claro que faliu a solução dos “dois Estados” – Israel e a chamada Autoridade Nacional Palestina.

Não é razoável que o governo do presidente Lula mantenha relações “normais” com um Estado-apartheid genocida. É hora de escalar o bloqueio dos contratos militares, de convênios culturais e de relações comerciais, até a ruptura das relações diplomáticas.

Nós, que aqui assinamos, começamos jovens a combater o sionismo em diferentes situações, todavia, juntos propomos esta reflexão à opinião pública. É preciso garantir direitos iguais aos dois povos que conviveram e, por trabalhoso que seja, podem voltar a conviver fraternalmente, sem racismo nem opressão, na forma soberana que decidam.

Nós nos associamos às todas as vozes contra o genocídio, em particular, ao One Democratic State Campaing, de palestinos e judeus como Haidar Eid, professor de literatura em Gaza, e Ilan Pappé, historiador israelense. Estamos juntos por ajuda humanitária, fim da colonização, liberdade para os palestinos, por um único estado democrático.

*Munir Naser é membro da Juventude Sanaúd.

*Markus Sokol é membro do Diretório Nacional do PT.

Publicado originalmente no jornal Folha de São Paulo.


Eu tenho lado nesta guerra (Jamil Chade, Uol)

Indulto a quem comete crimes contra a Humanidade é uma afronta à democracia

Sylvia Colombo, Folha

Vice de Milei, negacionista da ditadura, tenta abrandar penas de repressores condenados mas volta a mirar civis


Usted dijo perpetua" (você disse perpétua). É assim que, em "O Segredo dos Seus Olhos", o personagem Ricardo Morales (Pablo Rago) justifica a Benjamin Espósito (Ricardo Darín), o fato de ter feito justiça por conta própria e de ter mantido em cativeiro, por décadas, o assassino de sua esposa, que depois de ser preso e condenado, foi simplesmente liberado por ser membro da Triple AAA (o esquadrão da morte peronista).

O cinema não funciona como a Justiça. Mas sempre me lembro dessa passagem do vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro em 2010 quando ouço vozes a pedir anistias, prisões domiciliares por idade ou doença, ou simplesmente a liberdade pura e simples para os que cometeram crimes hediondos, contra a humanidade, como os que Morales, ainda como oficial menor, realizava. Durante os anos 1970, além de suas tarefas, por diversão, também estuprava também moças inocentes.

Alberto Fujimori com seus filhos, ao sair da prisão em Lima - Mariana Bazo - 6.dez.23/Xinhua

Na última semana voltou-se a discutir a saída ou não da prisão do provecto ex-ditador peruano Alberto Fujimori, 85. É certo que sua condenação jamais disse "perpétua", mas sobre ele pesam penas como as de 25 anos por abusos de direitos humanos (massacres de La Cantuta e Barrios Altos, além de sequestros), mais seis anos por corrupção e, o que é pior, as centenas de milhares de denúncias sobre as quais jamais respondeu e que continuam em aberto na Justiça peruana.

Vem à minha memória, numa tórrida tarde de Piura, a conversa que tive com Victoria Vigo. Em abril de 1996, durante a gestação de seu terceiro filho, ela foi a uma clínica e ouviu as seguintes palavras: "Seu filho morreu e você foi esterilizada".

"Não tinham pedido permissão nem sequer a meu companheiro para o procedimento", contou, em seu espanhol precário —seu idioma do dia a dia era o quéchua.

Ela e outras 250 mil mulheres pedem ainda hoje o julgamento por essas esterilizações forçadas impostas pelo regime de Fujimori numa política de "planificação familiar" para "combater a pobreza". O caso dessas mulheres é um processo pendente contra o ex-ditador. Alegações de má saúde o mantiveram longe de ter que responder às evidências que a Justiça peruana já tem amontoadas. Por enquanto.

Não por acaso isso me vem à tona agora, em Buenos Aires, às vésperas da chegada de Javier Milei à Presidência.

Sua vice, Victoria Villarruel, é uma negacionista da violência do Estado e prefere acreditar que, se não fossem os militares, os montoneros tomariam o poder. A tese é comprovadamente falsa, pois nem Montoneros nem o Exército Revolucionário do Povo (ERP) ocuparam território ou cometeram atentados que abalassem o poder.

Na ESMA, centro de torturas da ditadura argentina, morreram apenas dois guerrilheiros, em fuga. Ali dentro, milhares foram torturados, mulheres pariram no cárcere para verem seus filhos entregues aos militares antes de serem assassinadas.

Villarruel pede indultos e prisões domiciliares a repressores idosos, quer indultar a todos e julgar crimes de civis que já prescreveram há décadas. A vice de Milei, que é advogada e deveria saber isso de cor, está ciente de que um crime cometido pelo Estado não prescreve, mas segue ocorrendo todos os dias. Crimes de um civil têm prazo de validade.

Quem assistiu a "Argentina, 1985" viu apenas os julgamentos dos generais, mas essa não é toda a história. Os juízes promoveram, no tempo jurídico em que isso era o correto, julgamentos de guerrilheiros, e houve muitas prisões.

Villarruel, agora vice-presidente da República, está prestes a armar uma guerra contra o que de mais valioso a Argentina construiu em seus 40 anos de democracia. Em resposta a esses projetos de liberar repressores, deveriam valer as palavras do personagem de Rago: "Vocês disseram perpétua".

pensatas do fim de semana

Ao indicar Flávio Dino, Lula coloca um quadro político gigante no STF – alguém que acumula saber formal, experiência, coragem, pragmatismo e lealdade ideológica 

Julian Rodrigues, A Terra é redonda


A sentença do juiz Fabio Nunes de Martino também absolveu 3 outros réus que eram acusados de receber 2,5 milhões em propina das construtoras Engevix e UTC


Veja

A ditadura militar e o nazifascismo são os temas mais contestados em escolas pelos revisionistas ideológicos ou negacionistas.

DCM

o que há de novo?

Datafolha:  resultados estatísticos viram discurso e jornalismo contorcionista transforma percentuais de pesquisa em fábula ideológica

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A Folha de S. Paulo divulga hoje resultados de pesquisa de opinião feita para avaliar o que pensam os entrevistados sobre o primeiro ano do governo Lula. O jornal digere mal o alto percentual de eleitores (se os números podem representar o seu universo) que mantém o índice de 38% de aprovação de Lula na presidência da República. Levando em conta o quadro desastroso em todos setores no qual Bolsonaro deixou o país e a sistemática campanha da "grande" imprensa contra o presidente, o percentual de 38% é mesmo surpreendente, ainda mais se comparado com os níveis de credibilidade de que Lula goza em outros segmentos atingidos pela pesquisa.


O jornal, no entanto, comete um desatino maior com os números do Datafolha ao afirmar que 40% dos entrevistados "nunca" confiam nas declarações de Lula. Esse número permite deduzir que 60% "confiam" nas declarações do presidente. Essa obviedade matemática, no entanto, o jornal deixa de lado ao lançar uma variável que joga fora a seriedade do levantamento: "24% afirmam sempre confiar" naquilo que o presidente diz. Essa ginástica do jornalismo da Folha, para transformar em manchete o fato numericamente menos relevante, introduz um princípio narrativo que destrói a credibilidade, não na pesquisa propriamente, mas na leitura que fazem dela os editores do veículo. A íntegra da matéria  está aqui e disponível abaixo


Datafolha: 40%  nunca confiam nas falas de Lula...

Igor Gielow


Nova pesquisa do Datafolha mostra que 40% dos brasileiros nunca confiam no que diz o presidente Lula (PT), enquanto 35% dizem que o fazem às vezes. Já confiam sempre no petista 24% dos 2.004 entrevistados.

Eles foram ouvidos pelo instituto em 135 cidades do Brasil na terça-feira (5). A margem de erro do levantamento é de dois pontos percentuais para mais ou para menos.

A avaliação sobre a confiabilidade de Lula, conhecido por falar longamente e muitas vezes de forma improvisada, seguiu estável em relação à pesquisa anterior, feita em setembro e que também questionou a percepção dos eleitores. Nela, o Datafolha apurou que 23% sempre confiavam no que diz o petista, 34%, às vezes, e 42%, nunca.

O maior índice de confiança nas declarações de Lula é aferido entre os menos instruídos, 38%. Já desconfiam mais do presidente os moradores da região Sul: 48%.

No último mês de seu primeiro ano de governo, em 2019, Jair Bolsonaro (PL) registrava semelhantes 43% de taxa de não confiabilidade total nas suas falas. Já 19% confiavam sempre e 37% às vezes no que o então mandatário dizia.

O petista tem se notabilizado por falas polêmicas em sua terceira passagem pela Presidência. Ele já foi e voltou em declarações acerca das responsabilidades na Guerra da Ucrânia, se referiu jocosamente à obesidade do ministro indicado ao STF (Supremo Tribunal Federal) Flávio Dino e sugeriu o voto secreto na corte.

Se não repetiu Bolsonaro em seu negacionismo científico, fez associações inexistentes entre terremotos e o clima e sugeriu que bombas usadas por Israel na guerra contra o Hamas afetam a temperatura do planeta, algo desconexo.

O conflito no Oriente Médio, iniciado com um ataque do grupo terrorista aos israelenses em 7 de outubro, foi fonte de várias falas criticadas do presidente. Ele demorou para criticar nominalmente o Hamas, dada a proximidade histórica da causa palestina com a esquerda brasileira, chamou Israel de genocida e equivaleu a reação de Tel Aviv à ação do Hamas, chamando ambas de terrorismo.

Corações e mentes no meio da tormenta herdada do fascismo bolsonarista. Viés da pesquisa é de alta

"Um grupo que se destaca (na aprovação do presidente) é o dos mais jovens, que forma 15% do eleitorado, no qual Lula atinge a maior taxa de avaliação regular (40%)"

Sabesp

# Tarcísio ainda depende da aprovação dos municípios

Aprovado pelos deputados estaduais sob ação violenta da PM, o projeto de privatização de uma das maiores companhias de saneamento do mundo só poderá ser viabilizado após aval das Câmaras Municipais. Servidores prometem nova luta junto aos vereadores e na Justiça (RBA)

No Dia Internacional da Pessoal com Deficiência, aeeroporto é palco de uma monstruosidade

Ruy Castro, Folha

É preciso enxergar o quanto a técnica podem projetar um mundo construído a partir da colaboração

Evgeny Morozov, Outras Palavras

Braskem: ditadura já sabia dos riscos, mas espionou opositores à exploração do sal-gema em Maceió

Paulo Motoryn, Intercept

Estrutura de espionagem da Ditadura Militar monitorou passeatas, trabalhadores, jornalistas e até bloco de Carnaval críticos à exploração de atividade mineral em Maceió


AS VOZES QUE ALERTAM para a tragédia que assola Maceió, com o risco iminente de colapso em uma mina operada pela Braskem, não vêm de hoje. Nos meados dos anos 1970, movimentos sociais e a imprensa local já contestavam as atividades de exploração mineral na capital alagoana – e, desde aquela época, foram alvo da repressão dos militares por supostamente serem uma ameaça contra a atividade industrial  do país.

Um levantamento do Intercept Brasil em documentos produzidos sob sigilo pela Ditadura Militar revela como o Serviço Nacional de Informações, o SNI, foi acionado para monitorar quem se levantou contra a Salgema Indústrias Químicas – empresa que, em 2002, se tornaria a  Braskem. O SNI era a estrutura de espionagem usada pelo estado para perseguir adversários políticos e reprimir forças consideradas inimigas dos militares. 

A atuação do SNI não era à toa. A exploração do sal-gema em Maceió era uma das meninas dos olhos do projeto desenvolvimentista da Ditadura Militar. Mais que isso, em 1975, a Petrobras e BNDES – na época, chamado apenas de BNDE – aportaram recursos milionários do governo federal no empreendimento. 

Vale lembrar que a exploração de sal-gema começou em 1970, durante o governo de Médici, que liberou a extração em áreas subterrâneas de Maceió no contexto do ‘milagre econômico’ brasileiro. A reserva, estimada em 3 bilhões de toneladas, foi descoberta em 1943, quando se buscava poços de petróleo na região. Já no governo Geisel foi criada a empresa Salgema – que, de forma sistemática, iniciou a extração da substância de mesmo nome, a partir de 1976. Com isso, o serviço secreto dos militares foi ativado para monitorar o tema.

Ditadura militar já sabia de ‘risco grave’ em Maceió

O mais antigo dos relatórios é de setembro de 1976 e demonstra que Francisco Hermenegildo Autran, um trabalhador sindicalizado que havia chegado a um posto de direção na Salgema, foi espionado pelos militares. “Ex-Cabo da Marinha do Brasil, conhecido por suas atividades de aliciamento e proselitismo comuno-subversivo no Centro de Instrução Almirante Wandelkoch em época anterior à Revolução de 31 de março de 1964”, diz o documento..

Um outro relatório datado de 1977 revela que o SNI tentou, sem sucesso, investigar uma possível sabotagem de trabalhadores à Salgema, denunciada pelo então diretor-presidente da companhia, Roberto Coimbra. “Chega-se a suspeitar de sabotagem por parte de elementos pertencentes ao quadro de funcionários da empresa. Apesar das investigações realizadas pela empresa, não foram descobertos os responsáveis pelos fatos ocorridos”, diz o relatório.

A desconfiança sobre os trabalhadores tinha razão de ser: os impactos negativos da exploração mineral na região já apareciam na imprensa e poderiam contaminar o corpo de funcionários. Como relembrou o site ComeAnanás, em março de 1977, menos de uma semana após o início da produção de cloro, surgiram os primeiros peixes mortos próximos ao local de lançamento de resíduos de sal-gema no mar,  Mais de 60 pessoas que apresentaram problemas respiratórios, náuseas e vômitos também já tinham sido atendidas no posto de saúde do Trapiche da Barra.

Em 1983, uma reportagem do jornal Gazeta de Alagoas, publicada em 13 de março, novamente acendeu o alerta do SNI. O relatório de inteligência produzido à época pelos arapongas demonstra que a estrutura de espionagem do governo federal, chefiada pelo coronel Newton Cruz, sabia dos riscos de um “acidente grave” na região – justamente o que está prestes a ocorrer agora, em 2023.

A matéria do jornal alagoano virou tema de registro dos espiões do SNI justamente por ter revelado, com base em um relatório confidencial da Polícia Militar de Alagoas, que o poder público planejava “ações a serem desencadeadas, no caso de acidente grave na Indústria Salgema, que resulte em vazamento de cloro para a atmosfera” – o que dava eco às críticas ao aumento da exploração mineral na região.

Em 1985, no último ano do governo militar, foi  retomada as  discussões sobre a ampliação da capacidade operacional da Salgema e a instalação do Polo Cloroquímico em Marechal Deodoro. Isso reacendeu as  mobilizações sobre o tema em Alagoas. Desde lá, o projeto era alvo de preocupações quanto ao transporte e à eliminação de subprodutos da exploração, como o ácido clorídrico.

Um outro relatório do SNI detalhou como se deu, em 17 de maio de 1985, uma das manifestações mais marcantes na história do caso, justamente em função do debate sobre a intensificação das atividades da Salgema e a inauguração do Polo Cloroquímico. No texto, o espião do SNI registrou que o protesto teve início às 16h e que as faixas e cartazes tinham os seguintes dizeres: “Não deixe duplicar a Salgema”, “O futuro será cinza” e “Não deixe duplicar seu risco”.

PM alagoana já tinha até plano de ação em caso de acidentes graves na Indústria Salgema, atual Braskem.


O relatório listou as entidades sindicais, movimento sociais e políticos que participaram do evento:o então deputado estadual Ronaldo Lessa, do PMDB e “ligado ao PC do B”, do deputado estadual Moacir Andrade, do PMDB, e da deputada estadual “e membro do MR-8” Selma Bandeira, além do vereador Edberto Ticianeli, do PMDB e “militante do PC do B” e da vereadora Kátia Born do PMDB “e simpatizante do PC do B”, além do professor e ecologista José Geraldo Wanderley Marques e dos jornalistas Anivaldo Miranda e Jorge Moraes.

Por fim, o espião afirmou que o ato poderia até ter sido maior, não fosse o fato de, horas antes, o professor Evilásio Soriano, mencionado como “coordenador do Polo Cloroquímico, da Salgema Indústrias Químicas”, ter participado de um debate na televisão local apresentando os argumentos positivos para a ampliação.

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O movimento contrário à instalação do polo e ao aumento das atividades da Salgema, de fato, conseguiu atrasar os planos da empresa, que chegou a ir aos jornais ameaçando transferir as atividades para outros estados, como Bahia e Sergipe. A pressão dos acionistas, no entanto, levou à autorização da expansão da Salgema, no final de 1985.

Nem isso, nem o fim da Ditadura, fez o SNI – cuja estrutura foi mantida no governo do presidente civil José Sarney – parar de acompanhar as atividades contra a exploração mineral em Alagoas. 

No dia 7 de fevereiro de 1986, em plena Praia de Pajuçara, um informante do SNI foi escalado para acompanhar o bloco Meninos da Albânia, que criticou publicamente a Salgema. 

No ano seguinte, em 1987, um relatório do setor do SNI que acompanhava a indústria brasileira mostra a sensibilidade dos militares sobre a questão ambiental, ao analisar as “dificuldades e óbices” da Salgema.

Para o SNI, o o principal obstáculo da Salgema era a ” interpretação errônea que a imprensa alagoana e a opinião pública fazem sobre as possíveis externalidades (danos à flora e à fauna em decorrência de lixos químicos, etc) advindas da industrialização de produtos pela empresa”, diz o documento.

31 anos depois, a empresa destruiria cinco bairros da cidade no maior desastre ambiental urbano da história do Brasil.

Maceió: imprensa levou cinco anos para noticiar a tragédia provocada pela Braskem

Rodrigo Ratier, ECOA/Uol 

Parte considerável da cidade de _ _ _ _ _ afunda, dezenas de milhares de pessoas dos bairros _ _ _ _ _ perdem suas casas, danos ao importante ecossistema _ _ _ _ _ podem ser irreversíveis.

Não precisa ser jornalista para sacar que a repercussão, a indignação e as providências que serão tomadas dependem das palavrinhas que se colocam nos espaços pontilhados. Imagine o escândalo imediato, por exemplo, se as escolhidas para cidade fossem "São Paulo", para os bairros, "Pinheiros e Perdizes" (onde vivo), e para o ecossistema, "Parque Ibirapuera". Mas a realidade preencheu o espaço com "Maceió" para cidade, "Bebedouro, Pinheiro, Farol e Mutange" para bairros" e "lagoa Mundaú". Resultado… 

# Continue aqui a leitura deste texto
# Leia também a coluna do ombudsman da Folha sobre o descaso da imprensa com os crimes da Braskem

Henry Kissinger
# Diplomata ou criminoso de guerra?
Reginaldo Nasser, em vídeo, na Carta Capital

# Que ele não descanse em paz
Ariel Dorfman, A Terra redonda

Genocídio em Gaza
# Israel reabre a válvula de gás
Chris Hedges, Outras Palavras

# Tropas de Israel expandem operação terrestre e destroem tudo
Opera Mundi

Não se faz isto com um país e com seu povo

Braskem transforma áreas de Maceió em ruína urbana e deixa população abandonada aos ratos e à destruição

As imagens que dão conta do inacreditável estado de decomposição das regiões onde a empresa atuou nas última décadas, sempre contando com a complacência criminosa e silente das elites neoliberais e da mídia, comprovam a natureza predatória dos interesses privados em qualquer setor de atividade. Cinicamente, contra todas as evidências,  a Braskem não se responsabiliza pela tragédia.

Reproduz-se na capital de Alagoas o mesmo cenário da destruição provocada pela Vale, em Minas; do caos no transporte privado em São Paulo; do abandono da população nas mãos criminosas dos planos de saúde.  

Fiquem espertos paulistas e paulistanos com o discurso de Tarcísio de Freitas: ele é hoje, no Brasil, o principal agente dessa política de destruição da dignidade nacional. 

# Não deixe de ler e de divulgar a matéria da Folha publicada nesta 3a feira

vestígios do dia*

"Não vamos desistir", diz família de torturado na ditadura após STJ negar ação contra Ustra (na foto acima). Leia mais na Folha.

pensatas do fim de semana

Roberto Schwarz: "Marxismo deixou o Brasil mais inteligente" 

Entrevista à revista piauí, dezembro de 2023

Em 2004, o crítico Roberto Schwarz, autor de obras que redefiniram o entendimento da literatura e da cultura brasileira, como Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis e Cultura e política: 1964-1969, concedeu uma longa entrevista sobre o impacto do marxismo em sua obra e na sua geração (continue a leitura)

O debate foi conduzido pelos economistas José Márcio Rego e Luiz Gonzaga Belluzzo, a professora de literatura Maria Elisa Cevasco, o sociólogo Eduardo Kulgemas (1940-2006), a socióloga Roseli Martins Coelho e o professor de história Jorge Grespan. Também participou Grecia de la Sobera, estudante de filosofia. A conversa permaneceu inédita e foi revista e ampliada pelo entrevistado duas vezes – em 2019 e neste ano. O texto a seguir é a íntegra do depoimento de Schwarz, a partir das questões propostas pelos entrevistadores.

Uma aclimatação do marxismo no Brasil 

Muita gente nem lembra que foi marxista, ou pensa no marxismo como um pecado de juventude. Mas o marxismo tornou o Brasil mais inteligente, criou uma ordem do dia substanciosa e produziu uma reflexão histórica original, que não se esgotou, embora tenha perdido bastante de seu pique. A moda atual é reduzi-lo ao doutrinarismo, que de fato o acompanhou e é muito negativo. Tenho a convicção, porém, de que há um estudo importante parado no ar, à espera de alguém que articule sem sectarismo os livros-chave do nosso estruturalismo histórico, de intenção transformadora.

Essa designação meio neutra serve para evitar as querelas de capela e uma terminologia que impediram muitos marxistas de reconhecer a direção comum das obras – suponhamos – de Caio Prado Júnior, Celso Furtado e Antonio Candido, para ficar em figuras simbólicas. Acrescido de uma dúzia de outros autores, muitos dos quais se detestam cordialmente, trata-se de um conjunto dotado de consistência e força elucidativa, cujo alcance ainda não foi apreciado devidamente.

Vivemos o decênio da vitória do capital e da derrota do anticapitalismo. Os países ditos socialistas, que tinham Marx como bandeira, viraram capitalistas assim que puderam, e os movimentos operários excluíram a análise marxista do seu programa, o que tampouco impediu que fossem perdendo a força. Diante de tal derrocada histórica, que sentido pode conservar o interesse pelo marxismo? Será que a derrota não tem ensinamentos e não manda mudar de assunto? Acresce que a inspiração marxista, segundo contam os colegas mais moços, é uma desvantagem considerável para quem procura emprego ou bolsa de estudo, para quem quer publicar um trabalho ou avançar na carreira. É claro que esses desastres e inconvenientes não chegam a ser argumentos teóricos, mas não deixam de ser realidades. Cabe aos amigos de Marx demonstrar com resultados novos que o seu ponto de vista não é mera teimosia.

ANTES DE 1964

Como era natural numa universidade de periferia – a USP dos anos 1950 e 1960, onde eu estudava –, as tendências internacionais davam a pauta, até que a correnteza que levou à crise de 1964 ganhasse força, abrindo espaço, por um curto momento, a uma redefinição local e mais independente dos problemas. Com a morte de Stálin em 1953 tivera início o degelo dentro do movimento comunista, cujo autoritarismo anacrônico foi ficando inviável. As consequências para a vida intelectual foram profundas e se fizeram sentir também no Brasil. A obra de Marx, que o clima de catequese e linha justa dos partidos comunistas havia sequestrado, entrava para o debate universitário, competindo com as teorias rivais e sugerindo aos estudantes um estilo crítico mais radical.

Além do próprio Marx, os autores decisivos para a desdogmatização naquele momento, quanto à teoria e no nosso pedaço, foram György Lukács e Jean-­Paul Sartre. Em 1960 foi publicada em francês uma edição pirata de História e consciência de classe, o livro renegado e lendário de Lukács. Em 1960 saiu também a Crítica da razão dialética, de Sartre, precedida da Questão de método, que era uma tentativa de casar existencialismo e marxismo, e de dar combate ao dogmatismo dos partidos comunistas na França e nos países do Leste.

São exemplos que dão ideia do vento de ressurreição teórica e disposição de mudança que soprava na época. Em 1955 foi publicada a primeira seleção importante dos escritos de Walter Benjamin, organizada por Theodor Adorno, que voltara dos Estados Unidos para a Alemanha em 1949. Com o suicídio de Benjamin em 1940, durante a fuga do nazismo, os seus escritos tinham desaparecido, postos em segurança por amigos. Também nos anos 1950, Adorno começou a desovar sua vasta produção, na qual a problemática das décadas de 1920 e 1930 – a problemática pós-revolucionária europeia – era retomada e atualizada, levando em conta a experiência da Segunda Guerra Mundial e dos anos passados na América. Pertence ao mesmo período a glória mundial de Bertolt Brecht, o dramaturgo e escritor que colocou a revolução e a reflexão materialista no âmago de sua invenção de formas.

À distância, esse renascimento do marxismo crítico, que estivera soterrado pela vitória do nazismo na Alemanha, do stalinismo na União Soviética e do anticomunismo nos Estados Unidos, tinha o que oferecer à radicalização brasileira de então. As suas peculiaridades eram especialmente sensíveis para quem trabalhava no âmbito estético.

MARXISMO E
RADICALISMO ESTÉTICO

Em matéria de arte, tratava-se da volta do radicalismo dos anos da Revolução Russa, ou mesmo dos anos da grande experimentação radical anterior à Primeira Guerra Mundial e, naturalmente, de nosso modernismo de 1922. O ressurgimento desse espírito subversivo cinquenta anos depois, em circunstâncias mudadas, marcadas pela prosperidade americana e europeia, mas também pelo terceiro-mundismo, é desses fatos que requerem explicação.

Em todo caso, contribuiu para o movimento que levou à comoção mundial de 1968. É interessante lembrar que História e consciência de classe, que é de 1923, se definia como um livro leninista precisamente porque considerava que a revolução estava na ordem do dia. Quando nos anos 1960 a desagregação da ordem burguesa e a sua superação pareceram voltar ao primeiro plano, o livro de Lukács recuperou a atualidade. Todos esses autores haviam tido contato vivo com movimentos de ponta, com vanguardas políticas ou artísticas, que agora, completada a esclerose da União Soviética, passavam a ter vibração não só anticapitalista, como também antistalinista.

Lukács foi bolchevique. Benjamin, muito afinado com a experimentação avançada (Proust, Kafka, Karl Kraus, Brecht, o surrealismo, o significado estético do desenvolvimento das forças produtivas), procurava politizá-la em toda a linha. Adorno começou como um teórico militante da Escola de Viena, cujas rupturas musicais ele interpretava como outras tantas quebras da ordem burguesa, em analogia com a visão lukacsiana da revolução.

Cada qual a seu modo, esses autores eram o que na União Soviética se chamava depreciativamente formalistas. Acreditavam na precedência da questão formal para a discussão artística. Conforme a expressão célebre de Lukács, anterior ainda à sua virada marxista, o que é social na arte é a forma, a qual estrutura o contato dos conteúdos e dos materiais com o espectador. Mas é claro que o formalismo das vanguardas não era descaso pela humanidade, como queriam os seus adversários conservadores, nem pela história, como queriam os adversários de esquerda. Era, ao contrário, a convicção de que transformações formais levavam a um mundo novo. Isso dava ao debate estético o calor parapolítico e revolucionário que hoje é difícil de imaginar. Assim, as revoluções formais não eram inaceitáveis só para o senso comum burguês e para o valor-eternismo da cultura tradicional, mas também para o humanismo de fachada dos partidos comunistas, com sua função disciplinar.

Quem levou mais longe a dialética de forma e conteúdo, de forma e material, foi Adorno, insistindo no lastro social-­histórico das formas – a forma é conteúdo histórico sedimentado – e no caráter sempre historicamente pré-formado, ou nunca informe, de conteúdos e materiais. Ao contrário do que possa parecer, a procura da forma e mesmo a revolução formal são, para Adorno, menos uma imposição discricionária do artista do que a solicitação de tendências e de contradições acumuladas em seus materiais pelo tempo. Com esses avanços da reflexão, que dão à crítica marxista o seu programa, a análise estética se torna integralmente histórica e dialética. A ideia de que as formas sejam sínteses consideráveis de experiências históricas e respostas também consideráveis a essas mesmas experiências obriga o crítico, empenhado em sua decifração, a arriscar…

É um tipo de crítica que requer abertura para o que dizem as formas, para a experiência histórica à qual elas aludem, para a história e as contradições armazenadas em seus materiais, e também para a experiência subjetiva que tornou a obra memorável e merecedora de interpretação – sem contar a capacidade correspondente de verbalizar.

Ao juntar análise formal e reflexão histórica, a crítica estabelecia um patamar à altura das exigências reais da arte, patamar que entretanto é difícil de combinar com as realidades da rotina universitária. Esquematicamente, eram noções que se opunham ao conteudismo antiestético da história literária positivista, ao conteudismo enquadrado e bem-pensante da história literária comunista e ao formalismo a-histórico de várias vertentes da crítica acadêmica.

A meu ver a superioridade do marxismo em cada um desses confrontos é palpável. Nem por isso ele se impôs – salvo onde virou doutrina de Estado e se desvirtuou –, talvez porque o vaivém entre as reflexões formais e históricas inclui sempre um pulo do gato para o qual não há receita e que não há como didatizar inteiramente. Aliás, os trabalhos que de fato cumprem esse programa não são frequentes. Seja como for, seria interessante confrontar momentos altos da crítica marxista e do New Criticism americano, também este formalista e inovador, além de academicamente mais bem-sucedido. Acho que não é parcialidade dizer que os resultados deste último – ainda quando bons – são mais modestos. Há diferença entre o formalismo sem história, ou com referência histórica limitada, e o formalismo plenamente voltado para a história e a crise da sociedade contemporânea, no sentido decisivo – também de forma – que o marxismo lhe atribui.

LUKÁCS, SARTRE,
FRANKFURTIANOS E BRECHT

Para mim, pessoalmente, os mais importantes foram Brecht e os frankfurtianos. Mas para muita gente boa foram Lukács e Sartre. Brecht, porque ele fez da luta de classes e do marxismo elementos deliberados da invenção artística, criando um vanguardismo de tipo novo, politicamente mais agudo. Os frankfurtianos, pela cumplicidade marxista com a arte moderna ou, inversamente, pela cumplicidade modernista com o marxismo, ambas muito bem explicadas, integrando a reflexão estética à reflexão contemporânea de maneira a meu ver inédita.

Já o interesse por Lukács é mais complicado e misturado. Depois de escrever História e consciência de classe, do qual todo o marxismo crítico é tributário – Horkheimer e Adorno em particular –, ele pagou um preço alto à linha justa do Partido Comunista, para não ser expulso, como ele mesmo explica com franqueza. O que fazer com um crítico que dá como exemplos de equívoco estético a literatura de Proust, Kafka, Joyce e Beckett, sem esquecer Flaubert e o próprio Brecht? É praticamente a literatura moderna inteira. Ainda assim, o conjunto de seus estudos sobre o romance dos séculos XVIII e XIX (até 1848, quando a seu ver começa a decadência da arte burguesa) é poderoso e está vivo, o que não deixa de espantar, pois tantos de seus pressupostos e pontos de fuga foram derrubados. Ou foram invalidados só em parte? Mas é preciso dizer, a bem da verdade, que a obra e a vida de Lukács são instrutivas também de outro ângulo mais penoso. Elas deixam entrever o submundo regressivo da política stalinista, cheio de panfletos abjetos, ameaças, retratações, desaparecimentos, homenagens rituais ao ditador etc. O que pensar disso tudo e de sua ligação com a outra metade, emancipatória e libertária? Não é que no Brasil não tivéssemos notícia do lado tenebroso da coisa, mas ele não se impunha à nossa imaginação. A União Soviética ficava longe e naquele tempo não parecia um problema crucial, o que naturalmente foi um déficit político grande do marxismo de minha geração.

A CHEGADA DO MARXISMO HETERODOXO

Quanto a Sartre, que era famoso, não há mistério. Era normal na faculdade que um livro novo dele fosse lido. Já os alemães eram de acesso difícil, não só por causa da língua. Lukács, depois da autocrítica forçada, havia proibido a reedição da Teoria do romance e de História e consciência de classe, os dois livros que haviam feito a sua reputação na década de 1920. Os trabalhos novos ele publicava na Alemanha comunista, onde por alguma razão os nossos livreiros não gostavam de fazer encomendas. Por seu lado, Benjamin e Adorno ainda não estavam na moda nos anos 1950 e 1960. São Paulo na época tinha boas livrarias alemãs, onde comprei livros deles pelo sumário interessante, sem saber quem fossem.

Antonio Candido conhecia Lukács e levou em conta a sua concepção do romance na Formação da literatura brasileira, de 1959. Até onde sei, a outra pessoa na faculdade que o conhecia era Paula Beiguelman, uma excelente professora de política, que tinha uma coletânea italiana de ensaios dele sobre o realismo, que ela emprestava com ciúme, como algo precioso. Em suma, Lukács era uma presença especial, cultivada por uns poucos socialistas insatisfeitos com o marxismo vulgar e conhecedores da história da esquerda europeia. Havia em torno dele o sentimento do que o marxismo poderia ser se não fosse a deturpação stalinista.

Noutras palavras, os autores chegavam ao sabor das livrarias e das curiosidades individuais, mas o contexto que retraduzia tudo era a efervescência brasileira do período. Brecht, por exemplo, depois de ser encenado como uma novidade estranha por uma companhia convencional, com resultado assim-assim, foi transformado numa figura indispensável ao teatro brasileiro pelo Centro Popular de Cultura (CPC), pelo Arena e pelo Oficina, que o incorporaram em espírito irreverente e agitativo, nem sempre afinado com o original, mas em sintonia com o momento histórico.

UM SEMINÁRIO DE
LEITURA DE O CAPITAL

Embora os professores de esquerda fossem numerosos nos departamentos de filosofia e de ciências sociais, o papel do marxismo era de outsider, uma presença extra-acadêmica, tingida pela ilegalidade da militância comunista. Não havia cursos a respeito – paradoxalmente estes só se generalizaram mais tarde, durante a ditadura. Muitos de nós com certeza achavam que Marx era mais forte e crítico do que os demais clássicos da teoria social, que ele era uma figura-chave para a filosofia, que a reflexão estética devia levá-lo em conta. Mas, ainda assim, era uma presença não oficial, de conversa de saguão ou de bar, e não de sala de aula – um recado de outra realidade.

Não conheço a história da montagem dos currículos da época e não saberia dar as razões da ausência de Marx. Uma parte da explicação passa talvez pela seriedade intelectual, pela alergia que a faculdade tinha desenvolvido à improvisação. O capital é um livro que intimida, e os pressupostos culturais da teoria marxista não eram correntes, ou melhor, eram interdisciplinares em alto grau, sem falar na bibliografia pouco acessível.

Quando um grupo de jovens professores – entre eles, Fernando Henrique Cardoso e José Arthur Giannotti – se organizou para fazer o Seminário Marx e ler o livro a sério, para torná-lo produtivo acadêmica e politicamente, causou um certo rebuliço. Empurrada pela radicalização do pré-1964, a moda pegou. Os seminários e os cursos universitários correlatos se multiplicaram, e em tempo não muito longo se formou a necessária massa crítica de conhecedores do texto e de seu contexto, permitindo que Marx se tornasse uma especialidade acadêmica – mas aí o momento crítico, em que análise de classe e crise do desenvolvimentismo formavam uma dupla explosiva, já havia passado. Fernando Henrique e Giannotti escreveram que no seminário se estudava Marx como um clássico entre outros, sem propósito extra-acadêmico. Não é a minha lembrança como participante que fui desse seminário.

O seminário sobre Marx foi iniciativa de um grupo pequeno de professores: alguns assistentes de ciências sociais, filosofia, história e economia, que se encontravam quinzenalmente para estudar O capital. Teria sido um esforço intelectual sem nada muito particular, não fosse a obrigação do doutoramento, que no caso foi uma força produtiva e causou uma química nova. Salvo os filósofos, todos escolheram assuntos de tese brasileiros, que tentaram abordar do ângulo marxista recém-adquirido, em espírito dialético, criando uma situação mais cheia de desdobramentos do que supunham.

Por um lado, tratava-se de rever o país à luz de Marx, combinando história, análise de classe e análise econômica, com vantagens de conhecimento evidentes. Por outro, as categorias de Marx eram postas à prova dos padrões normais da pesquisa universitária, o que tinha consequências políticas imediatas, pois deixava malparada a infalibilidade dos dirigentes comunistas, até então donos da teoria. O progresso mais inesperado e interessante, contudo, acabou sendo outro, que se configurou nos trabalhos de Fernando Henrique Cardoso e Fernando Novais. Cada um em seu terreno, os dois constataram uma certa inadequação das categorias marxistas – quando tomadas tais e quais – à experiência histórica brasileira, que não batia com os conceitos clássicos. Nem nossa burguesia, nem nossa classe operária, nem as etapas de nossa evolução social coincidiam com o modelo marxista canônico, o que no clima de urgência transformadora da época era um problema desconcertante. Como chegaríamos a ser uma nação burguesa ou socialista decente, como as adiantadas, se diferíamos delas em tudo? O final feliz do percurso não ficava comprometido?

Num caso desses, o caminho fácil e comum seria recusar a realidade para salvar as categorias, ou vice-versa. Pois bem, os dois doutorandos tiveram o discernimento dialético de não recuar diante da inadequação, mas de retê-la como um dado crucial, reconhecendo nela um elemento de realidade do sistema capitalista mundial, cujas categorias não significam o mesmo nem funcionam de modo igual em seus diferentes lugares, no centro e na periferia, embora existindo e sendo eficazes. Assim, o seminário operou uma considerável metabolização brasileira do marxismo, que foi, em primeiro lugar, resgatado da condição de catecismo político; em segundo, separado da mera análise de texto, ainda que filosófica; em terceiro, inserido na pesquisa propriamente universitária, mais aparelhada que o jornalismo de esquerda corrente; e, por fim, problematizado e reespecificado pela experiência histórica a qual devia esclarecer – um resultado ainda pouco apreciado.

Digamos que o seminário contribuiu para o arejamento e a ressocialização do marxismo, afastando-o do universo das seitas e obrigando-o ao debate acadêmico normal, no qual era confrontado às demais teorias sociais e à pesquisa empírica. O banho de realidade fez bem ao marxismo, cuja potência crítica, por sua vez, elevava o nível da discussão. Uma vez desdogmatizada, a ênfase na luta de classes e na exploração econômica trazia às ciências sociais dimensões que elas, por razões obviamente ideológicas, costumavam esquivar.

Quando, por exemplo, Fernando Henrique assinalou a ausência da luta de classes – uma lacuna gritante – nas reflexões do nacional-desenvolvimentismo, inclusive da Cepal,[1] eram os pontos de vista do seminário que subiam ao âmbito nacional e latino-americano. A repercussão internacional dessa sua intervenção, que formaria o miolo da teoria da dependência,[2] mostra o alcance crítico do trabalho do seminário.

Mas nada é simples como parece. No começo dos anos 1970, tive a sorte de participar de uma entrevista com Celso Furtado, então no exílio, a respeito de sua evolução intelectual. Os entrevistadores, marxistas e fernando-henriquistas – entre os quais eu mesmo –, pressionavam o grande homem a conceder que em sua construção havia uma lacuna, quase uma ingenuidade. A seu ver, quem – que sujeito, qual categoria ou força social – seria capaz de arrancar às mãos dos americanos as alavancas do mando econômico, permitindo ao país a superação da condição dependente? Educadamente, queríamos forçar o ex-ministro e teórico do subdesenvolvimento a reconhecer que faltava na sua teoria e política o papel decisivo da luta de classes e da classe operária.

Depois de alguns minutos de braço de ferro infrutífero, em que Furtado afirmava que os agentes da transformação seriam os “homens de bem” (uma resposta algo decepcionante, convenhamos), nosso entrevistado mudou o tom e disse mais ou menos o seguinte: “Eu sei o que vocês querem que eu diga. Mas não vou dizer, porque não acredito. Pensei muito no assunto, e não creio que nas circunstâncias brasileiras a classe operária vá desempenhar este papel.” Em suma, ao contrário do que pensávamos, não era que Furtado não tivesse uma análise de classe e que esse era o déficit de seu pensamento. Ele, um homem de esquerda, anti-imperialista, tinha sim uma análise de classe, só que ela era pessimista, e o levava a buscar outras saídas.

O MARXISMO DA
GERAÇÃO ANTERIOR

É claro que o seminário foi um momento tardio da assimilação brasileira do marxismo. O passo inicial tinha sido dado muitos anos antes por Caio Prado Júnior, com o seu trabalho de historiador. Voltando atrás, na década de 1930 o marxismo vinha sendo uma presença ativa, mas pontual, um elemento na cultura geral das pessoas esclarecidas, como ocorreu também com o freudismo. Graças a seu beabá de choque, chamava a atenção para o primado do interesse material, para a realidade das classes sociais e da exploração econômica, que em geral eram tabus, e contribuía para a crítica à religião, ao tradicionalismo, ao conservadorismo liberal, à ordem oligárquica etc.

Vários dos maiores escritores do período – Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Graciliano, Drummond, Rubem Braga – lhe devem parte dos seus insights materialistas. A outra vertente, correndo em faixa isolada, era o sectarismo do Partido Comunista, com seus esquemas elaborados pela Terceira Inter­nacional,[3] sem contato com o debate e a realidade locais. Entre parêntesis, e a despeito da inadequação clamorosa, é certo que eles, os esquemas, afirmavam a dimensão mundial da luta de classes, o que não deixava de contribuir para um sentimento atualizado do presente, especialmente num país tão longe de tudo. Seja como for, nos dois casos era uma presença intelectual pouco elaborada, uma transposição mais ou menos crua de pontos de vista genéricos, distante da força de revelação da boa análise marxista. Esse é o ambiente em que Evolução política do Brasil (1933) e Formação do Brasil contemporâneo (1942) representaram um salto. Especialmente o segundo tinha muitos atributos do marxismo de primeira classe.

A sua ideia mestra era original, esclarecedora e solidamente materialista. À explicação do Brasil pela mestiçagem (Gilberto Freyre) ou pelo transplante cultural (Sérgio Buarque de Holanda), contrapunha uma terceira, pela lógica econômica e histórico-mundial da colonização a que nos devemos. As três explicações não se excluem, antes se completam, mas competem, e a questão do primado em última instância está colocada. Em suma, Caio Prado reconhecia nas feições inaceitáveis do país a herança direta de um movimento mundial, cuja finalidade não era constituir uma sociedade, mas alimentar de produtos tropicais e minérios o comércio europeu. Comandada pelos interesses da expansão comercial europeia, que lhe dava o “sentido”, a colonização havia produzido um organismo social-econômico “completo e distinto”, “definido por relações específicas”, “algo novo”, porém deploravelmente pobre em finalidades sociais internas. Da perspectiva ulterior, de formação de uma nacionalidade moderna, este resultado era o ponto de partida real, mais deficitário que positivo, que caberia à nação independente transformar e superar.

Apresentada assim, sem mais, a dialética entre nação e colônia fica talvez trivial. Os méritos dessa construção intelectual, entretanto, são numerosos. Vou enumerando um pouco ao acaso, com propósito de diferençar e de indicar pontos fortes:

* A história é mais de transformação estrutural, demorada no tempo, que de fatos sucessivos.

* A peculiaridade sociológica da colônia e do país, em especial a escravidão e o trabalho semiforçado, não é uma feição isolada, ou um resíduo arcaico, nem muito menos um malfeito dos portugueses, mas um resultado consistente da história moderna, que por sua vez é vista criticamente (a escravidão sendo uma calamitosa rebarbarização).

* Atrás dos fatos, trata-se de notar e articular totalidades históricas – tais como a expansão comercial europeia, o resultado social-econômico de três séculos de colonização, a nação independente cuja incumbência é a superação desses mesmos resultados –, as quais imprimem o seu “sentido” aos dados isolados.

* A ênfase na produção econômica e no comércio europeu de produtos coloniais dá relevância estrutural às questões de classe, quer dizer, de mão de obra, redimensionando as noções naturalistas de raça e meio.

Nos anos 1950 e 1960, dominados pelo desenvolvimentismo, a obra marxista de Caio Prado fazia figura mais concreta que as de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, cujo acento antropológico e cultural parecia ultrapassado pelo ângulo nacional-econômico. A escrita no-nonsense de Caio Prado parecia inclusive mais moderna que o brilho literário dos outros dois, ligado à prosa modernista. Nos dias de hoje, quando a capacidade do país de dispor de si (ou de iludir-se a respeito) perdeu muito do seu ímpeto, os temas da mestiçagem e do éthos brasileiro, mais genéricos do que a circunscrição local da luta de classes, retomaram o primeiro plano. É como se na órbita da nova ordem global (ou das perspectivas de investimento das multinacionais) a flexibilidade de nosso preconceito racial ou de nosso conceito de lei se provassem mais reais que a hipótese da transformação nacional…

TRAVESSURAS E
ACUIDADE CRÍTICA

Nos anos de radicalização que foram dar no golpe de 1964, a melhor parte de minha geração de críticos flertou com o marxismo, que durante algum tempo pareceu a cara da realidade. Haroldo e Augusto de Campos, Décio Pignatari, Ferreira Gullar, Mário Chamie, José Guilherme Merquior, Silviano Santiago, Affonso Romano de Sant’Anna, Luiz Costa Lima, Alfredo Bosi, para lembrar os mais destacados, sem falar em Leandro Konder e Carlos Nelson Coutinho, cujo casamento com Marx foi de vida inteira.

Alguns desembarcaram no dia seguinte ao golpe, outros deram um tempo, outros continuaram. No começo dos anos 1990, Bosi publicou um livro de peso sobre a cultura brasileira, combinando inspirações católicas e marxistas. Merquior era ambivalente: ele gostava da análise estética à maneira frankfurtiana, para a qual era dotado, mas não da caracterização crítica ou negativa do mundo contemporâneo, que não convinha à sua política. Daí a verdadeira travessura teórica que perpetrou, ao publicar um livro abrangente sobre Benjamin, Adorno e Herbert Marcuse, em plena ditadura militar e sendo ele próprio diplomata de carreira: era um trabalho pioneiro no Brasil, com a particularidade – que embaralha tudo – de situar os frankfurtianos no campo do conservadorismo e da reação, por oposição a Martin Heidegger. Por seu lado, a idolatria concretista do progresso técnico era um eco muito unilateral do papel revolucionário que o marxismo atribui ao desenvolvimento das forças produtivas. E assim por diante.

Seja como for, os desdobramentos especificamente marxistas na maioria destes trabalhos não foram longe e não lhes determinam o valor. Aliás, é preciso reconhecer que a presença grande e influente do marxismo no Brasil, na universidade e fora dela, propiciada pela crise de 1964, produziu uma avalanche de artigos e teses, mas não deixou muitos resultados convincentes.

A verdade, incômoda para os sectários, é que a simpatia socialista e marxista, e mesmo a coragem cívica, não garantem a acuidade crítica. Se garantissem, seria tudo mais simples e o mundo se dividiria entre os bons e os maus. A dificuldade já se fizera notar muito antes de 1964. É interessante observar a esse respeito a banalidade do trabalho literário de Astrojildo Pereira e Nelson Werneck Sodré, comunistas devotados e valentes, mas sempre aquém da percepção crítica de seus contemporâneos mais avançados. 

ANTONIO CANDIDO

Quanto às ideias, o marxismo deixa de ser episódico no país quando transforma o campo das discussões, seja pela crítica das anteriores, seja pelos resultados novos. Ou, mais concretamente, ele só toma pé de fato quando especifica e problematiza a feição local do antagonismo de classe, e a inscreve no movimento geral do mundo contemporâneo, especialmente do capital – o que representa um avanço objetivo. Desse ângulo foi Caio Prado quem o tornou parte indescartável da cultura nacional. Quanto à crítica literária, esse trabalho foi obra de Antonio Candido.

Talvez para fugir ao doutrinarismo, ou para não se colocar como bandeira, Candido gosta de fazer piada sobre a relatividade de seu marxismo, que nos momentos de repressão política subiria a 90%, mas nos momentos calmos baixaria a 50%, permanecendo constante o socialismo. O fato é que os seus trabalhos de ponta são materialistas, históricos e dialéticos, sem recurso à fraseologia marxista. Isso vale em especial para Dialética da malandragem (1970) e De cortiço a cortiço (1974), e, de outro mo­do, para Formação da literatura brasileira (1959). Com eles, embora pouco reconhecido como tal, um tipo discreto de marxismo tomou a dianteira em nossa crítica. Como o avanço não vinha ligado à vanguarda artística do momento, à vanguarda política ou à voga internacional, que são os amplificadores potentes, o seu reconhecimento se deu entre os interessados na qualidade dos argumentos e da interpretação crítica. A ativação de seus acertos ainda está em curso.

Imagino que Antonio Candido não considerasse a Formação um livro marxista nem antimarxista, mas escrito na presença do marxismo vulgar e do formalismo a-histórico, e também da historiografia positivista, aos quais contrapôs uma resposta superadora, plasmada pela experiência do país.

Formação da literatura brasileira: momentos decisivos, 1750-1880 (o título completo é importante) não é uma história literária convencional. A qualidade da scholarship e das leituras críticas logo se impôs. Mas a novidade da concepção, que se traduz num recorte histórico imprevisto, e na dualidade meditada dos juízos de valor, ora estéticos, ora em função do processo formativo brasileiro, deixou desarmados a todos, admiradores e adversários. A formação progressiva, ainda que rápida e logo deliberada de um sistema literário nacional, dotado de encadeamento próprio, por oposição ao colonial, voltado para a metrópole – pois é disso que se trata –, tem analogia com o papel descolonizador que coube, noutro plano, à formação de um mercado interno. Por esse lado, o livro é parente das obras de Caio Prado e de Celso Furtado, este último um contemporâneo exato. Como eles, Candido rastreou e problematizou um processo real, uma totalidade até então despercebida, com referência à qual os dados isolados adquirem sentido.

A novidade, dizendo de modo geral, estava na visão precisa e analítica da formação da nacionalidade e do que seja uma literatura nacional – coisas que julgávamos conhecer –, tomadas como formas específicas de organização material do espírito, com requisitos de acumulação, abrangência e encadeamento interno, bem como de relacionamento externo, e não como pontos de honra. O adjetivo “nacional” mudava de acepção, separava-se de sua vibração ufanista e designava um modo peculiar e novo de organizar a cultura e polarizar a imaginação, com vantagens e estreitezas próprias. Tanto a “formação” como a “literatura brasileira” do título estão em sentido mais refletido e menos identitário que o corrente. Não se trata de repertoriar as nossas obras e glórias a partir do descobrimento do país ou do passado imemorial, mas de expor um processo estruturado, delimitado no tempo (os “momentos decisivos” do subtítulo), com feições, tarefas, dificuldades e ilusões particulares, estéticas e extraestéticas, em condições históricas também particulares. O próprio assunto – os mesmos “momentos decisivos” da formação – liga-se à descontinuidade intrínseca e cataclísmica das culturas de origem colonial, e não faria tanto sentido nas literaturas europeias que nos servem de modelo, mais orgânicas e contínuas. Aliás, o prefácio do livro abre com uma frase que recusa as esquematizações universalistas: “Cada literatura requer tratamento peculiar, em virtude dos seus problemas específicos ou da relação que mantém com outras.”

Caio Prado, sublinhando as implicações críticas de sua ideia sobre “o sentido da colonização” – o seu passo à frente –, observa que ela contraria os cacoetes mentais presos à cronologia e à vizinhança próxima: a colonização não decorre do descobrimento que a precede, como parece ao senso comum, com suas atribuições causais impensadas, mas da expansão do comércio europeu, que a explica e de que ela é um capítulo por assim dizer interno, apesar da distância aparentemente imensa. Para falar em jargão, a causalidade não é linear, mas estrutural. Algo parecido vale para a Formação, cujas grandes linhas refletem ganhos efetivos da compreensão, refutando ilusões caras ao nacionalismo, ao romantismo e ao marxismo vulgar. Para uma exposição de suas posições, em que o materialismo histórico não é um rótulo, mas uma atitude sóbria e esclarecedora, vale a pena ler a introdução à Iniciação à literatura brasileira, do próprio Candido, um pequeno livro que ainda não recebeu a atenção devida.

Há determinações materiais na Formação, mas não constam do repertório estabelecido do marxismo. O livro de fato historia o surgimento de uma continuidade literária nacional – o que é diferente de local –, em contraste com a ordem antiga, da colônia, além de historiar uma incorporação peculiar de blocos da literatura universal. O pivô materialista proposto pelo livro gravita em torno da Independência. Encarada sem mitos, como um processo longo e diversificado, esta começa muito antes do Sete de Setembro e se completa muito depois.

É claro que ela, por sua vez, tem condicionamentos econômicos e sociais. O seu impacto nas letras, entretanto, ao menos em primeira instância, não passa pelos esquemas marxistas familiares. No caso, a condicionante eficaz é a situação formativa ela própria, correlata do inevitável atraso da colônia em crise, depois ex-colônia e nação recente, que vai ditando tarefas e critérios aos escritores e críticos. Cabia aos homens europeizados e mais ou menos educados – uma categoria social, mas não uma classe – dotar o país novo dos equipamentos que lhe faltavam, que iam de instituições necessárias, como escolas superiores e museus, a filosofias atualizadas e gêneros literários na moda, o que constitui uma forma sui generis e muito real de engajamento patriótico e progressista: criar um país à altura. Embora sejam alheios ao léxico marxista, são agentes sociais, objetivos históricos e tipos de engajamento perfeitamente reais, cujo nexo material com a etapa da formação nacional salta aos olhos.

FORMAÇÕES DESIGUAIS
E COMBINADAS

Noutro plano, a ideia de formação permitiu analisar como surpreendentemente uno, apesar das discrepâncias radicais, o período cultural e literário que vai da crise do sistema colonial à constituição da nação, de 1750 a 1880. Trata-se de uma descoberta histórica, com consequências para a compreensão do Brasil e, com os ajustes devidos, da generalidade das descolonizações. Otília e Paulo Arantes procuraram ampliar a sua pertinência para a interpretação cultural do país, indicando movimentos análogos nos campos da arquitetura, da pintura, da filosofia e do teatro, sugerindo um vasto ritmo nacional de formações desiguais e combinadas. O interesse comparativo dessa concepção, no âmbito de uma visão geral da descolonização, é um capítulo ainda por abrir.

No essencial, o processo longo da Independência governa, a distância, o arcadismo e o romantismo, imprimindo-lhes certa unidade, a despeito do antagonismo estético e político. Esse recorte do objeto, que buscava apreender um desenvolvimento real, desdizia as esquematizações nacionalistas e tinha desdobramentos inesperados e anti-ideológicos.

O arcadismo e seus pastores, que do ângulo do patriotismo romântico eram a própria alienação imposta pela metrópole, passavam a desempenhar outro papel. Sob o signo das Luzes, a sociabilidade das academias não só formava um tecido intelectual na colônia, como tinha afinidades com a Razão e com aspirações de autogoverno, contribuindo para o que seria o sentimento da Independência. A própria convenção rústica, a negação à primeira vista das particularidades do lugar e da história, trocava de funcionamento. Num dos capítulos mais brilhantes do livro, sobre a poesia de Cláudio Manuel da Costa, Antonio Candido mostra como, sob a universalidade do padrão bucólico, emerge o amor bairrista da paisagem local. Num funcionamento peculiar e notável, a figura estilizada do pastor permite dramatizar a “dupla fidelidade” do intelectual brasileiro, em quem o momento histórico superpõe o apego à precariedade local, que é sua, e o cultivo da tradição ilustre e longínqua do Ocidente, que também é sua.

No conjunto, são achados críticos e históricos novos, cuja marca distintiva, sempre presente, mas nunca alardeada, é justamente o materialismo. Como indica a parte introdutória do livro, o que estava em debate ao tempo de sua feitura era a relação, ou a separação, entre o valor artístico e as condições materiais – sociais, psicológicas, biográficas – de sua produção. Dando nome aos bois, de um lado estava o positivismo-naturalismo dos condicionamentos externos, de que era próximo o marxismo vulgar; do outro, o New Criticism, com o seu acento na análise interna, na eficácia e na independência da forma.

A discussão permitiu a Candido rever as suas posições iniciais, diretamente ligadas ao debate social, e buscar um novo ponto de equilíbrio: a indicação de condições externas não pode substituir a análise formal, que entretanto não a deve excluir. Entre parêntesis, a conclusão mostra que àquela altura o seu materialismo não era um ponto de doutrina abstrato, mas uma posição alcançada, fincada na atualidade, pois havia incorporado diferenças cruciais, seja com o complexo positivista-naturalista-marxista da tradição nacional e internacional, seja com o formalismo anglo-saxônico, que apartava a qualidade formal e a craftsmanship das condições históricas de sua realização. A ênfase nova estava na análise formal, mas o espírito do conjunto era histórico, e no ponto de fuga estava a superação do impasse. Nos ensaios posteriores – a etapa de ponta e mais complexa de seu trabalho crítico –, Antonio Candido buscaria metódica e inventivamente a historicização da análise formal.

Ele próprio definiu o seu livro como “uma história dos brasileiros no seu desejo de ter uma literatura”. Paulo Arantes numa live chamou atenção para o interesse dessa formulação. Trata-se de uma caracterização de classe peculiar, ligada ao processo real, extremamente esclarecedora, embora aquém (ou além) da conceituação histórico-sociológica – que o autor, sociólogo de formação, preferiu não dar. Quem seriam esses brasileiros? A sua esfera, que é policlassista, vai além das classes dominantes ou dirigentes. Abarca também os patriotas mais ou menos instruídos e europeizantes que aspiram à criação de uma literatura nacional, tão gloriosa quanto as demais, camada esta que pode incluir gente muito modesta. Os iletrados e os escravizados, como era forçoso, estavam excluídos.

UM NOVO “SENTIMENTO
DO MUNDO”

À primeira vista, não há semelhanças entre os trabalhos de Antonio Candido e do seminário de Marx. Mas pensando melhor, há paralelos de fundo – preocupações comuns ligadas à situação intelectual do subdesenvolvimento, que na faculdade nos envolvia a todos, das humanidades às ciências exatas. Como sair da precariedade, do atraso, da irrelevância em que estávamos atolados? Era um pano de fundo difuso, que conferia urgência e alguma cumplicidade progressista ao conjunto da vida universitária, passando por cima de divisões partidárias. A resposta que certo marxismo da faculdade deu a este quadro estabeleceu um novo patamar.

Cada qual a seu modo e em seu campo, o seminário e Antonio Candido tentaram caminhos aparentados. Articularam âmbitos que não se costumavam aproximar, ou que se estudavam em separado. A peculiaridade social da ex-colônia, em especial o travejamento de classe, era ligada à inserção moderna do país na ordem internacional burguesa e capitalista, com a qual passava a formar um todo. O conjunto servia de substrato à análise estrutural inovadora. De maneira talvez inédita e contraintuitiva, os aspectos problemáticos da herança colonial, aqueles em que o Brasil discrepava do padrão hegemônico da nação burguesa, não eram vistos como resquício (ou não só). Trabalho escravo, trabalho semiforçado e relações de clientela agora formavam o complexo que sustentava e possibilitava a integração de nossa classe dominante à atualidade do mundo, de que fazia parte plena e subalterna, atualidade que era colocada em perspectiva por sua vez.

Ao contrário do que pareceria, já não se tratava de atraso versus adiantamento, passado versus presente, mas de coexistência funcional, em que nossas relações pré-burguesas de opressão e exploração tinham (e têm) papel substancioso. Este passo, que retomava a ideia de Caio Prado Júnior, fazia grande diferença. Pouco antes, Celso Furtado havia teorizado o subdesenvolvimento nessa mesma linha, como uma realidade que não tende a se dissolver, muito menos a se superar, mas a se reproduzir. Na fórmula feliz de Gunder Frank, que fez escola, tratava-se do desenvolvimento do subdesenvolvimento, da reposição do atraso em circunstâncias avançadas.

As consequências políticas, culturais e teóricas – sem esquecer as estéticas – dessa ordem de ideias são profundas. O obsoleto pode ter futuro pela frente. Repisando, as nossas relações de opressão e exploração de classe, que pareciam nos excluir do mundo moderno, eram justamente nosso vínculo ao progresso tal como ele é, e não como os países adiantados afirmam que ele seja. A inversão é contra-hegemônica e nada menos que sensacional. Em lugar de moradores de um remoto quintal do mundo, somos parte ativa, inconsciente ou revoltada, de sua reprodução em sentido forte. Trata-se de um novo “sentimento do mundo” – na fórmula de Drummond –, ainda por digerir.

NOTAS

[1] A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe foi criada em 1948 pela ONU para estimular a reflexão sobre as economias do continente e o planejamento dos países no pós-Segunda Guerra Mundial. O brasileiro Celso Furtado (1920-2004) foi um dos integrantes da Cepal, logo nos primeiros anos de atividade da comissão. (Todas as notas são da Redação da piauí.)

[2] A teoria da dependência postula que existe uma relação de subordinação das economias “periféricas” (países, em geral ex-colônias, da América Latina, África e da Ásia de então) em relação às economias “centrais” (da Europa, em geral países colonizadores, dos Estados Unidos e do Japão). Para essa teoria, o estado de subordinação dos países “periféricos” é justamente o que impede a sua plena modernização capitalista, mas é preciso examinar a configuração social interna de cada nação, com seus antagonismos e alianças de classe, para ter clareza sobre a condição de dependência. Tal corrente se opõe à teoria do desenvolvimento, que defende que os países “periféricos” avançarão do ponto de vista capitalista desde que comecem a desenvolver seu sistema produtivo, com a industrialização, por exemplo.

[3] A Terceira Internacional foi uma organização criada em 1919 que alinhou a teoria e a prática dos partidos comunistas (e alguns socialistas) de diferentes países ao programa estabelecido pelos bolcheviques – que dois anos antes haviam tomado o poder na Rússia – para levar adiante a revolução proletária em todo o mundo. Em congressos realizados ao longo dos anos, as diretrizes estabelecidas em 1919 foram sofrendo alterações, as principais delas a partir da ascensão de Stálin, em 1922. A Terceira Internacional foi dissolvida em 1943.

Roberto Schwarz

É crítico literário. Publicou, entre outros livros, Martinha versus Lucrécia (Companhia das Letras)

Cratera em Maceió provocada pela mineradora é do tamanho do Maracanã

Tragédia em Alagoas: interesses privados estão destruindo o Brasil

Empresa tem responsabilidade total pelo desastre em Maceió. "Pode ser o Chernobyl brasileiro", avalia geólogo da USP

Leia o clipping do site sobre a tragédia que está submergindo uma área enorme da capital alagoana (clique aqui)

o que há de novo?

Hamza Hamouchene, Outras Palavras

Teimosia e burrice: privatização da SABESP é prejudicial para a população e tornou-se capricho político de Tarcísio

Camila Bezerra (GGN)

Sabesp não precisa de privatização para universalizar o serviço que presta a São Paulo.Companhia tem mais de R$ 3,12 bilhões de resultado, dos quais 75% são reinvestidos em saneamento básico no Estado.


A greve contra a privatização do Metrô, CPTM e Sabesp, realizada em São Paulo nesta terça-feira (28), deve acabar sem acordo com o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos). 

Enquanto os sindicalistas pedem um plebiscito para votação popular, o governador afirmou que não adianta fazer paralisações, pois não haverá acordos sobre os projetos que ele defendeu ao longo da campanha eleitoral. 

Vale ressaltar que, antes da paralisação das linhas públicas de trens e metrôs, o sindicato ofereceu a operação com “catraca livre”, a fim de não impactar a população, mas Tarcísio rejeitou a proposta. 

Além da pressão popular, Tarcísio não admite que a Sabesp, na realidade, não precisa da privatização, uma vez que é uma companhia eficiente e lucrativa, como garante José Antonio Faggian, presidente do Sindicato dos Trabalhadores em Água, Esgoto e Meio Ambiente. 

Sem justificativa

À TVGGN, Faggian rebateu a justificativa usada pelo governador de São Paulo para entregar a Sabesp à iniciativa privada. 

Enquanto Tarcísio de Freitas argumenta que a venda da companhia mista, mas com controle estatal, agilizaria a universalização do acesso aos serviços de água e esgoto, o sindicalista garante que a empresa já está em vias de atingir este objetivo antes mesmo do prazo estipulado pela União. 

De acordo com o Novo Marco Legal do Saneamento Básico, os municípios e Estados devem garantir que 98% da população conte com o serviço de abastecimento de água e 90% tem de ter coleta e tratamento de esgoto. 

“Mantendo o atual nível de investimento da Sabesp, esta meta será atingida antes do prazo exigido pela lei, em 2029”, garante Faggian.

Referência mundial

Terceira maior empresa de saneamento do mundo, a Sabesp atende 375 municípios do Estado de São Paulo, o que representa 70% dos paulistas e 30 milhões de pessoas. 

Dos 375 municípios onde opera, a companhia já garante que 310 contem com o que Faggian chama de 300%: 100% de abastecimento de água, 100% de coleta de esgoto e 100% de esgoto tratado. 

A Sabesp é ainda responsável por um terço de todo o investimento em saneamento no País e investiu mais de R$ 5 bilhões na rede nos últimos anos. 

Faggian garante ainda que a companhia já fez o planejamento para universalizar os serviços no Estado e que, diante do volume de investimentos que a empresa de economia mista faz, a meta do Novo Marco do Saneamento será atingida sem que seja preciso vendê-la. 

Resultados

Mais que eficiente, a Sabesp é também lucrativa. Apenas em 2022, a companhia rendeu R$ 3,12 bilhões, dos quais 25% dos dividendos foram distribuídos aos acionistas, conforme a determinação da Comissão de Valores Mobiliários (CVM). 

“Os outros 75%, a Sabesp reinveste, o que permite que ela tenha este nível de excelência”, observa o presidente do Sindicato dos Trabalhadores em Água, Esgoto e Meio Ambiente. 

Manter a companhia sob a gestão do poder público ainda permite que a empresa pratique tarifas mais baixas e inclusivas. O preço cobrado pelo abastecimento de água em São Paulo é, em média, 112% menor que o praticado no Rio de Janeiro, cujo serviço foi recentemente privatizado. 

“A Sabesp tem ainda as tarifas social e vulnerável. Então, só na cidade de São Paulo, temos 4,6 milhões de ligações de água. Deste número, 11% são as tarifas vulneráveis. 510 mil famílias só no município de São Paulo atendidas pela tarifa vulnerável, que é R$ 15 para que a família tenha água e esgoto. Uma empresa privada jamais manteria um benefício desses”, conclui o entrevistado. 

leituras da 4a feira

 "O agronegócio banca a grande mídia brasileira"

Luis Idriunas, IHU

"Sua influência é fortíssima e tem um plano de comunicação explicito”, diz o editor e roteirista do “De Olho nos Ruralistas”

O agronegócio é conhecido por sua violência. O primeiro semestre deste ano foi o segundo mais violento no campo nos últimos dez anos, segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT). É frequente vermos esse setor exercendo influência sobre as forças policiais estaduais e locais para efetuar despejos e ameaças, e essa dinâmica também se reflete na mídia brasileira.

A prova disso, são as diversas pautas que representantes do agronegócio, como a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), conseguem ter nesses veículos. Podemos citar dois exemplos recentes: o terror feito para não criar taxas para o agronegócio na reforma tributária, falseando que geraria perda de empregos e fome, e o pedido de anulação das perguntas do Exame Nacional de Ensino Médio 2023 (ENEM), que abordavam a questão agrária e que na realidade foram elaboradas pelo governo anterior.


Na Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), durante o encontro da Escola Nacional de Comunicação Popular do MST, tivemos a presença de Luís Indriunas, editor e roteirista do “De Olho nos Ruralistas” e estudioso da comunicação e da questão agrária. Em entrevista para a página do MST, Luís ressaltou que vivemos uma guerra de narrativas na questão da terra. Nesse conflito o agronegócio utiliza seu poder de influência sobre a grande mídia para transformar seu discurso. Ele sugere que a denúncia e a simplificação da mensagem podem ser algumas de nossas ferramentas para confrontá-los.

A entrevista é de Douglas Fortes, publicada por Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), 27-11-2023.

Eis a entrevista.

Na sua opinião, qual é a importância de se discutir, estudar e elaborar sobre comunicação e tecnologia na atualidade?

Acho muito importante discutir a questão da terra na comunicação devido à guerra de narrativas que vivemos atualmente. O agronegócio tem sido muito forte nessa área. É fundamental entender as contradições e as falsas verdades deles, quebrar esses discursos, e, ao mesmo tempo, mostrar as alternativas. O agro, e não o agronegócio, é uma coisa super heterogênea com várias possibilidades, como é frequentemente feito pelo MST, especialmente na prática da agroecologia.

A comunicação desempenha um papel crucial nesse sentido. No embate político, apesar da relevância histórica da questão da terra no Brasil e ser um dos principais problemas do país, muitas vezes a questão agrária é diluída por outros debates no discurso político majoritário. É essencial sempre retomar a questão agrária, porque ela está em todo lugar. Ela é a razão do êxodo rural, da super urbanização e da fome no Brasil. Tem várias questões que estão aí, postas e que a gente não discute.

Como você enxerga a evolução do discurso do agronegócio? Existe uma tentativa de humanização com essa mudança no uso da palavra de agronegócio para Agro?

No contexto da cultura mainstream no Brasil, por muito tempo, houve a representação depreciativa do homem do campo, como o Jeca Tatu de Monteiro Lobato, retratando-o como alguém atrasado, pobre e na contramão da revolução industrial. Isso contrastava com a riqueza cultural absurda que tínhamos no campo brasileiro que não era vista, falando na perspectiva urbana.

Acho que podemos dizer que o governo militar já vislumbrava a mudança do discurso para a potência do campo e do agro. A história que o Brasil é o celeiro do mundo começa nos anos 50, toma força na ditadura militar e depois continua. Há uma tentativa atual de criar uma imagem moderna e tecnológica do agronegócio, cultivando certas tradições, um exemplo é a música sertaneja das rádios.

Existe uma clara preocupação em mudar a percepção sobre o agronegócio, apoiada por financiamentos constantes em propagandas e novelas. Ao mesmo tempo, apesar dos esforços para essa modificação, o brasileiro razoavelmente informado sabe do uso de agrotóxicos, dos problemas da monocultura, da especulação imobiliária absurda do agronegócio que permanecem como questões negativas que eles tentam reverter tornando um pouco bucólica a sua imagem.

Outra questão é que o agronegócio tenta suavizar essa impressão dura e ríspida que ele mesmo criou que é relevante para o mercado financeiro e para a Faria Lima, que exalta sua competência técnica. Enquanto isso, ele busca deixar a imagem do agronegócio mais humanizada, evitando o termo ‘agronegócio’ e se transforma em “agro é pop, é tech, é tudo”.

Qual é o tamanho da influência do agronegócio na mídia?

O agronegócio banca a grande mídia brasileira, sua influência é fortíssima e tem um plano de comunicação explicito. São diversos sites, programas de TV e campanhas publicitárias, como a “Agro é Pop” da Globo que fará 10 anos. Essa influência tem origem no próprio financiamento das mídias brasileiras e vem da própria lógica delas, que como a gente sabe, são altamente concentradas.

O discurso que se fazia muito antigamente, era assim, a mídia brasileira está na mão de quatro famílias. Isso ainda persiste. Elas são proprietárias de terra e do agronegócio, então está tudo muito imbricado e a influência do agronegócio é gigante. Como citei anteriormente, é só notar a quantidade de vezes que o agronegócio está presente em novelas e em diversos pontos da mídia.

Quem são as fontes jornalísticas com maior destaque nas entrevistas sobre agricultura nesses veículos?

Essa é uma questão muito forte na mídia em geral, fazendo um paralelo com o agronegócio, a fonte de muitas notícias econômicas são consultores de bancos X ou diretores de relações internacionais de banco Y. Então, quem acaba pautando a economia na mídia brasileira é o mercado financeiro e isso não é diferente com a agricultura.

Às vezes, nós vemos no noticiário o grande produtor de soja, porém apenas como personagem, porque o especialista é outro: o consultor do mercado financeiro. É essa fonte tradicionalíssima do jornalismo brasileiro que dita o que é importante, seja sobre o sucesso do agro ou decisões econômicas como manter os juros altos.

Você poderia nos dizer quem são os principais financiadores do “ir passando a boiada”?

A famosa frase do Ricardo Salles, falando para aproveitar que a atenção da mídia estava voltada para a Covid e a Amazônia para ir passando a boiada de reformas de desregulamentação do tema do meio ambiente e outros, há muito tempo é financiada e cada vez mais foi se sistematizando.

Hoje existe a FPA, a chamada bancada ruralista. Além disso, recebem apoio técnico e ideológico do Instituto Pensar Agro (IPA), financiado por pelo menos 48 associações de produtores rurais, mais de 1000 grandes proprietários e quase 100.000 pequenos proprietários ou médios produtores rurais que estão associados ao IPA, de forma indireta. Financiando as associações que sustentam o IPA, que dá respaldo para a FPA, por exemplo em ajustes de discursos e análise do que está sendo debatido.

O financiamento é claro, quem financia são as grandes empresas como Syngenta, Cosan, Bunge, grandes pecuarista e produtores de Soja, como a AproSoja, esses financiam junto com as cooperativas e com apoio indireto do pequeno produtor que entende que aquilo é para ele.

Fale um pouco sobre o levantamento que o “De Olho nos Ruralistas” fez sobre as reuniões do Ministério do Meio Ambiente no governo Bolsonaro?

Através de dados da agenda do governo tentamos mostrar onde e como o agronegócio estava mandando e quais as pautas prioritárias deles. Nos últimos três anos e meio do governo Bolsonaro, no Ministério do Meio Ambiente, que só não foi extinto por pressão da própria sociedade, foram mais de 700 reuniões com pessoas, empresas e associações ligadas ao agronegócio e apenas 3 ou 4 reuniões com movimentos sociais. É uma influência muito grande.

Qual é a importância da denúncia, da simplificação da mensagem e da soberania tecnológica para conseguir ser mais efetivo e alcançar mais pessoas?

A transformação da comunicação via redes sociais é um desafio atual. Enquanto a grande mídia continua pautando, as redes sociais apresentam uma linguagem direta e curta, por vezes difíceis de alcançar. Por exemplo, os discursos dos ruralistas de “indígena não faz nada” ou quando Bolsonaro afirmou “fui em um quilombo e não vi ninguém trabalhando”. São impactantes, embora falsos e vazios. A comunicação para promover uma sociedade mais justa precisa trabalhar muito os discursos diretos. Muitas vezes, por receio de ofender, de perder embasamento teórico ou de ser superficial, perde-se isso.

A denúncia é importantíssima, pois documenta e prova situações relevantes. Mesmo que aquele fato esteja sendo falado por todo mundo, se você não registra, ele não existe e será apagado da história. Denunciar revela quem manda no Brasil, quem são os donos da terra no país, como atuam na especulação imobiliária e no libera geral de agrotóxicos. É papel da mídia independente e dos movimentos sociais denunciar para expor e romper cercos para pautar a sociedade e a grande mídia.

O massacre de Eldorado dos Carajás foi um marco para a luta pela terra, uma das primeiras vezes que se mostrou nacionalmente o extermínio de camponeses pelas PMs [Policias Militares]. Foi uma denúncia viva, algo que se encontrava só em livro de história ou em notinha de jornal. A tecnologia, especialmente celulares, se tornou uma ferramenta poderosa para denúncias. Publicamos frequentemente vídeos do campo capturados por celulares, como recentemente, um que documentava o roubo de água de um rio por uma fazenda. Hoje temos várias formas de denunciar usando a tecnologia.

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Principais vozes do Judiciário elogiam escolhas de Dino e Gonet por Lula

Rede Brasil Atual

Para Barroso, ambos os nomes são escolhas “felizes”. Alexandre de Moraes afirmou que são “dois grandes juristas e competentes homens públicos”

São Paulo – As repercussões da indicação do ministro da Justiça, Flávio Dino, para o Supremo Tribunal Federal (STF) são bastante positivas por parte dos principais representantes dos poderes Judiciário e Legislativo. Resumindo a carreira de Dino, o presidente do STF, Luís Roberto Barroso, teceu elogios ao futuro ministro da “mais alta Corte” do país, dizendo que ele “foi um conceituado juiz de carreira, já foi secretário-geral do Conselho Nacional de Justiça, foi um bem avaliado governador do Maranhão”.

“De modo que, se essa for a escolha do presidente, eu acho que é uma escolha feliz, de uma pessoa preparada, e eu pessoalmente quero muito bem a ele”, declarou Barroso, ainda antes de oficializada a indicação. O presidente usou o mesmo adjetivo para falar da então provável escolha do Paulo Gonet para a Procuradoria-Geral da República (PGR), depois confirmada, e disse que também seria uma “escolha feliz” de Lula.

O ministro Alexandre de Moraes, do STF e presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), igualmente não poupou palavras elogiosas a Gonet e Dino. “O presidente Lula indicou dois grandes juristas e competentes homens públicos para o Supremo Tribunal Federal e para a Procuradoria-Geral da República”, disse Moraes nas redes sociais. Segundo ele, ambos são “escolhas sérias e republicanas” e contribuirão para o “fortalecimento de nosso Estado Democrático de Direito”.

Cármen Lúcia, solitária

Após a aposentadoria da ministra Rosa Weber, em setembro, com a nomeação de Dino o STF passará a ter daqui para a frente apenas uma mulher em seus quadros, a ministra Cármen Lúcia. Ela foi a segunda mulher a ocupar tal posto. A primeira foi a ex-ministra Ellen Gracie Northfleet.

Barroso comentou esse aspecto da indicação de Dino. “Todo mundo sabe que eu defendo a feminilização dos tribunais, mas no caso do Supremo é uma prerrogativa do presidente da República e acho que ele escolheu um ex-juiz de qualidade”, enfatizou o presidente do Supremo ao sair da 24ª Conferência Nacional da Advocacia Brasileira, em Belo Horizonte.

“O presidente Lula me honra imensamente com a indicação para Ministro do STF. Agradeço mais essa prova de reconhecimento profissional e confiança na minha dedicação à nossa Nação”, postou Flávio Dino no Twitter. “Doravante irei dialogar em busca do honroso apoio dos colegas senadores e senadoras. Sou grato pelas orações e pelas manifestações de carinho e solidariedade.”

Também indicado por Lula este ano, para ocupar a vaga de Ricardo Lewandowski, o ministro Cristiano Zanin divulgou nota. “Saúdo a indicação do ministro Flávio Dino ao Supremo Tribunal Federal e o seu retorno ao Poder Judiciário, com a certeza de que sua experiência no exercício de cargos dos Três Poderes da República contribuirá de sobremaneira aos debates dos mais relevantes temas constitucionais no Plenário desta Suprema Corte”, afirmou.

Sabatina em breve, promete Pacheco

O presidente do Senado e do Congresso Nacional, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), foi discreto, mas prometeu que Gonet e Dino serão sabatinados em breve, provavelmente ainda este ano. As duas nomeações precisam ser aprovadas na Comissão de Constituição e Justiça e no plenário do Senado.

“Indicações são prerrogativas do presidente. Cabe a nós aferir os requisitos de cada um”, disse a jornalistas. Ele contou ter recebido uma ligação de Lula para informá-lo previamente das escolhas, e garantiu que dará “o encaminhamento devido à CCJ”.

O senador esclareceu ainda que a intenção é promover um “esforço concentrado” no Senado entre 12 e 15 de dezembro, já que a análise dos nomes ao STF e PGR se dá com a presença física dos indicados e por voto secreto presencial. Na próxima semana será difícil, disse ainda, devido à conferência do clima nos Emirados Árabes, com a presença de Lula e do próprio Pacheco, que viaja a convite do presidente.

Flávio Dino e o notável saber político

Rafael Mafei (piauí)

O ministro de Lula se saiu vitorioso numa disputa que envolveu figuras do Centrão, do PT e do Supremo, e na qual o direito ficou em segundo plano

As indicações de Flávio Dino para o Supremo Tribunal Federal (STF) e de Paulo Gonet para a Procuradoria-Geral da República (PGR) não pegaram ninguém de surpresa. Pelo contrário, confirmaram uma tendência: a indicação para os mais altos cargos jurídicos do país está cada vez mais parecida com a indicação para cargos de governo. O presidencialismo de coalizão, com o Centrão, com tudo, chegou ao Judiciário – poder que também tem coronéis, ciosos de emplacar seus apadrinhados em cargos na Justiça e nos demais poderes. A disputa por uma indicação ao STF não escapa a essa lógica, o que distorce o requisito de “notável saber jurídico” previsto na Constituição.

Elites jurídicas e políticas sempre estiveram ligadas por vasos comunicantes, mas nunca de forma tão aberta. Durante todo o tempo em que o nome de Dino foi especulado para o Supremo ao lado de outros “candidatos” – no caso, Jorge Messias, advogado-geral da União, e Bruno Dantas, presidente do Tribunal de Contas da União (TCU) –, o debate público girou quase que exclusivamente em torno dos apoios e das resistências a cada um deles no governo, nos partidos, no Congresso e no Judiciário. Um observador atento do noticiário já terá decorado: Dino contava com a simpatia pessoal de Lula, mas não agradava tanto ao Senado e ao PT; Messias era mais próximo de Dilma do que de Lula, mas tinha o apoio do partido do presidente; e Dantas era o favorito da classe política e dos ministros do Supremo que se permitem pular de cabeça no jogo das indicações, Gilmar Mendes à frente. 

Não era tão simples, porém, dizer o que os candidatos pensavam sobre temas jurídicos importantes, que são o objeto principal do trabalho de um ministro do STF. Isso vale inclusive para Dino, ministro da Justiça e Segurança Pública, cujas posições recentes não têm como ser diferenciadas da agenda do governo Lula, ao qual ele serve. Seu nome ganhou força, na reta final, por motivos estritamente políticos: o senador Jaques Wagner (PT-BA), um dos principais apoiadores de Jorge Messias, se indispôs com o STF depois de votar a favor da PEC que restringe as decisões monocráticas do tribunal. O advogado-geral da União, consequentemente, perdeu força. Dino foi quem sobrou de pé ao final de um tiroteio em que os próprios ministros do Supremo atuaram como pistoleiros. 

Há certamente outros fatores na balança. Alguns analistas dizem que Lula, ao colocar Dino no STF, eliminou um potencial adversário na disputa pelos votos da esquerda em 2026. Seja como for, é tudo política. O pensamento e a qualidade técnica dos “supremáveis” tornaram-se detalhes desimportantes. Isso não é de hoje, nem começou com Lula, pois, se vale para Cristiano Zanin, vale também para André Mendonça e Kássio Nunes, além de indicados por Fernando Henrique Cardoso. É coletiva a obra que enterrou o notável saber jurídico como critério para o STF.

O problema que daí resulta é evidente: o Supremo, como tribunal de cúpula, deveria ser a bússola de todo o Judiciário brasileiro, oferecendo respostas para os assuntos mais difíceis e complexos, às quais só é possível chegar por meio do esforço de juristas de alta capacidade, imbuídos do objetivo comum de extrair o melhor sentido das leis e da Constituição. Esse papel de liderança não pode ser cumprido por um tribunal cuja composição seja determinada, na prática, pelo mesmo tipo de jogo que orienta o preenchimento de quaisquer outros cargos políticos.

Nós, do direito, sempre acreditamos que a exigência do notável saber jurídico seria um dos mecanismos pelos quais a nossa comunidade (o “campo jurídico”) se protegeria da política. O presidente da República faria a indicação, o Senado a sabatina, mas só nós controlaríamos os parâmetros do tal “notável saber”, da mesma forma que só quem joga e conhece futebol é capaz de detectar um verdadeiro craque. É algo que pressupõe um ponto de vista interno, um olhar de quem vivencia a prática. Por mais que a escolha de um novo ministro coubesse a políticos, ela seria limitada a candidatos ungidos com uma distinção reputacional que só a comunidade jurídica poderia conferir.

Longe de ser um fetiche dos juristas, a independência do Judiciário em relação à política é um pilar importante do que chamamos de estado de direito. Não foram poucas as ditaduras que se valeram do controle sobre as leis, da subjugação do ensino jurídico e da colaboração de juristas para cometer crimes contra a humanidade. O direito que oscila como biruta de aeroporto, seguindo os ventos da política, torna-se instável, imprevisível e arbitrário, incapaz de entregar a segurança que dele se espera. Desde os primeiros anos da faculdade, somos instruídos a desconfiar de qualquer arranjo que subjugue as instâncias do Judiciário àquelas em que o poder político e econômico fatalmente vencerá.

O “notável saber jurídico”, tal qual a “reputação ilibada” exigida pela Constituição, deveria garantir que a mais importante das instituições de Justiça, o STF, fosse ocupada por pessoas dotadas de virtudes intelectuais e morais suficientes para agir com coragem e altivez diante de ameaças e tentativas de cooptação. 

Astutamente, porém, as elites políticas passaram a produzir elas próprias certificados de notoriedade jurídica. Há uma infinidade de cargos, posições honoríficas e distinções que hoje são tomadas como indicativos de excelência jurídica, mas cujo acesso é inteiramente controlado por quem tem poder político.  

Todos os candidatos que disputaram a atual vaga do STF construíram sua notabilidade jurídica por meio de cargos e posições políticas. Dino atuou como juiz federal durante mais de dez anos, mas o que garantiu sua indicação ao Supremo foi seu trabalho como parlamentar, como governador do Maranhão e, mais recentemente, como ministro de Estado, destacando-se nas reações ao 8 de janeiro. Tornou-se estrela de oitivas parlamentares, de onde saem os clipes que o tornaram um político de imensa popularidade digital. Jorge Messias, funcionário de carreira da AGU, entrou para o páreo por ter ocupado cargos de confiança sob Dilma e Lula. Bruno Dantas, embora tenha atuação acadêmica, fez carreira na consultoria legislativa do Senado e, de lá, pulou para instâncias nas quais os políticos escolhem juristas de sua preferência: Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), Conselho Nacional de Justiça (CNJ), e por último o Tribunal de Contas da União (TCU), onde teve participação de destaque em muitos episódios da política nacional na última década. 

É possível ainda pensar em outras formas de distinção jurídica politicamente outorgadas, como a participação na elaboração de anteprojetos legislativos (que se dá por meio de convite parlamentar) ou a nomeação para cargos de assessoria jurídica no governo. Lá na frente, quando os políticos tiverem de apontar algum “notável saber jurídico” para mostrar que atenderam ao que pede a Constituição, é esse tipo de experiência que eles invocarão. Tudo isso contribui para a subordinação de “juristas” aos donos do poder, aos quais o direito precisaria ser capaz de se impor.

Tornou-se comum a crítica, justa, à falta de representatividade na cúpula do Judiciário. Ao menos até pouco tempo atrás, em São Paulo, havia mais desembargadores chamados Luís/Luiz do que desembargadoras mulheres. Só no Supremo, são quatro. Lula pode respirar aliviado porque Dino, ao menos, é Flávio. Aos Luíses do futuro, uma dica: poucas coisas aumentarão tanto suas chances de chegar à elite do Judiciário quanto fazer carreira em Brasília, de preferência servindo a quem, dali a pouco, lhe premiará a pretexto da notoriedade intelectual que ela própria lhe outorgou.

Rafael Mafei

É advogado e professor de Direito na USP e na ESPM. Publicou Como Remover um Presidente: Teoria, História e Prática do Impeachment no Brasil (Zahar)

Contra as privatizações! Resgatar o papel do Estado como fundamento do bem-estar social

Nem a Folha de S. Paulo, um jornal sabidamente neoliberal, consegue disfarçar o mal-estar que as políticas de transferência do patrimônio público para os interesses privados têm provocado. É só olhar em volta para observar o crime cometido sistematicamente contra o bem-estar social em nome de um modelo que pauperiza a sociedade e precariza a vida em todos os sentidos, na Energia, nos Transportes, na Saúde, na Educação, na Habitação. Nem os cemitérios escaparam da sanha predatória da cobiça dessa gente. Por que? A resposta não é tão complicada quanto a tecnocracia privatista nos quer fazer crer: o empresariado brasileiro é uma casta parasitária desprovida de qualquer projeto de crescimento econômico que se faça no âmbito das próprias regras do capitalismo: investimento, produtividade, crescimento do perfil da renda proveniente do trabalho, consumo, desenvolvimento. Acomodada a um modelo que lhe assegura uma forte acumulação de capital em decorrência dos níveis de concentração da renda localizados no topo da pirâmide social brasileira, essa burguesia se empenha na consagração de um sistema: o da radical transferência da riqueza gerada pelo trabalho para as suas mãos. A receita é a de sempre: aniquilar o Estado e acabar com o que resta das garantias mínimas da sociabilidade que uma sociedade moderna reclama. Os agentes desse processo estão aí... e é contra eles e contra a sua capacidade de formular políticas dessa natureza que os movimentos sociais devem atuar.

Privatiza que melhora? Enel e Via Mobilidade alertam para os riscos da privatização da Sabesp

A privatização em áreas estratégicas traz uma contradição difícil de ser transposta: o que vem primeiro, o lucro da concessionária ou a necessidade de realizar investimentos permanentes?

Orlando Silva, Carta Capital (ouça e leia aqui)

pensatas do fim de semana

Pedro Menezes:

Grupos de comunicação criticaram o governo e Haddad sem transparência sobre seus próprios benefícios

247

Mário Vitor Santos: 

"Os controladores do Estadão são o consórcio do capital financeiro credor do falido grupo de comunicação" 

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Em busca de uma técnica para o pós-capitalismo

Aaron Benanav, Outras Palavras

E se a IA e outras inovações estimulassem lógicas opostas às de mercado? Um sociólogo sustenta: mudança é possível – em especial em áreas como Trabalho e Educação. Mas é preciso superar a busca cega pela “eficiência” capitalista


Aaron Benanav, Sociólogo e historiador da economia, é professor do Departamento de Sociologia da Universidade de Siracusa, Itália, entrevistado por Amelia Horgan para Common Wealth | Tradução Maurício Ayer

Não é a dificuldade do trabalho, nem exatamente o seu volume, que massacra os trabalhadores atualmente, mas sobretudo a falta de sentido no que se faz – afirma o sociólogo Aaron Benanav. No entanto, analisa ele, a fragmentação, a falta de autonomia e a impossibilidade de decidir o que e como produzir são fatores que poderiam ser profundamente transformados com a apropriação, pelos trabalhadores, dos mesmos meios tecnológicos que hoje são usados da submetê-los.

Essa análise, que devolve à dimensão do poder – logo da política – a primazia sobre o aspecto tecnológico, é fruto de pesquisas que Benanev tem dedicado a entender a situação do trabalho no contexto das transformações tecnológicas do mundo contemporâneo. Em sua coluna na New Left Review e em livros como Automation and the Future of Work [Automação e o futuro do trabalho], ele analisa o atual estágio do capitalismo e desvenda alguns dos mecanismos que o sustentam. Por exemplo, ele procura dar uma resposta à frustração da expectativa de que desenvolvimentos tecnológicos – como a inteligência artificial – tornariam o trabalho obsoleto, enquanto hoje o que observamos é, pelo contrário, um aumento das horas trabalhadas e a deterioração das condições laborais, dos salários e dos direitos. Isso passa por entender por que, mesmo sem base real, continua-se a crer no fundamento da tecnocracia, a “ideia de que um pequeno grupo de pessoas inteligentes possa apresentar soluções que vão chegar para consertar tudo”, como sintetiza Benanav. “Na verdade, as empresas tecnológicas estavam inventando tecnologias que ainda dependiam de pessoas trabalhando e que muitas vezes incorporavam novas formas de vigiar e gerir os trabalhadores e manipular os consumidores”, diz o sociólogo. 

Nesta entrevista, o pesquisador argumenta que, ao contrário do que se crê, hoje os aportes tecnológicos não trazem grandes ganhos de produtividade, diferente do que se observou no setor industrial em séculos passados. Um robô normalmente é usado para carregar um peso muito grande, mas não produz um ganho de escala significativo. Talvez aí haja um ponto cego para a esquerda global, inclusive os movimentos sindicais: as lutas têm dificuldade de incorporar mudanças qualitativas nas condições de trabalho e priorizam as lutas salariais – relacionadas com a lógica da eficiência –, pois sobre essas constroem-se consensos mais facilmente. Mas o resultado tem sido deixar de lado questões estratégicas – e mesmo decisivas. Mais que trazer ganhos de produtividade, as tecnologias hoje são usadas para aumentar o controle do capitalista sobre os trabalhadores e, com grande ênfase, em fragmentar o trabalho, praticamente bloqueando as dinâmicas sociais que favorecem a formação de vínculos de classe. 

É com essas questões no horizonte que a esquerda e os movimentos sociais precisariam se apropriar de ferramentas como a IA e repensá-las por uma lógica que tenha como objetivo não a “eficiência”, que na prática significa nortear a produção exclusivamente pela ampliação do lucro dos acionistas das empresas, mas sim buscar melhorias concretas nas condições de trabalho e no poder de decisão das pessoas sobre o seu trabalho. 


Amélia Horgan: O que é a teoria da automação conforme você a descreve em Automation and the Future of Work [Automação e o futuro do trabalho] (Verso, 2020)?

Aaron Benanav: Na década de 2010, havia muito entusiasmo com a ideia de que as novas tecnologias – digitalização, conectividade à Internet, robôs, automação e inteligência artificial – iriam acabar com o trabalho tal como o conhecemos. O Vale do Silício deveria nos lançar em um tipo totalmente novo de existência humana – um mundo pós-escassez. No final da década de 2010, e certamente em 2018, assistimos ao início de uma grande reação contra o Vale do Silício, baseada num reconhecimento crescente de que, na realidade, os empregos não estavam desaparecendo devido à automatização. Na verdade, as empresas tecnológicas estavam inventando tecnologias que ainda dependiam de pessoas trabalhando e que muitas vezes incorporavam novas formas de vigiar e gerir os trabalhadores e manipular os consumidores. Esse momento também abriu uma questão política sobre o que estas novas tecnologias podem fazer e para fazer o que serão utilizadas se as empresas puderem explorá-las sem restrições. Será que estamos caminhando para um mundo em que a tecnologia liga as pessoas de uma forma que lhes facilita o trabalho conjunto de uma forma democrática, ou as tecnologias serão utilizadas de uma forma que separa e atomiza os trabalhadores e torna muito mais difícil para eles se organizarem e construirem solidariedade?

AH: Por que a tese do fim do trabalho pela automatização, apesar da possibilidade de estar errada, tem tanto apelo?

AB: Em primeiro lugar, há uma espécie de mentalidade moldada por uma Mecânica Popular, que muita gente ainda tem, a de que o que faz a nossa sociedade avançar e mudar é a tecnologia. Quando ficamos pessimistas quanto às oportunidades de mudança social, recorremos à tecnologia para nos levar a um lugar mais feliz, especialmente quando desconfiamos do poder, da política e da capacidade de outras pessoas de nos conduzirem nessa direção. Penso que o entusiasmo pela tecnologia está relacionado – embora nunca tenha descoberto exatamente como descrever isto em pormenores precisos – à crença na tecnocracia, à ideia de que um pequeno grupo de pessoas inteligentes possa apresentar soluções que vão chegar para consertar tudo. Romper essas crenças é realmente danoso para muitas pessoas. Penso muito sobre isso em relação às teorias da conspiração – sobre a Covid-19 e até mesmo sobre o 11 de Setembro em uma época anterior. O que acontece quando as pessoas que acreditavam que as tecnologias e a tecnocracia iriam salvá-las perdem a fé nessas entidades e começam a acreditar que elas podem estar fazendo mais mal do que bem?

AH: Por que, apesar de toda a aparente maravilha que são as tecnologias – as incríveis e esplendorosas tecnologias que temos, afinal todos podemos ter conversas pelo Zoom, ter iPhones e usar o ChatGPT –, a história de que a automação vai acabar com o trabalho está errada?

AB: Existem duas maneiras de abordar essa questão. Em meu livro, abordei o tema por uma perspectiva econômica. As estatísticas econômicas ajudam-nos a ter uma melhor noção da rapidez com que as novas tecnologias são adotadas em toda a economia. O que essas estatísticas mostram, sem dúvida, é que a adoção dessas tecnologias está ocorrendo de forma muito lenta e gradual e que realmente não vivemos numa época de transformação econômica particularmente rápida. Vivemos numa era de quase estagnação econômica, definida por uma surpreendente ausência de mudanças tecnológicas rápidas e de base ampla — pelo menos do ponto de vista econômico. Esse é um problema que as pessoas têm tido muita dificuldade em entender. Na minha opinião, em última análise, tem a ver com o fato de muitas das tecnologias geniais do passado terem sido aplicadas para transformar o setor industrial; o setor industrial foi concebido e preparado para esta transformação porque é um ambiente inteiramente criado pelo homem, no qual as pessoas realizam tarefas muito repetitivas. Como tal, está realmente preparado para um rápido crescimento da produtividade, economias de escala e todo esse tipo de coisas. Mas, desde a década de 1970, a economia industrial tem diminuído em termos de emprego, e temos assistido ao crescimento de um enorme setor de serviços, que é definido por taxas muito baixas de crescimento da produtividade – é muito difícil utilizar a tecnologia para tornar essas atividades mais eficientes. À medida que a economia se desloca para os serviços, todas as tecnologias geniais que estamos desenvolvendo não se difundem na economia da forma que as pessoas esperam. Nem sequer estão se difundindo pela indústria de transformação da forma que as pessoas esperavam, porque a indústria de transformação tem sofrido com o fato de cada vez mais empresas e cada vez mais países estarem lutando para produzir o mesmo tipo de coisas.

Na década de 2010, quando Vale do Silício falava dessa nova era de robôs e de como iriam transformar tudo, o setor industrial nos EUA tinha um crescimento de produtividade nulo; foi a pior década para o crescimento da produtividade desde que se começou a contabilizá-la. Essa é uma maneira de dizer que a história da automação não está funcionando – sabemos que realmente não está funcionando porque não conseguimos vê-la funcionar nas estatísticas econômicas.

Mas há uma segunda abordagem, que tem sido seguida de forma mais produtiva por um grupo do MIT, o grupo Work of the Future [Trabalho do Futuro]; ela consiste em ir ver como essas tecnologias estão sendo implementadas na produção e observar os seus limites – não apenas de uma perspectiva econômica, mas de uma perspectiva tecnológica. Apesar do incrível crescimento no uso de robôs, a maioria dos robôs é usada para realizar um número muito pequeno de tarefas em apenas alguns setores; a maioria dos robôs é usada para mover coisas pesadas de um lugar para outro. O robô Kiva, nos armazéns da Amazon, transporta coisas muito pesadas de um lugar para outro. Os robôs também são usados ​​para fazer coisas como soldar peças de metal, pintar e cortar.

Em geral, os tipos de tarefas nos quais os robôs estão sendo usados atualmente são os mesmos onde costumavam estar antes. Muitas das novas tecnologias que entusiasmam as pessoas – a Internet das Coisas, robôs colaborativos, todo esse tipo de coisas – não foram adotadas por razões técnicas. E, em muitas pequenas e médias empresas, que representam uma parte muito substancial da produção, basicamente não existem robôs, porque, mesmo com a queda dos preços, ainda é muito caro programar robôs. Se você trabalha em um setor que exige muitas personalizações, é muito caro reprogramar esses robôs continuamente.

As tecnologias de IA também sofrem de problemas técnicos na sua utilização. Muitos dos grandes avanços ocorreram nos processos de linguagem natural – é nisso que o ChatGTP é bom –, mas esses avanços aconteceram porque os pesquisadores de IA abandonaram o esforço para fazer com que os computadores entendessem a lógica e pensassem de maneira racional. As novas tecnologias estão ficando muito boas em fluência, mas, até certo ponto, são fluentes em besteiras. Quando você faz perguntas que exigem raciocínio simbólico, como questões de matemática ou de lógica, ou mesmo pede que gerem estudos e citações, eles não entendem o que isso significa. Eles não entendem a diferença entre o que é real e o que não é real, então tendem a gerar muitas coisas que simplesmente não são verdadeiras. Não há como as tecnologias atuais resolverem esses problemas. Existem muitos campos na vida em que ser fluente em besteiras é uma ótima habilidade, e ter computadores fluentes em besteiras melhorará a produtividade em alguns setores limitados da economia, mas às vezes o que é necessário é o raciocínio real – a programação de software tradicional, por exemplo, provavelmente ainda será a principal forma de programarmos sistemas.

AH: ChatGPT é divertido de brincar. É muito bom saber qual palavra deve vir a seguir, como conhecer a mecânica de uma música pop.

AB: É isso que ele faz – é programado para prever a próxima palavra ou uma palavra que falta ou uma sequência de palavras, e então dá-se a ele muita internet e um algoritmo complexo para prever a próxima palavra. Mas isso é tudo o que ele faz. Ele não tem lógica.

AH: O que você acha do pânico generalizado entre os professores universitários e, presumivelmente, também das escolas sobre o uso do Chat GPT pelos alunos?

AB: Isto está relacionado com questões relativas ao nosso sistema educativo em geral, penso eu. O nosso sistema educativo está tão desatualizado – é um sistema concebido, na sua maior parte, para convencer as crianças camponesas a tornarem-se operários nas fábricas, e não é muito bom para motivar as pessoas. Muitos estudantes aprendem com o sistema educativo que não serão recompensados ​​por desenvolverem as suas próprias motivações internas para estudar, aprender e explorar, mas que serão recompensados ​​por produzirem tudo o que os professores lhes dizem para produzir. Tecnologias como o ChatGPT podem levar a uma crise produtiva do sistema de educação e que, assim espero, leve as pessoas que controlam as instituições educativas a ouvir os pesquisadores que estudam educação e, assim, a considerar quais os melhores métodos disponíveis. Ninguém acha que o atual sistema de avaliação é bom, por exemplo. Ele incentiva o tipo de respostas mecânicas e desmotivadas que o ChatGPT é bom em produzir.

AH: O pânico parece então referir-se a um conjunto real de crises. Uma delas diz respeito à falta de confiança dos professores nos alunos e vice-versa, mas também ao paradoxo estrutural que você está descrevendo.

AB: Em um sistema que fosse bom em motivar as pessoas a quererem aprender, o ChatGPT e coisas semelhantes seriam ferramentas incríveis. Mas num sistema em que se pede às pessoas que finjam estar interessadas, são perigosas. Espero que produza mudanças positivas. Acho que é uma ferramenta interessante e não acho que o fato de estar apenas inventando coisas a maior parte do tempo signifique que não será útil para as pessoas de nenhuma maneira.

AH: Nos debates sobre o trabalho, as questões da qualidade e da quantidade do trabalho são frequentemente separadas, apesar da sua interligação tanto conceitual como histórica. Através de que tipo de quadros práticos ou teóricos essas questões poderiam ser combinadas, se é que deveriam ser?

AB: Em todo o mundo, existe um velho problema que é não haver trabalho suficiente. Ao mesmo tempo, tem havido um impulso político para reformar os subsídios de desemprego e reduzir o acesso à assistência social e, em geral, criar um ambiente no qual as pessoas precisam de trabalhar para sobreviver. Essa procura frenética de trabalho e a insegurança no emprego incentivam então a qualidade do emprego a cair. Exceto quando se trata de trabalhadores altamente qualificados, como programadores de computador, os empresários não precisam prestar atenção às necessidades dos trabalhadores. Parte da questão aqui é que é difícil saber como medir quantos empregos existem precisamente porque a economia está repleta de empregos de baixa qualidade, dos quais as pessoas entram e saem. Nos EUA, temos taxas de desemprego muito baixas. Mas, ao mesmo tempo, o número de pessoas empregadas continua a crescer, porque as pessoas passam diretamente da condição de estarem fora da força de trabalho para a de estarem empregadas, sem passarem por uma fase em que sejam contabilizadas como desempregadas.

Um aspecto importante a observar é a parcela do rendimento do trabalho, que funciona como uma medida global do equilíbrio de forças entre capital e trabalho. Há muito tempo que essa tendência tem diminuído em muitos países. Quando olhamos para estatísticas como esta, deveríamos pensar nelas como algo que nos fornece informação qualitativa. Porque quando os trabalhadores estão numa posição de negociação fraca, em termos de salários, também abdicam de muito em termos da qualidade do trabalho: tempos de pausa e segurança, perdem a capacidade de moldar a forma como as novas tecnologias são implementadas no seu local de trabalho (nos últimos meses, surgiram evidências de que os trabalhadores com salários mais baixos nas áreas urbanas viram o seu poder de negociação melhorar no rescaldo da crise da Covid, embora esta situação seja provavelmente temporária).

Nestas condições, os trabalhadores tiveram muito mais dificuldade em lutar para melhorar a qualidade do trabalho. Quanto à forma de reunir novamente as lutas relativas à quantidade e à qualidade do trabalho, penso que o que todos sabem é que um mundo onde os trabalhadores tenham mais poder de deixar o emprego, um mundo onde exista um rendimento básico ou subsídios de apoio aos desempregados muito mais fortes, bem como sindicalização e direitos de negociação coletiva mais fortes — uma situação com maior poder de saída e voz —, seria uma situação em que os trabalhadores teriam muito mais poder para moldar a qualidade do trabalho.

Há pesquisadores, principalmente no Reino Unido, que fizeram um trabalho muito bom ao pensar sobre quais são as qualidades do trabalho que as pessoas realmente desejam. Precisamos de um foco positivo nos tipos de qualidades de trabalho que as pessoas exigiriam – se tivéssemos mais poder, seja pela regeneração econômica ou por instituições políticas e trabalhadores capacitados.

Parte da razão pela qual isso é tão difícil é que exigências como aumentos salariais são coisas com as quais todos podem concordar, por isso os sindicatos têm historicamente enfatizado as exigências salariais em detrimento de outras exigências, especialmente para o que costumava ser chamado de “controle do chão de fábrica” (derrotas nas principais lutas sindicais no início do período pós-guerra também foram essenciais nesse caso). O dinheiro parece cobrir muitas das causas dos problemas que as pessoas enfrentam — como licença maternidade inadequada, cuidados com as crianças ou aluguéis altos —, mas há uma complexidade na vida de trabalho e não-trabalho das pessoas, há tantas situações diferentes em que as pessoas se encontram, que indicam uma gama mais ampla de mudanças qualitativas no trabalho que elas poderiam desejar, e as organizações trabalhistas que temos hoje efetivamente não foram concebidas para lidar com essa complexidade e diferenciação.

AH: Como poderia uma agenda de trabalho democratizante ajudar a melhorar os direitos de deixar o trabalho e de voz?

AB: Autonomia no trabalho, ou seja, estar no controle do seu trabalho, é uma das qualidades que leva as pessoas a gostarem mais do que fazem. A democratização do trabalho pode parecer um grande projeto coletivo que, em última análise, trata da negociação coletiva a nível da indústria, mas também deveríamos nos interessar por questões relacionadas com o quanto as pessoas, enquanto indivíduos, se sentem capacitadas a tomar decisões por si próprias. Experimentos em empresas autogeridas indicam para formas interessantes de pensar o que significa democratizar o trabalho, em que a democracia não é indexada pelo número de reuniões que você tem, mas talvez pelo número de reuniões que você não precisa realizar porque há mais confiança e conexões informais entre os trabalhadores para descobrir como resolver os problemas.

AH: Como é que o debate sobre planejamento se relaciona com a democracia no trabalho? Que tipo de ferramentas seriam necessárias para planejar melhor o trabalho a nível empresarial e a nível social?

AB: Existe uma conexão muito forte entre os dois. Um mundo onde as pessoas tivessem mais opções de sair por conta de uma renda básica universal ou de serviços básicos universais, e no qual não fossem obrigados a trabalhar, seria um mundo em que as pessoas precisariam ser motivadas de forma diferente para realizar os tipos de trabalho que são necessários para a sociedade. Que tipos de motivação estão disponíveis para as pessoas trabalharem quando não elas não precisam fazê-lo? As pessoas que mais gostam de trabalhar geralmente consideram o trabalho intrinsecamente gratificante. Existe um equívoco comum de que um trabalho inerentemente gratificante deve ser divertido ou agradável, pois uma boa parte desse trabalho é chata e difícil. Acredito que a chave para fazer com que o trabalho valha a pena tem menos a ver com o conteúdo desse trabalho, embora isso também seja importante, e mais a ver com a forma como o trabalho é realizado. Se sentirmos que temos muito controle sobre a forma como fazemos o trabalho, se conseguirmos utilizar as competências que desenvolvemos e, principalmente, se sentirmos que o trabalho é importante, quer para nós, quer para outras pessoas, então iremos encontrar muitas razões para trabalhar, mesmo que não precisemos trabalhar para sobreviver. Penso que descobriríamos que não é possível tornar o trabalho inerentemente valioso para a grande maioria das pessoas sem democratizá-lo de uma forma muito substancial.

A democratização do trabalho permitiria, fundamentalmente, que as pessoas fossem capazes de propor mudanças na forma como trabalham. As mudanças que as pessoas proporiam seriam, evidentemente, não apenas orientadas para tornar esse trabalho mais eficiente, mas também para tornar o trabalho mais significativo, aumentar a autonomia dos trabalhadores ou encontrar formas de as pessoas poderem trabalhar em conjunto que não pareçam incluir tanto trabalho penoso – ou envolvimento e esforço sem sentido (os trabalhadores também proporiam formas de transformar o trabalho para torná-lo mais sustentável do ponto de vista ambiental ou para promover ligações significativas numa comunidade mais ampla). Existem limites reais para quantas mudanças desse tipo podem ser implementadas numa sociedade capitalista. As sociedades capitalistas abrem espaço para que alguns trabalhadores tenham um maior grau de controle sobre a forma como o seu trabalho é feito, mas apenas em situações em que os trabalhadores são muito procurados e quando é muito difícil controlá-los. Tomemos, por exemplo, os programadores de computador no Vale do Silício, ou os professores na era de ouro do crescimento da universidade, ou aqueles muitos exemplos famosos da Suécia no final dos anos 80, quando tinham um mercado de trabalho muito apertado e muitos problemas com o absenteísmo.

Há momentos em que as empresas capitalistas sentem que estão a enfrentar problemas reais em reter trabalhadores, especialmente trabalhadores qualificados, e depois as empresas concentram-se na melhoria da qualidade do trabalho. Mas fora dessas condições muito raras, as empresas capitalistas geralmente não conseguem fornecer e não fornecem esse tipo de ambiente. Grande parte da razão disso é que essas empresas têm de promover a eficiência, acima de tudo – seja por causa da concorrência seja por exigência dos acionistas. Não querem que as exigências dos trabalhadores por um trabalho de melhor qualidade ou por um trabalho mais seguro perturbem a mais ampla liberdade possível dos gestores organizarem o trabalho da forma mais eficiente e, portanto, mais lucrativa.

Existem limites realmente fortes para até onde pode chegar algo como a democratização do trabalho numa sociedade capitalista, mas mesmo numa sociedade capitalista, vemos momentos excepcionais, vislumbres do que esse trabalho democrático poderia alcançar em termos de tornar o trabalho mais autônomo e mais significativo para os trabalhadores, dando-lhes muito mais voz a respeito da ampla gama de formas de trabalho. Para que o trabalho fosse transformado, muitos mais critérios teriam que ser integrados nas decisões sobre investimento, ou seja, sobre a transformação do processo de trabalho, além da eficiência. Mas isso é muito difícil de fazer de forma ampla e sustentada no capitalismo, o que é alarmante, porque o resultado também é a destruição do planeta.

AH: É um conjunto de questões realmente interessante – o que acontece se eliminarmos o salário e que tipo de coordenação ocorreria sem ele – que não pode ser respondida desejando que as dificuldades se afastem e imaginando territórios ensolarados de pura liberdade.

AB: Existem duas grandes armadilhas da esquerda nos últimos duzentos anos. Uma delas é a ideia de que melhorar o trabalho significa torná-lo mais divertido. Acho que isso é um beco sem saída. Existem maneiras de tornar esse conceito viável se você expandir sua definição de brincadeira, porque “brincar também é sério”, mas não é isso que a maioria das pessoas entende por brincadeira. E acho que a outra é quando você pensa que democratizar o trabalho significa processos coletivos de tomada de decisão em que todos votam em tudo em grandes reuniões com debates abertos e intermináveis. Claro, isso é um elemento de um ambiente de trabalho democrático. Mas se isso for tudo o que se oferece, significa que acaba vigorando a lei dos que falam mais alto e por mais tempo e das pessoas que estão dispostas a permanecer no local por mais tempo. Na realidade, é preciso pensar em como os trabalhadores com preocupações e problemas muito diferentes e com recursos limitados podem, em última análise, chegar a algum tipo de acordo sobre o que fazer que não sejam apenas reuniões longas e intermináveis. Essa é uma parte importante do livro no qual estou trabalhando.

AH: Você poderia nos contar sobre seu próximo projeto de livro?

AB: Estou escrevendo um livro sobre economia pós-escassez. Deixamos que os economistas nos dissessem o que significa escassez. Eles definem-na como o confronto entre os nossos recursos limitados e as necessidades e desejos humanos insaciáveis. Eu defendo que essa perspectiva leva àquela visão tecnológica de como superar os nossos problemas e do que a humanidade precisa. Há outra forma de pensar sobre a escassez, que é mais antiga do que a definição econômica: um período de escassez é aquele em que não se tem o suficiente para satisfazer as suas necessidades. O capitalismo generaliza esta experiência de insegurança ao criar um mundo onde a grande maioria das pessoas se sente muito insegura quanto à sua capacidade de fazer face às despesas porque são dependentes do mercado e inseguras quanto à sua capacidade de obter ou manter empregos que lhes permitam sobreviver.

O livro é sobre imaginar como seria um mundo com o fim da escassez no segundo sentido, um mundo no qual as pessoas sentem que têm um piso material muito forte sob elas, de modo que nunca precisam se preocupar com sua sobrevivência. É uma bela ideia que aparece em muita ficção científica e em relatos de futuros onde não precisamos mais nos preocupar com nossa sobrevivência.

O livro é sobre como a sociedade teria de mudar para tornar essa visão possível, porque em muitos aspectos, como as pessoas rapidamente percebem, a pós-escassez seria incompatível com a forma como organizamos atualmente a nossa sociedade. Teríamos de pensar sobre essas questões fundamentais: sobre o que é a felicidade, o que motiva as pessoas e como as pessoas podem querer trabalhar num mundo onde já não estão sob o chicote da necessidade económica. O livro aborda muitas dessas questões sobre a democracia no local de trabalho e também como isso deveria ser visto no nível da sociedade como um todo. As pessoas gostariam de transformar o trabalho de uma forma que não visasse apenas a aumentar a eficiência — e, portanto, expandir o nosso acesso a bens e serviços. Isto é obviamente crucial, especialmente num mundo onde tantas pessoas ainda vivem na pobreza, mas não é tudo. As pessoas também gostariam de transformar o trabalho para promover a ligação humana, atividades significativas, aumento do tempo livre, sustentabilidade ecológica, justiça social e muito mais.

É difícil trazer essas questões para dentro da conversa sobre como transformamos a economia porque a tomada de decisões sobre a economia tem sido restrita a um número muito pequeno de pessoas ricas que tomam decisões de investimento em torno das suas próprias preocupações de rentabilidade. Essa estrutura de tomada de decisão é fundamentalmente incompatível com um mundo onde as pessoas já não sofrem de escassez no sentido que descrevi. Mas transformar as estruturas de tomada de decisão para envolver mais pessoas e mais critérios de investimento, além da eficiência, seria extremamente complexo. Não funcionaria espontaneamente, então como faríamos isso? O livro que estou escrevendo oferece uma proposta exatamente para isso.

AH: Como você acha que será o retorno da estratégia industrial estatal aos EUA? Poderá restaurar a rentabilidade da produção?

AB: Há muitas razões para ser pessimista quanto ao resultado. Uma delas é que os EUA têm tradicionalmente tido muitas dificuldades em fazer política industrial, exceto quando se trata de financiamento amplo para avanços militares e médicos. A política industrial exige assumir riscos, e isso significa que muitos projetos financiados irão fracassar. Fazer uma política industrial forte, portanto, requer um elevado grau de unidade da elite, para que estes fracassos não sejam politizados. Nos EUA, tais fracassos são rotineiramente politizados, e consequentemente os partidos em geral não estão dispostos a correr riscos ao fazer política industrial de forma concertada. Além disso, há muitas razões para nos preocuparmos com o fato desse esforço específico de política industrial verde não estar realmente orientado para resolver a crise climática porque não está tão fundamentado cientificamente. Por outro lado, talvez nos impulsione no caminho de uma transformação verde, podendo ser um primeiro passo nessa direção. Se estas políticas produzirem um boom econômico temporário, isso mudará o terreno em que terão lugar estas lutas pela democratização do trabalho e por um verdadeiro programa de desenvolvimento sustentável.

Poderia levantar a questão do que significaria passar do atual tipo de modelo tecnocrático de construção de um futuro mais sustentável para um modelo democrático no qual as pessoas têm mais voz sobre o que acontece, mas continuo pessimista quanto às suas possibilidades de sucesso.

AH: Você tem um livro ou artigo favorito sobre ou em torno da história do trabalho, do poder dos trabalhadores ou de questões de democratização do trabalho que você acha que as pessoas não leem o suficiente e que talvez devessem ler mais?

AB: Two Logics of Collective Action [Duas Lógicas de Ação Coletiva], de Claus Offe. Explica tanto a vasta gama de exigências qualitativas que os trabalhadores têm como por que, ao enfrentarem esse inimigo muito poderoso e unificado que é o capital, os sindicatos e outras organizações de trabalhadores são pressionados a tentar forçar os trabalhadores a terem um conjunto mais unificado de propostas, e como isso leva a uma simplificação real nos tipos de exigências que os trabalhadores fazem. O que significaria para a questão da democratização do trabalho não ter a pressão externa do inimigo unificado e unificador do capital? O que significaria estar fora disso? 

Secretário de Tarcísio ofende professoras e professores... e é vaiado por estudantes

# Indignação e repúdio às declarações de Fábio Pietro provocam exigência de sua exoneração do governo (leia mais)

 Início e fim de um homem intratável e triste: o personagem Javier Milei
Julian Fucks, UOL

# Leia o texto original em Ecoa
Um homem intratável e triste vive só, com seus quatro cães. Desde a infância afastou-se dos pais, nunca cultivou amizades. Há alguns anos perdeu seu único amigo, Conan, um mastim inglês que o acompanhava a cada noite numa taça de champanhe. Não quis ficar de todo só quando Conan morreu, por isso o clonou em quatro novos mastins, que agora dominam sua sala inteira. Dividiu entre eles o território, prendendo-os em correntes cravadas com ganchos no chão. São cachorros grandes, fortes, agressivos às vezes. Há pouco um deles se soltou e atacou o outro, o homem meteu-se no meio e fez-se alvo dos cães, sofrendo uma mordida severa no braço esquerdo.

Quanto mais brutos se tornam seus cães, mais brutos se tornam os humores e as ideias do homem, mais bruto se torna o homem. Uma década atrás não passava de um acadêmico ameno, embora adepto de noções estúpidas e caducas, como a injustiça dos direitos e a inutilidade dos governos. Agora, inspirado pelos cães, que ele passou a ouvir através de intervenções mediúnicas e a tomar como seus conselheiros, fez-se sujeito raivoso e grosseiro. Late agressivamente em suas aparições públicas, cada vez mais frequentes. Por sua capacidade única de gerar constrangimento, é o convidado favorito de escandalosos programas televisivos, que com sua presença incômoda ganham audiência.

O homem intratável e triste poderia seguir só, seria seu destino mais razoável. Mas tem agora uma horda de adoradores intratáveis e tristes que riem dele, e riem das vítimas de suas mordidas ferozes e de seus latidos estridentes. O homem agora tem um projeto político: somou ao anarcocapitalismo propostas ainda mais estúpidas e caducas, incorporou o sumo do ódio, do machismo, do racismo, do elogio às armas e às ditaduras assassinas — sim, sua própria contradição não o preocupa tanto. O homem elegeu-se deputado e levou aos palanques os conselhos de seus cães. Há uma semana obteve sua máxima conquista: foi eleito presidente de seu pobre e instável país, o pobre país que dá origem ao narrador desta história.

Esqueça-se por ora o tempo apressado, a trama extravagante, a improbabilidade desse clímax, esqueçam-se outros elementos precários da composição literária: aqui estamos diante de um estrondoso personagem. Javier Milei é seu nome, comum e verossímil como tantos outros, embora em sua língua o nome insinue o poder por que ele quer se reger: minha lei. Um personagem, um ser imaginário saído da mente de outro ser, que no entanto pode provocar pavor ou encanto naqueles que o contemplam, que por um momento nele creem.

Um personagem central, terrível anti-herói, um homem sem nenhuma virtude em torno do qual a narrativa trágica há de se revolver. Um personagem plano, extremo, caricato, sem profundidade psicológica, e por isso de assimilação fácil por um público vasto, ávido por uma história simples e ágil, mesmo que brutal. Capaz, assim, de atrair atenções e gerar envolvimento, de fazer sentir que em torno dele gravitam todos os acontecimentos. Por isso caberia a ele sanar os problemas do mundo em que estamos imersos, como ele acredita, como acreditam seus eleitores, seus leitores. Eis o universo do romance: nele lemos o confronto entre o herói profundamente problemático e a realidade em disrupção perpéetua.

O problema, aqui, é que a realidade vai além daquela impressa nas páginas dos livros ou novelada nos programas escandalosos. A narrativa trágica e envolvente não existe para entreter, e sim decide o destino concreto de um povo e de um país — como já tem ferido o destino de povos pelo mundo inteiro. E então será preciso romper o pacto ficcional, será preciso romper qualquer encantamento com a história e já não desejar nenhum ansiado desfecho: nem que o homem vença o riso e o horror e triunfe contra seus inimigos, subjugando-os para sempre; nem que seja devorado vivo por seus cães.

Nisso talvez se veja o maior desafio ao exercício atual da política, num tempo de personagens estrondosos e narrativas extravagantes. Deixar de se reger pelo assombro e resistir no apego à máxima lucidez. Tentar devolver os homens intratáveis e tristes à sua condição de homens, não mais de heróis lunáticos, e garantir que também eles despertem de seus devaneios.

# O que é um genocídio?

Genocídio (...) é uma forma específica de política de apagamento dos corpos

Safatle, Boitempo

# Por quem os sinos dobram em Gaza?

A morte de todo homem me diminui, porque sou parte da humanidade.

Urariano Mota, Boitempo

# Se nada der certo


O país onde a imagem do fracasso é a imagem do trabalho


J.S.Faro, da antiga GIZ

o que há de novo?

Rafael Mafei (piauí)

# Preocupação do STF não é só com a PEC do Senado

Leonardo Miazzo (Carta Capital)

# Em vitória de Haddad, Lula veta prorrogação da desoneração da folha (Carta Capital)

# Introdução: Capitalismo no século XXI 

Eleutério F. S. Prado (A Terra é redonda)

minima moralia

Reflexões sobre a vida mutilada

# Experiência individual e objetividade na obra de Adorno (Ricardo Musse)

leituras da 5a feira

# Cristina Serra: A morte de Ana Clara foi crime

Organizadores do show de Taylor Swift transformaram o estádio numa câmara de tortura

# Souto Maior: Graves agressões a uma instituição da República
(sobre o Estadão e sua obsessão pelo poder oligárquico)

A Terra é redonda

# Schirlei Alves: veículos feministas apoiam jornalista punida por pauta sobre julgamento de estupro

Intercept

o que há de novo?

Dallas, 22 de novembro de 1963: 2 em cada 3 americanos acreditam que um complô matou Kennedy 

Elio Gaspari, Folha

Às 12h30 do dia de hoje, há 60 anos, uma bala de fuzil explodiu a cabeça de John Kennedy. Ele tinha 46 anos e era o primeiro presidente americano nascido no século 20.

Uma pesquisa do Instituto Gallup realizada há poucos dias informa que 65% dos adultos americanos acreditam que houve algum tipo de conspiração no atentado. Como 1 em cada 10 americanos duvida que o astronauta Neil Armstrong tenha pisado na Lua em 1969, deve-se dar atenção ao vigor das notícias falsas.

Logo depois do assassinato, o presidente Lyndon Johnson constituiu uma comissão presidida pelo chefe da Corte Suprema, Earl Warren. Ela investigou o crime e concluiu que foi tudo coisa do ex-fuzileiro naval Lee Oswald, um sujeito desajustado que havia vivido na União Soviética. Tudo o que ele fez deu errado, menos uma coisa, que lhe deu dois dias de fama em vida, pois foi assassinado no dia 24.

O presidente John Kennedy e a sua mulher, Jacqueline, instantes antes do assassinato, em 1963 - Reuters

O Relatório Warren em si tem 888 páginas. Reúne 15 volumes com cerca de 10 mil páginas de documentos. O Federal Bureau of Investigation fez mais de 25 mil entrevistas e produziu 2.300 relatórios. Nada feito: 2 em cada 3 adultos americanos continua achando que houve mais gente envolvida.

A morte de Kennedy, como os discos voadores e a identidade de Jack, o Estripador, tornou-se campo fértil para transformar curiosidade em teoria.

Quem quiser entender o vigor da suspeita de que houve uma conspiração pode ir atrás do livro "Reclaiming History: The Assassination of President John F. Kennedy" ("Recuperando a História: O Assassinato do Presidente John F. Kennedy"), do promotor americano Vincent Bugliosi (1934-2015). Com mais de mil páginas e 2,5 quilos de peso, ele esfarelou todas as teorias e concluiu que o Relatório Warren está certo. Bugliosi atuou nos julgamentos de 21 acusados de homicídios, condenou todos e mandou oito para o Corredor da Morte.

No coração de todas as conspirações está a chamada "bala mágica". Vinda de cima, ela teria acertado Kennedy na nuca. Saindo na altura do nó da gravata, atravessou o tórax do governador do Texas, atingiu seu braço e caiu no piso da limusine. Para quem acredita nisso, os tiros que acertaram o presidente foram dois. Para quem não acredita, haveria outro atirador. Warren e Bugliosi sustentam que esse terceiro tiro não aconteceu.

Tudo bem, mas pelo menos duas pessoas não acreditavam na "bala mágica". Um era o presidente Lyndon Johnson. O outro, o poderoso senador Richard Russell, membro da Comissão Warren.

Em maio de 1964, quatro meses antes da divulgação do relatório, Russell sabia que a comissão acreditava na trajetória da "bala mágica" e disse a Johnson: "Eu não acredito".

"Nem eu", respondeu o presidente.

Johnson assumiu na tarde do dia 22 e morreu em 1973. Antes, durante e depois do Relatório Warren, ele indicou em pelo menos oito ocasiões que acreditava na conspiração. Sua teoria era de que "Kennedy tentou pegar Fidel Castro e ele pegou-o primeiro".

No dia de hoje, há 60 anos, o chefe das operações especiais da Central Intelligence Agency estava reunido com o major do Exército cubano Rolando Cubelas num hotel de Paris. Discutiam a eficácia de uma seringa com veneno, disfarçada numa caneta, para matar Fidel. Quando veio a notícia de Dallas, o encontro foi encerrado.

Verdades impuras (Tomás Eloy Martínez)

minima moralia

Reflexões sobre a vida mutiladaa

Registros em torno da matéria que inspirou Theodor Adorno a escrever uma das obras primas do pensamento crítico

Martin Vasques da Cunha, Folha

# As pegadas de Taylor Swift

Marcella Ramos (piauí)

O desencanto com a democracia e o crescimento dos valores individualistas estão na base do desastre argentino

Glauco Faria (Outras Palavras) e + Argentina

o que há de novo?

Milei eleito. Venceu a democracia? 

J.S.Faro

Milei foi eleito presidente da Argentina. 

Penso que se trata de um desastre tão grande quanto foi o da eleição no Brasil em 2018. 

Não há nada de positivo a ser comemorado, nem serve o tradicional truísmo "venceu a democracia" porque a democracia não venceu e nem poderia ser diferente com a escolha popular de um palhaço que quer acabar com direitos sociais, suavizar os crimes da sangrenta ditadura militar, liquidar a soberania nacional do país e cujos afagos públicos que recebeu depois de conhecidos os resultados das urnas vieram de Trump e de Bolsonaro, duas biscas que estadunidenses e brasileiros conhecem muito bem. 

Aliás, é significativa a rapidez com quê o jornalismo de almanaque produzido por aqui rapidamente assimilou e incorporou ao seu jargão o rótulo de "libertário" que o próprio Milei se atribui em busca de algum eufemismo que oculte o que ele de verdade representa e significa para essa turma neoliberal. 

O núcleo desse barulho todo gira em torno do "estado mínimo" e todas as agruras que os hermanos vão enfrentar se o novo presidente colocar em prática suas propostas, em tudo semelhantes ao que enfrentamos depois do golpe contra Dilma: aprofundamento da crise econômica, abandono da proteção social e dos direitos trabalhistas, redução drástica dos investimentos em infraestrutura, educação, saúde; concentração da renda, carência extrema e... violência, desordem. O "estado mínimo" é o correlato da "pobreza máxima" que o acompanha. A Argentina que viver, verá. 

Sugiro que os frequentadores do site acompanhem os desdobramentos da eleição no país vizinho na página onde estão postadas as matérias que falam dos antecedentes políticos vividos pelos argentinos e os desdobramentos da "decisão" que tomaram neste 19 de novembro de 2023.

pensatas do fim de semana

# Quem pode e quem não pode entrar nos gabinetes de Brasília: Carla Zambelli pode. Luciane Farias não pode? # Tem alguma coisa que não se encaixa no noticiário sobre o barraco que envolveu Ana Hickmann # E o que aconteceu com a influencer Patrícia Ramos, não é notícia? # Haddad ficou bem na fita # Mais de 80% dos brasileiros estão plugados na internet # O pensamento do Chico de Oliveira


Argentina

Massa e Milei progatonizam polos antagônicos em torno do futuro dos países da América Latina
Análises e informações no clipping do site  (ilustração: piauí)

          Chico de Oliveira         Mestre da dialética
  (César Locatelli)

         Chico de Oliveira           Crítica da razão dualista  (Camila Góes e Renato Tadeu de Souza)

      Chico de Oliveira               Valor intelectual          (Roberto Schwarz)

o que há de novo?

Escolas de São Paulo terão menos artes e mais matemática e português

Gestão Tarcísio reduz de 11 para 2 os itinerários do ensino médio, acaba com matérias eletivas e inclui duas aulas de recuperação semanais do 6º ao 9º ano (leia mais sobre a Reforma do Ensino Médio no clipping do site)

Laura Mattos

O novo currículo das escolas da rede paulista, ao qual a Folha teve acesso com exclusividade, tem menos aulas de artes e mais de português e de matemática. As matérias eletivas, que até este ano podiam ser criadas com autonomia pelas escolas, acabam, e entram aulas de recuperação e de preparo para o vestibular.

Definidas ao longo do primeiro ano do governo Tarcísio de Freitas (Republicanos), as mudanças valem a partir de 2024 e afetam o fundamental 2 (6º a 9º ano) e o ensino médio. O currículo do fundamental 1 (1º a 5º ano ) não será alterado.

As novas grades curriculares serão apresentadas nesta sexta-feira (17) aos supervisores da rede de ensino do estado.

O ensino médio é o mais alterado. Em vez dos atuais 11 itinerários formativos (a parte do currículo do novo ensino médio que cada estudante pode escolher), serão apenas dois (Exatas/Ciências da Natureza e Linguagens/Ciências Humanas).

Na formação geral básica (com as matérias regulares, comum a todos os alunos), as aulas de português aumentam 60% em relação ao currículo atual. De 10 aulas semanais (somando 1º, 2º e 3º anos), sobe para 16. Matemática tem aumento de 70%, de 10 para 17. Também há mais aulas de física, geografia e história.

Para criar esse espaço, foram reduzidas as aulas de artes, filosofia, sociologia e de tecnologia/robótica, além da completa extinção das matérias eletivas.

Trabalhos de alunos do projeto de convivência da Escola Estadual Juventina Patricia Sant'Ana, em Cidade Ademar, na zona sul de São Paulo - Jardiel Carvalho/Folhapress

A carga horária de artes, filosofia e sociologia, contudo, é maior para os que optarem pelo itinerário de Linguagens/Ciências Humanas, bem como a de tecnologia/robótica para aqueles que escolherem o itinerário de Exatas/Ciências da Natureza.

Essa, aliás, é uma característica que se evidencia na opção curricular da gestão Tarcísio, a de que os itinerários se concentram em conteúdos da formação básica.

O itinerário de Linguagens/Ciências Humanas tem como disciplinas filosofia/sociedade moderna (um mix de filosofia e sociologia) e geopolítica (que traz componentes de geografia e história), além de liderança, oratória e artes e mídias digitais.

Já o itinerário de Exatas/Ciências da Natureza é composto pelas disciplinas biotecnologia e química aplicada (que trabalham, respectivamente, com conceitos de biologia e química), além de empreendedorismo e tecnologia e robótica.

Esse currículo deverá se ajustar com mais facilidade às mudanças do novo ensino médio previstas pelo projeto de lei encaminhado pelo governo Lula (PT) ao Congresso.

O texto prevê um aumento das matérias de formação básica, como português e matemática, de 1.800 para 2.400 horas (total dos três anos do curso), da mesma forma que uma redução da carga horária dos itinerários, de 1.200 para 600 horas.

"Com a aprovação da lei, faremos os ajustes sem grandes complicações porque os itinerários agora estão mais semelhantes à formação básica", afirmou à Folha o secretário de Educação do estado, Renato Feder.

FUNDAMENTAL

No fundamental 2, a mudança mais significativa é a inclusão de duas aulas semanais de recuperação de português e matemática, do 6º ao 9º ano –nas escolas em tempo integral, serão quatro aulas no 6º e no 7º e duas no 8º e 9º. Essas aulas, segundo Feder, serão dadas em laboratórios de informática, para que cada turma seja dividida em três níveis de aprendizagem, e os alunos sigam, no computador, um programa específico de recuperação –ou de aprofundamento, no caso dos mais adiantados.

Serão utilizadas as plataformas Matific, contratada pelo governo do estado por R$ 72,2 milhões, por meio de licitação, e a Tarefa SP, desenvolvida na própria secretaria.

"Temos uma defasagem muito acentuada, que se agravou na pandemia, por isso essa recuperação de aprendizagem é central no novo currículo", disse o secretário.

As matérias eletivas também foram eliminadas no currículo do fundamental 2. Já as aulas de projeto de vida e as de artes, reduzidas pela metade. Essa redução dá lugar à tecnologia e educação financeira, além da recuperação.

No Paraná, cuja rede de educação foi gerida por Feder de 2019 a 2022, houve polêmica, no início deste ano, com o anúncio de que o 8º e o 9º anos não teriam mais aulas de artes, para dar espaço às de computação.

Essa decisão foi de Roni Miranda, atual secretário do Paraná e que fazia parte da equipe de Feder no estado.

Diante das críticas, Miranda teve de recuar e voltar com as artes para o currículo, ampliando a carga horária diária de aulas para comportar também a computação.

Já Feder optou por reduzir pela metade as aulas de artes do 8º e do 9ª anos, de duas semanais para uma. Questionado pela Folha sobre essa redução e a controvérsia que isso poderá gerar, ele respondeu que "aula de artes é muito importante e terá um protagonismo no ensino médio, no itinerário de Linguagens/Ciências Humanas".

Afirmou ainda que, para as escolas de tempo integral, foi criado um espaço na grade chamado esporte/música/arte. "Essa foi uma demanda das escolas com carga horária de nove horas, que disseram que o currículo estava muito pesado para os alunos", afirmou. "Algumas pediam a inclusão de esportes, outras de música ou de aulas de artes. Então deixamos esse espaço para que cada escola defina o que achar melhor."

Essas escolas, no entanto, ainda atendem a minoria dos alunos, em torno de 20%

# Como pensa o empresário nacional?

"Lasciate ogni speranza..." 

Renato Dagnino, A Terra é redonda

# Clube antiesquerda

Velhinhos do MBL discutem crise de identidade

Lara Machado, Piauí

Uma página-documento sobre a crueldade de Israel contra o povo palestino.  Acesse aqui e reproduza as principais notícias, divulgue...

As informações atualizadas sobre o genocídio israelense contra os palestinos

Israel destrói hospital em Gaza e mata civis desarmados em ação genocida inédita na História

# Leia na Folha, no Opera Mundi, na DW e na BBC

Desde o início do conflito, em 7 de outubro, mais de 11.200 palestinos morreram, incluindo mais de 7.700 mulheres e crianças (RBA)

"A estratégia do sionismo é justamente rotular de antissemita todos os críticos de seus crimes contra a humanidade", diz Bepe Damasco (247)

 # Além de crime, converter hospitais em alvos é grave erro de Israel

A guerra de Israel ... pode deixar a situação pior do que já era...

Josias de Souza

# Algo terá que mudar

Agenda pessoal de Netanyahu não coincide com interesses de Israel. Primeiro ministro além de acusado de corrupção tem vocação totalitária

Hélio Schwartsman

# 70% dos palestinos não terão água até o fim do dia de hoje 

Agencias da ONU afirmam que sistuação é dramática e atinge 2,2 molhões de habitantes de Gaza

Jamil Chade


# Uma matança planejada (isto é, 'extermínio')

Os desdobramentos da tragédia palestina e a submissão do justicialismo ao branqueamento

Claudio Katz

o que há de novo?

# Leia a matéria do G1: alívio

# Lula diz que Brasil não vai deixar ninguém para trás em Gaza: "tudo para trazer brasileiros de volta"

Almanaques da imprensa antipetista silenciam

Cortina de fumaça para tirar do foco os desvios que incriminam Moro quando atuou na Lava Lato

Bolsonarismo e Sionismo

LEONARDO SACRAMENTO*, A Terra é redonda

A convergência entre a extrema direita israelense e a brasileira é epítome da universalização fascista pela coerência de trajetórias políticas distanciadas em milhares de quilômetros

Em junho de 2021, Benjamin Netanyahu fez chegar a Jair Bolsonaro uma proposta por meio do embaixador do Brasil em Israel.[i] O primeiro-ministro israelense, líder da extrema direita fascista israelense, propunha um pacto a Jair Bolsonaro, presidente do Brasil e líder da extrema direita fascista brasileira. Benjamin Netanyahu alertava a Jair Bolsonaro sobre o risco de ser julgado no Tribunal Penal Internacional por crimes de genocídio contra os povos indígenas. Mostrava-se preocupado e propunha um pacto. Em troca de proteção, pedia o mesmo a Jair Bolsonaro, pois Benjamin Netanyahu também tem os seus pecados genocidas muito antes da famigerada “reação” (sic!) de Israel. Quem do establishment israelense não os possui?

O pacto envolvia uma rede protetiva entre os dois líderes, no qual um ficaria responsável por defender o outro em caso de prosseguimento das denúncias no Tribunal, todas por genocídio e crimes contra a humanidade a árabes e yanomamis. Sim, Benjamin Netanyahu atacou a Faixa de Gaza em 2008, 2012, 2014 e 2021, com grandes quantidades de assassinatos no ano seguinte de cada ataque, podendo-se vincular o substantivo “reação” ao Hamas, já que a organização palestina atacou apenas em outubro de 2023.

Somente em 2018, foram 31.558 palestinos mortos. Entre 2008 e 2020, foram 120 mil palestinos mortos. O uso do termo “reação” pressupõe uma infantilização analítica de quem o usa, como se fosse um professor de 5º ano separando uma briga em que cada qual se adianta para explicar quem começou.

Já a proibição do uso do termo aos palestinos revela visão política supremacista, uma vez que implicitamente e hoje explicitamente matar palestinos é o normal, como provam os dados. A história e os fatos confirmam que o termo “reação” pertence ao colonizador. Quando o colonizado reage, não é reação, mas ataque terrorista, pois o “normal” é a colonização. O ataque do colonizador nunca é terrorismo.

Até mesmo os Haganá, Irgun e Lehi, milícias de extrema direita que atuaram matando e expulsando palestinos entre 1920 e 1948, receberam a classificação de terroristas dos ingleses. Em 1948, as três milícias foram transformadas em Forças Armadas de Israel (IDF) e hoje não recebem, pelo menos dos ingleses, a classificação de terroristas, embora possuam as mesmas práticas, agora amplificadas por poderio militar doado pelos EUA. Hoje são, assim como Bin Laden foi para o The Independent em 1993, defensores dos valores ocidentais, “guerreiros” da “estrada da liberdade”.[ii]

O fato é que Benjamin Netanyahu deu amplo apoio a Jair Bolsonaro. Não apenas apoio político, mas logístico por meio do antigo embaixador Yossi Shelley, que não pensou duas vezes em tirar uma foto de um encontro com uma lagosta tampada por um borrão tosco. Israel, em grande medida, foi um artífice da construção do bolsonarismo no meio evangélico e entre a comunidade judaico-israelense instalada no Brasil, grande apoiadora do mito. Mas tem exceções, diriam os sionistas de esquerda. Verdade, mas exceções tão pequenas que parecem fundos de agulhas diante de um camelo. E no capitalismo, os ricos sempre vão ao paraíso, como prega abertamente a “teologia da prosperidade”.

O apoio de Israel a Jair Bolsonaro iniciou-se cedo, no próprio processo eleitoral, com grande engajamento da institucionalidade judaico-israelense no Brasil, corroborando-se no evento do Hebraica no Rio de Janeiro, em que Jair Bolsonaro comparou negros brasileiros a gados com a bandeira de Israel tremulando ao fundo, para o deleite da plateia, composta majoritariamente por sócios do clube.

A comunidade judaica, algo em torno de 100.000, proporcionalmente a mesma quantidade da comunidade judaica no Irã, o país que perseguiria judeus em todas as esquinas, engajou-se enormemente na campanha fascista, oferecendo um incrível apoio hospitalar no Hospital Israelita Albert Einstein a Jair Bolsonaro quando da facada em Juiz de Fora, com direito a sigilo para além do médico. Não se pode esquecer do incrível tratamento dado a Queiróz, que pagou em espécie R$ 133 mil.[iii] Coitado do físico socialista que era abertamente antissionista e antifascista, que provavelmente não concordaria com o “israelita” antes de seu nome, se vivo estivesse.

Mas qual visão religiosa a institucionalidade judaico-israelense no Brasil, a mando da embaixada israelense, se aproveitou? Que judeus seriam o povo escolhido porque descenderiam diretamente de Sem. Os povos africanos seriam amaldiçoados porque descenderiam de Cam. Nessa equação teológica, os palestinos seriam descendentes dos filisteus e devem ser dizimados, ou seja, palestinos não seriam semitas, mas invasores na Israel divina. Essa visão aproveita-se do sionismo europeu, segundo o qual os semitas seriam apenas os judeus, tornando os árabes e afins em povos dizimáveis pela mão de Deus ou das bombas estadunidenses. Ou as bombas estadunidenses seriam a mão de Deus?

Essa visão fundamentalista do Estado teocrático de Israel dialoga com uma versão de destino-manifesto judaico europeu, ou judaico branco. Para que essa operação dê certo, a história da racialização e do neocolonialismo nos séculos XIX e XX, as experiências alemãs na Namíbia, as inglesas no Quênia, Índia e China, as belgas no Congo, as norte-americanas nas Filipinas, as japonesas em quase toda a Ásia próxima ao Pacífico, as centenas de milhões de mortos no total, todas as experiências genocidas, devem ser tratadas como uma atipicidade esquecível diante do Holocausto no continente europeu. Dessa forma, o Holocausto no continente europeu passa a ser retratado como o maior crime da história do homo sapiens (300 mil anos).

Pouco importa que no Congo três vezes mais seres humanos tenham sido dizimados em campos de concentração e toda a riqueza do país tenha servido para abastecer a Europa e a Bélgica. Mas como visitar Bruxelas e postar foto no Instagram com tal lembrança? Como tratar Bruxelas a capital da institucionalidade europeia com tal lembrança? Como expor que os europeus nada produziram, apenas roubaram por meio de genocídios e pilhagens? Nada mais simbólico do que Bruxelas ser a capital da União Europeia e a sede do Parlamento Europeu, cujas instituições estão situadas no instagramável “bairro europeu”.

Mas a operação não termina aí. A construção do nazismo e suas relações com o Jim Crown nos EUA[iv] e a legislação imigratória racial no continente americano, com protagonismo vanguardista do Brasil em 1890, são apagadas. As defesas liberais sobre a propriedade privada sobre os escravizados não humanos coisificados ou humanos inferiores, a racialização científica e o vínculo do nazismo com o liberalismo utilitarista inglês são enterradas.

Sobra um Holocausto fetichizado, no qual os judeus teriam sido mortos por uma loucura coletiva, pela ascensão da maldade humana e até como produto de um ressentimento artístico de Hitler misturado com humilhação nacional por ter sido objeto de um tratado “pesado demais” após a I Guerra Mundial. O antissemitismo é mistificado pelos europeus como se fosse a-histórico, transformando-se na segunda metade do século XX no tipo ideal de racismo para o Ocidente: um antissemitismo que seria meta-histórico, pois o antissemitismo seria universal, e não mais europeu, ao mesmo tempo que o racismo se restringiria a um povo agora considerado plenamente branco e portador dos valores ocidentais. O racismo contra negros, indígenas, árabes e demais (não brancos) dependeria da análise da classe dominante ocidental e branca.

Para a Alemanha, essa construção supremacista é conveniente, uma vez que trata o Holocausto de forma desvinculada da história política e cultural alemã, restando a ela ser uma espécie de serviçal dos interesses colonialistas e supremacistas de Israel de forma absolutamente acrítica, em busca de um perdão por um “ato falho”. Para os europeus, idem, uma vez que o antissemitismo pode ser trabalhado a seu bel prazer, jogando-o nas costas de povos que nunca se engajaram na perseguição institucional em massa a judeus, como os muçulmanos. Qual guerra de extermínio entre muçulmanos e judeus ocorreu nos últimos 1000 anos? Quando judeus foram expulsos do mundo islâmico como foram de países e territórios cristãos? Ao contrário, historicamente as comunidades judaicas encontraram boa guarida no mundo islâmico contra a perseguição cristã.

Com essa operação, alemães e europeus transformam-se não mais nos produtores e portadores históricos do antissemitismo moderno, mas nos grandes “protetores” da comunidade judaica (branca). Os judeus brancos, outrora executados por não serem considerados europeus e por serem classificados fenotipicamente intrusos a uma nacionalidade racialmente pura, tornam-se portadores da ocidentalidade europeia, sobretudo no Oriente Médio, compondo-se em uma espécie de instrumento geopolítico de intervenção anglo-saxã.

Logo, paradoxalmente a fetichização do Holocausto transforma o judeu outrora não europeu em portador da europeidade e da branquitude, ao mesmo tempo que exime os países europeus, inclusive a Alemanha, dos genocídios cometidos contra as comunidades judaicas, notadamente as que viviam ao leste (próximos a URSS) e se misturavam na narrativa nazista de complô judaico-eslavo comunista.

O uso do pares antitéticos animais/humanos, barbárie/civilização e árabe/judeu por Benjamin Netanyahu fundamentam-se nessa estética fascista – e estética aqui tem o sentido de percepção da realidade. O compartilhamento desses pares por liberais revela a proximidade dessa filosofia com o fascismo. O compartilhamento desses pares por fundamentalistas evangélicos materializa a popularização do fascismo por meio de uma predeterminação bíblica que seculariza a colonização israelense sobre os palestinos.

Para os evangélicos, reina uma espécie de profecia registrada em Zacarias (9:5-7): “Ascalon verá e terá medo, Gaza tremerá muito e Acaron também, porque sua esperança foi frustrada. O rei desaparecerá de Gaza, Ascalon não será habitada e um bastardo habitará Azoto. Eu destruirei o orgulho dos filisteus, vou arrancar-lhes o sangue da boca e as abominações dos dentes. Ele também será um resto para o nosso Deus, será uma família em Judá, e Acaron como um jesubeu”. Importante lembrar que Zacarias introduz a figura do messias sacerdotal ante a dispersão de Judá (2:1-4).

Os judeus, assim, se transformam em os escolhidos por Deus contra os filisteus, ou os ocidentais brancos detentores de missão “civilizatória” (na prática, exterminadora) contra os animais que precisam ser adestrados por meio da colonização, em favor dos capitais norte-americanos e europeus. Se não adestrados, exterminados. Se exterminados, para os evangélicos a mando de Deus. Essa foi a tessitura ideológica trabalhada por Israel e a institucionalidade judaico-israelense no bolsonarismo, inclusive com o avanço de uma rede de turismo neopentecostal em Israel. Coerentemente, Benjamin Netanyahu concedeu ombro amigo para um irmão sem deixar de pedir um em troca.

É uma Israel imaginária, com um judeu imaginário. Mas é prudente evidenciar que a imaginação foi financiada por uma Israel real, colonialista e genocida, com interesses políticos bem reais de arrebanhar um país com ascendência geopolítica na América do Sul e, os liberais querendo ou não, com protagonismo no Sul Global, o calcanhar de Aquiles de Israel. Se há um lugar do planeta que a questão palestina teve grande solidariedade em alguns momentos chaves dos 75 anos de ocupação, algumas vezes mais do que no mundo árabe, como mostra o comportamento pusilânime e subserviente de Catar, Egito e Arábia Saudita, foi no Sul Global, sobretudo África e América Latina.

A imaginação fundamentalista dos evangélicos é fruto de trabalho político, financiamento, troca de favores e alinhamento político-militar. Está longe de ser mero devaneio. Mais do que isso, é obra de uma convergência incrível de trajetórias entre extremas-direitas. Não obstante, essa convergência transformou o Holocausto em um simulacro idílico da extrema-direita mundial, inclusive de segmentos com vínculos com grupos neonazistas, como é o caso do bolsonarismo e do trumpismo (e Republicanos). Ao descontextualizar o Holocausto, ahistoricizando-o por meio de uma anti-história, a extrema-direita o fetichiza e o captura para justificar e naturalizar um genocídio contra os palestinos.

É o que se depreende do uso indiscriminado da acusação de antissemitismo, justamente daqueles que provavelmente riram de Bolsonaro quando comparou negros a gado. Esse jogo, por ora, retira os palestinos do espectro dos semitas, o que para os evangélicos é coerente, uma vez que seriam filisteus. Como não lembrar da famosa defesa de Netanyahu isentando Hitler de “perseguir judeus”, pois teria apenas seguido um pedido de Haj Amin Al Husseini.

Benjamin Netanyahu foi coerente com a construção fetichizada do Holocausto, isentando a Europa por se considerar um produto da ocidentalidade europeia, com missão “civilizatória” sobre os árabes, os animais. O discurso proferido por Netanyahu foi no Congresso Mundial Sionista, outra incrível coerência, pois ele não foi interrompido e, ao final, foi aplaudido.[v]

É comum ver uma comparação esdrúxula – e perigosa para os judeus – entre o que chamam de antissemitismo, quando das críticas ao sionismo, e o Holocausto. Ao transformar mera crítica ao Sionismo em antissemitismo, mesmo com a operação racista de retirada dos palestinos pelo grupo étnico semita imaginário, transforma o antissemitismo real em algo mundano e passível de ser criticado – operação inversa do fetichismo do Holocausto e da transformação do judeu europeu em espelho do branco ocidental. Ao vincular o antissemitismo ao sionismo e a Israel, os quais o utiliza como espantalho para toda e qualquer crítica, rebaixa o Holocausto a uma posição secular em oposição à construção a-histórica conservadora.

Deixa o discurso nu e sem adornos parnasianos que enganariam os autoproclamados intelectuais que consideram o genocídio palestino um “conflito complexo”, ou que permitiriam que se enganassem em nome da boa convivência com fundos de financiamento de pesquisa e editoras, restando-lhes diante das imagens de crianças enterradas e membros de pessoas agrupados em panos brancos o silêncio sepulcral da mediocridade política. Algo semelhante vale para as direções nacionais dos partidos institucionais de esquerda (PT, PC do B e PSOL), de olho nos votos evangélicos na eleição de 2024 – o que, comprovadamente, não trará qualquer voto nesse segmento.

Mas a convergência entre extrema direita israelense e extrema direita brasileira é epítome da universalização fascista pela coerência de trajetórias políticas distanciadas em milhares de quilômetros. Os aplausos a Jair Bolsonaro quando comparou negros a gados são síntese. O Haganá, milícia assassina de extrema direita que matava e expulsava palestinos, tornou-se as Forças de Defesa de Israel (IDF), uma antiga defesa de Jair Bolsonaro sobre as milícias cariocas quanto à segurança pública.

O Irgun, dissidência do Haganá, mais sectária e fundamentalista, também formadora das IDF, recebeu repúdio de Albert Einstein e outros em um famoso manifesto que denunciava o supremacismo e o colonialismo de suas ações, ainda em 1948. Seus fundadores estavam na formação do Herut, partido que resultaria anos depois do Likud, partido fascista de Benjamin Netanyahu. O Lehi, a outra dissidência do Haganá, foi responsável pela carnificina de Deir Yassin, na qual 120 palestinos desarmados foram exterminados em abril de 1948, aproximadamente como as chacinas sob Cláudio Castro, que deixaram 141 executados apenas em 2023 – o ano não terminou.[vi]

A milícia carioca consiste em formato paramilitar idêntico, cujo principal tributário foi Jair Bolsonaro, tornando-se, assim como Benjamin Netanyahu, mandatário do país. A extrema-direita incrustada no Estado, sobretudo nas instituições cariocas, como polícias e mesmo o Exército, financiou grupos milicianos, centrando fogo no Comando Vermelho e abrindo espaço para policiais milicianos assumirem o controle paraestatal dos territórios.

Benjamin Netanyahu atacou a ONU, barrou funcionários e se negou a conceder vistos humanitários. Atacou todas as instituições, como mostra a crise com o judiciário do país, algo feito pelo seu parceiro brasileiro, o qual acusava a ONU de “globalismo”. Israel vendeu programas de espionagem para Jair Bolsonaro para vigiar e perseguir a oposição. Jair Bolsonaro quase mudou a embaixada brasileira para Jerusalém, abrindo um escritório diplomático. Benjamin Netanyahu enviou de forma propagandista uma brigada para passear em Brumadinho sobre corpos brasileiros.

Benjamin Netanyahu e Jair Bolsonaro são produtos da radicalização da ocidentalidade europeia ao mesmo tempo em que são camuflados pela mitificação do “conflito”, assim como Hitler foi enquanto é asilado politicamente (como fez Bibi) por meio da mitificação do nazismo e da fetichização do Holocausto. O fascista israelense vislumbra árabes exclusivamente em uma solução final enquanto o fascista brasileiro considera negros e indígenas aptos a serem tiro ao alvo de milícias urbanas e rurais. Como disse, os aplausos de judeus a Jair Bolsonaro no clube judaico-israelense é síntese, não acidente. A comunidade judaica no Brasil pertence à classe dominante brasileira e à classe média tradicional. Não mora no Jacarezinho e, pelo menos as comunidades de São Paulo e Rio de Janeiro, não chega perto a uma periferia ou morro. É síntese de classe!

O apoio, ou melhor, o pacto fez todo o sentido, no qual foi explicitado pelo atual embaixador de Israel de maneira didática e coerente – nomeado pelo antigo governo. Ele convocou uma reunião com parlamentares em prédio público brasileiro, todos bolsonaristas, e convidou Jair Bolsonaro, reunindo-se logo em seguida às portas fechadas.

No mesmo dia, uma operação construída pelo Mossad prendeu dois brasileiros que teriam ligações com o Hezbollah – que não é classificado no Brasil como organização terrorista. A acusação: fariam atentados em sinagogas no Brasil. A história sem pé nem cabeça foi assumida publicamente pelo Mossad, embaixada e Benjamin Netanyahu, provocando crises institucionais até mesmo na americanizada Polícia Federal. O Globo, em editorial, aproveitou para acusar o Irã e exigir que o Brasil se afaste, em um claro movimento de Israel e EUA para friccionar o BRICs.[vii]

O Mossad não é uma força policial. Não é a homônima israelense da Polícia Federal. O Mossad é uma força de espionagem e intervenção em outros países, matando pessoas.[viii] Qualquer informação do Mossad não é institucional. O Mossad representa os interesses geopolíticos israelenses, os quais não encontram resguardo em uma figura (irreal, mas existente na forma jurídica) de neutralidade republicana.

Mossad é uma força estrangeira em território nacional, que segue ordens diretas de Benjamin Netanyahu. É possível que estejamos assistindo a uma das maiores barrigadas da história da Polícia Federal, que tentará, como fez na Operação Hashtag, na qual prendeu um suposto grupo “terrorista” que agiria nas Olimpíadas de 2016, manter a condenação sob conivência da imprensa baseada em nenhum ato objetivo.[ix]

Mas o embaixador não parou. Estava flutuando “no ar como se fosse pássaro”. Acusou os dois supostos terroristas de serem ajudados dentro do país, dando a entender que seria de parte do governo federal. Memes, robôs e engajamentos artificiais tomaram as redes sociais. Jair Bolsonaro, ao fim do dia, alegou que pediu ao embaixador para os brasileiros sequestrados em Gaza por Israel serem libertados. Lógico, nada colou, em virtude da tosquice da armação. Até mesmo a mídia que propagou a operação policial rocambolesca fake evitou falar com destaque nos dias seguintes acerca do “ataque terrorista” no Brasil. A pressão se voltou contra o embaixador e, milagrosamente, a ordem para os brasileiros serem incluídos na lista foi dada por Israel, que controla a fronteira entre Faixa de Gaza e Egito.

O bolsonarismo trabalha com a perspectiva de israelizar de vez o Brasil, promovendo milícias e fundamentalistas religiosos, quando não os dois em um só, como prova o Complexo de Israel,[x] que expandiu sob proteção da milícia.[xi] No caso, a narcomilícia proíbe manifestações religiosas de matriz africana, expulsando pais e mães de santo. Os narcotraficantes evangélicos foram politicamente coerentes na escolha do nome. É impossível dissociar as milicias israelenses expulsando palestinos das narcomilícias cariocas expulsando pais e mãos de santo (africanos).

Na perspectiva evangélica, nada mais justo do que se chamar Israel. Insisto: os aplausos de judeus cariocas a Jair Bolsonaro quando comparou quilombolas a gado foram síntese. Depois, alguns pegaram uma praia na zona sul, onde fica o clube Hebraica. Evitam ir para a Barra da Tijuca, uma semizona sul de “novos ricos, milicianos e subcelebridades” que arquitetonicamente se assemelha a Miami. É preciso ter alguma distinção.

Leonardo Sacramento é professor de educação básica e pedagogo do IFSP. Autor, entre outros livros, de Discurso sobre o branco: notas sobre o racismo e o Apocalipse do liberalismo (Alameda).

Notas


[i] Disponível em https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/06/12/netanyahu-ve-risco-que-bolsonaro-seja-investigado-por-genocidio-de-povos-indigenas-diz-ex-embaixador-do-brasil-em-israel-em-carta.ghtml.

[ii] Para uma crítica ao uso do termo “terrorismo”, ver https://aterraeredonda.com.br/sionismo-etapa-superior-do-colonialismo-anglo-saxao/.

[iii] Disponível em https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2019/05/24/queiroz-pagou-cirurgia-em-hospital-de-sao-paulo-com-r-64-mil-em-dinheiro-vivo.ghtml.

[iv] WHITMAN, James Q. Hitler’s american model: the United States and the making of Nazi Race Law. New Jersey, Princeton University Press, 2017.

[v] Disponível em https://pt.euronews.com/2015/10/21/netanyahu-defende-hitler.

[vi] Disponível em https://valor.globo.com/politica/noticia/2023/10/05/fogo-cruzado-mapeou-12-chacinas-em-area-no-rio-onde-medicos-foram-mortos.ghtml.

[vii] Disponível em https://oglobo.globo.com/opiniao/editorial/coluna/2023/11/operacao-da-pf-que-desbaratou-plano-terrorista-foi-trabalho-exemplar.ghtml.

[viii] Disponível em https://g1.globo.com/mundo/blog/sandra-cohen/post/2020/12/01/por-que-o-assassinato-do-principal-cientista-nuclear-iraniano-e-atribuido-a-israel.ghtml.

[ix] Para uma crítica sobre a Operação Hashtag, ver https://outraspalavras.net/sem-categoria/o-estrondoso-fracasso-da-operacao-hashtag/. Um “condenado” foi morto na prisão por espancamento.

[x] Disponível em https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/07/24/traficantes-usam-pandemia-para-criar-novo-complexo-de-favelas-no-rio-deixam-rastro-de-desaparecidos-e-tentam-impor-religiao.ghtml.

[xi] Disponível em https://extra.globo.com/casos-de-policia/traficantes-evangelicos-fecham-pacto-com-milicia-para-expandir-complexo-de-israel-24821015.html.

"Encruzilhada histórica": Valério Arcary analisa segundo turno das eleições na Argentina

"Quem irá parar a mão assassina de Israel?", questiona Breno Altman do Opera Mundi

o que há de novo?

tensões brasileiras

pensatas do fim de semana

O equivalente a duas bombas atômicas iguais às que foram lançadas em Hiroshima já teriam sido jogadas sobre      Gaza. ONU quer apuração...

Jamil Chade, Uol

A ONU pressiona para que uma investigação seja estabelecida sobre as táticas e armas usadas por Israel em Gaza, alertando que as práticas podem constituir violações do direito humanitário internacional e crimes de guerra.

A mobilização da entidade ocorre no momento em que a Autoridade Palestina submete documentos para a comunidade internacional denunciando que o volume de bombas jogadas sobre Gaza representaria o equivalente a praticamente duas ogivas nucleares largadas sobre a cidade de Hiroshima, no final da Segunda Guerra Mundial.

Nos bastidores, uma das principais preocupações das Nações Unidas se refere ao fato de que, sem uma apuração, a comunidade internacional vai estar dando uma sinalização de que uma ofensiva militar desse porte pode acontecer em total impunidade (continue a leitura)

# Jornalistas dos EUA denunciam cobertura sobre ataques de Israel

# Leia no Opera Mundi

Cinismo de Israel confunde críticas a Netanyahu com antissemitismo

# Acesse o clipping Viver e morrer em Gaza

Milei na frente?

# Leia em Carta Capital e acesse o clipping Eleições na Argentina

O que fazer com o militar

# Gilberto Maringoni sobre o livro de Manuel Domingos Neto

Periferia  e realidade

# Leia no site do IHU

Pesquisa revela disparidades de raça, renda e acesso a serviços nas favelas brasileiras

# Leia na Rede Brasil Atual

120 horas de apagão para você entender a farsa que é o discurso das privatizações

# Leia no Intercept

Chat GPT: a falsa promessa da inteligência artificial

Em artigo publicado no The New York Times, Noam Chomsky, Ian Roberts e Jeffrey Watumull apontam uma reação ambivalente em relação à IA: otimismo e preocupação. Otimismo,  "porque a inteligência é o meio pelo qual resolvemos problemas". Preocupação,  "porque tememos que o tipo mais popular e moderno de IA – o aprendizado de máquina – degrade nossa ciência e rebaixe nossa ética ao incorporar em nossa tecnologia uma concepção fundamentalmente falha de linguagem e conhecimento" (leia mais)

leituras da 6a feira

# Uma redação boa pra caralho: mulheres ficam para trás no jornalismo que preza os super-homens

Fabiana Moraes, do Intercept, faz uma ótima análise sobre a presença das mulheres no jornalismo brasileiro

# A Revolução Digital

Luciano Floridi, pensador italiano, figura de destaque nos estudos da ética da Informação e da Comunicação, conversa em vídeo com os leitores de Outras Palavras. Anote tudo e divulgue a luta em defesa da razão...

A vida como ela é

Caso Evandro: Justiça anula condenações mais de 30 anos após sumiço do menino.

# Leia aqui a matéria da Folha

Um desastre nos ameaça: Tarcísio quer resgatar suas promessas de campanha... 

Na campanha, governador voltou atrás após críticas, mas acabou implementando sua agenda inicial

Artur Rodrigues / Carolina Linhares (FOLHA DE S. PAULO, 09/11/23)

Na campanha para o Governo de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos) chegou a voltar atrás em promessas consideradas polêmicas, como privatizar a Sabesp e acabar com as câmeras nos uniformes de policiais. Uma vez eleito, porém, o governador ignorou os recuos e levou adiante sua agenda inicial.

A privatização da Sabesp, que Tarcísio quer aprovar na Assembleia Legislativa de São Paulo ainda neste ano, não aparece no plano de governo do então candidato, mas se tornou a principal bandeira da sua gestão.

O governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) fala com a imprensa após ataque na Escola Estadual de Sapopemba - Paulo Pinto - 23.out.23/Agência Brasil

O documento fala em "avançar na universalização de água tratada e coleta e tratamento de esgoto, antecipando a meta de universalização de 2033 para 2027, com melhoria da qualidade do serviço e tarifas justas".

Um dos argumentos do governo a favor da privatização é o de que a capitalização trará recursos para antecipar a universalização do saneamento no estado para 2029 sem aumentar a tarifa para o consumidor.

O plano, contudo, fala em conceder ativos como "os aeroportos de Congonhas, Campo de Marte e os portos de Santos e São Sebastião". A Sabesp não é mencionada.

Ainda em fevereiro de 2022, Tarcísio afirmou que iria privatizar a Sabesp. "Chegando lá, a gente vai vender a Sabesp, sim, vai vender a participação na Sabesp", disse em um evento que reuniu empresários e o setor de finanças.

"Eu acho que tem que privatizar a Sabesp porque você ganha eficiência, ganha governança e gera recursos, bota dinheiro pra dentro", completou.

Principal adversário de Tarcísio naquela corrida, Fernando Haddad (PT) passou a responder à proposta, afirmando que a venda da estatal provocaria aumento na tarifa. O candidato do Republicanos, então, mudou o discurso e declarou que iria estudar a privatização da estatal.

"Vou estudar privatização desde o primeiro dia. Se eu chegar à conclusão que a privatização vai promover esse objetivo, vai melhorar a prestação de serviços e proporcionar uma tarifa mais baixa, vamos seguir com a privatização. Mas se a gente observar que a privatização, em alguma medida, pressupõe risco à prestação de serviço, para o cidadão, não faremos", disse em outubro de 2022 à Rádio Eldorado.

No entanto, depois de vencer o segundo turno, Tarcísio declarou em dezembro que venderia a Sabesp, mas os estudos para avaliar a viabilidade da privatização só seriam contratados em abril deste ano.

"Vamos vender a Emae primeiro. Enquanto isso, a gente vai trabalhando naquela que vai ser a grande privatização do estado de São Paulo, que é a Sabesp. Pessoal atacava muito na campanha, dizendo que a conta de água ia aumentar. Mentira, vai diminuir", disse em um evento.

Na campanha, em dois debates, Haddad chegou a ironizar a oscilação de Tarcísio em relação ao tema.

"Você não fala o que você vai fazer. Eu acho que você vai privatizar porque você já falou que ia privatizar. Aí você falou que voltou atrás. Aí você voltou a falar que está pensando, mas a gente não sabe o que você quer fazer com o maior patrimônio estatal paulista", declarou o petista.

Em um dos debates, Tarcísio, ao fazer uma comparação com a Eletrobras, afirmou que a privatização traria investimentos e que a conta iria diminuir para o consumidor.

Outra promessa ruidosa, a retirada das câmeras dos uniformes dos policiais, também sofreu diversas reviravoltas. Na prática, embora o governador tenha desistido oficialmente da sua ideia, ele vem promovendo medidas que enfraquecem essa política.

Na visão do então candidato Tarcísio, as câmeras inibiriam o trabalho policial. O posicionamento recebeu diversas críticas de especialistas no tema e, internamente, até da própria polícia. O programa Olho Vivo fez parte de uma iniciativa que levou oito anos para ser colocada em prática e que era considerada um sucesso.

Diante da reação pública, Tarcísio passou a afirmar que decidiria, ouvindo especialistas e a polícia, se manteria ou não as câmeras. Seu plano de governo abria espaço para as duas interpretações: "Rever política das câmeras corporais".

"Considero que hoje a câmera inibe o policial, tem atrapalhado a produtividade, mas isso é uma percepção. O que a gente vai fazer se eleito? Chamar as forças de segurança e avaliar do ponto de vista técnico a efetividade ou não e o aperfeiçoamento da política pública. Não existe nenhuma política pública que não possa ser reavaliada, reconsidera", disse em outubro de 2022.

Eleito, afirmou que manteria o programa. "A questão das câmeras, eu fui mais crítico na campanha, agora vamos segurar. Vamos manter. Vamos ver o resultado e que ajustes a gente pode fazer", disse ele em dezembro.

O que se viu na prática, porém, foi diferente. Primeiro, a gestão descontinuou um estudo científico que tinha avaliado o impacto das câmeras corporais no comportamento de policiais militares em São Paulo.

No mês passado, em uma nova redução do programa, o governo cortou R$ 15,2 milhões do financiamento das câmeras corporais. Em agosto, o governo já havia retirado R$ 11 milhões.

Em 30 de outubro passado, Tarcísio afirmou não ter planos para comprar novas câmeras. A declaração vem no momento em que a letalidade policial cresceu 86% no terceiro trimestre no estado de São Paulo em comparação com o mesmo período do ano anterior.

Mais um caso em que Tarcísio acabou recuando do recuo foi na nomeação do seu concunhado Mauricio Pozzobon Martins.

No início do ano, Martins foi nomeado como assessor especial do governador. O STF (Supremo Tribunal Federal) estabelece que o nepotismo viola a Constituição Federal, o que abrange concunhados. Tarcísio afirmou que não sabia do veto e cancelou o ato.

No entanto, ele foi eleito em maio passado um dos membros do comitê de auditoria da Desenvolve SP. Em setembro, a remuneração de Martins foi de R$ 16 mil.

Procurada pela reportagem, a assessoria do governo afirma que Tarcísio "está cumprindo rigorosamente o que disse ao longo de toda campanha eleitoral de 2022, em diversas entrevistas, sabatinas e debates" a respeito da Sabesp.

Ou seja, que "o modelo de governança da companhia seria objeto de estudos técnicos e que a desestatização seria uma opção caso se mostrasse vantajosa para a população".

Em nota, o governo diz ainda que o programa de câmeras "tem recursos garantidos para a manutenção dos 10.125 equipamentos atualmente em uso" e que "é incorreta a alegação da reportagem de que o programa esteja sendo cortado".

A respeito do concunhado de Tarcísio, a assessoria afirma que a posse de Martins foi "autorizada pelo Banco Central e está em acordo com a legislação" e que a eleição dele "cumpre os requisitos do regimento interno" da Desenvolve SP.

o que há de novo?

Em vídeo, o seminário de lançamento da revista GIZ


A revista do SinproSp, em seu número de lançamento, promove a discussão sobre a Inteligência Artificial e os riscos que ela representa para professoras, professores, estudantes e... para a própria Educação. Assista ao seminário que marca o início da nova fase da GIZ e abra a discussão do tema nos espaços onde vc atua.

Uma publicação pensada e produzida na linha de frente da democracia e do pensamento crítico

leituras da 4a feira

A diferença entre Covas e a dupla Tarcísio/Nunes: o primeiro foi enganado, os outros dois querem nos enganar...

Como Mario Covas foi enganado na privatização da Eletropaulo

O governador Mário Covas foi enganado ao permitir a privatização da Eletropaulo.  A informação é de Paulo Roberto Feldman, que presidiu a empresa no período. Houve uma reunião no Palácio Bandeirantes com uma grande consultoria americana, presentes Covas, Feldman e David Zylbersztajn. Na época, vendia-se o peixe de que a privatização permitiria competição entre empresas na mesma área de distribuição (Luis Nassif, no GGN)

o que há de novo?

# links para as seções do site

O apagão em São Paulo e o fracasso das privatizações

Transporte, cemitérios, saúde, educação e... energia elétrica. Não há um único setor onde vigora o regime de concessão a empresas privadas que o atendimento ao público funcione. Ao contrário: no episódio do colapso de energia que São Paulo viveu nos últimos dias o que se vê são famílias inteiras, em desespero, buscando quem as possa ajudar a escapar da condição de reféns em que toda a sociedade vive nas mãos da incompetência que caracteriza a a atuação predatória das empresas beneficiadas pela política neoliberal das privatizações. Daqui a pouco, caso vingue a proposta do ensandecido Tarcísio de Freitas, será a vez da água. 

Depois do desastre, o debate

Podcast: o modelo de privatizações em discussão # Enel dobrou o lucro e reduziu funcionários # O custo do enterramento da fiação: o debate sobre o assunto / Nunes prefere jogar dinheiro fora / Presidente da Enel disfarça

pensatas de domingo

Ministro israelense sugere ataque nuclear a Gaza

O ministro do Patrimônio de Israel, Amichai Eliyahu, foi suspenso das reuniões do governo após sugerir um ataque nuclear contra a Faixa de Gaza.

Perguntado em entrevista se uma bomba atômica deveria ser lançada no território palestino, Eliyahu disse a uma rádio local que "essa é uma das possibilidades".

Eliyahu é integrante de um partido de extrema direita na coalizão governista e apoia a retomada de Gaza e a restauração de assentamentos israelenses no território. Questionado sobre o destino da população palestina, afirmou que "eles podem ir para a Irlanda ou para os desertos". "Os monstros em Gaza devem encontrar uma solução por si mesmos", disse (Matéria que a Folha reproduz do canal Porto, de Portugal

Estrelas Amarelas

A indiferença de Israel com o sofrimento dos palestinos, semelhante àquele que seu próprio povo experimentou

Marcelo Guimarães Lima, A Terra é redonda

O poder vitimário e a barbárie naturalizada


“Na reunião do Conselho de Segurança da ONU para a discussão da guerra entre Israel e o grupo palestino Hamas desta segunda-feira (30/10), o embaixador de Israel na ONU, Gilad Erdan, e outros delegados colocaram as estrelas amarelas [emblemas da discriminação nazista dos judeus] em suas roupas com as palavras “nunca mais” escritas”.[1]

O gesto da representação de Israel na ONU significa que, seja lá o que for que faça ou deixe de fazer o Estado de Israel (comandado pela ultradireita e que se afirma pura e simplesmente como representação exclusiva dos judeus de todo o mundo), quaisquer que sejam os fatos e suas ações ou reações, Israel se apresenta sempre como vítima, com exclusão de quaisquer outras vítimas potenciais ou de fato na atualidade e no futuro.

O passado trágico dos judeus de vítimas do holocausto nazista justificaria hoje, amanhã e sempre, o papel atual do autodeclarado Estado judeu de verdugo dos palestinos, pois se trata de uma justificativa de reparação “simbólica” cujo meio é a violência material pura e simples que recai contra uma população sem defesas e sem quaisquer vínculos com o destino dos judeus na Alemanha de Adolf Hitler.

“Guerra entre Israel e o Hamas” é claramente um eufemismo convenientemente utilizado pelas agências de notícias que oculta o longo e contínuo processo de apagamento físico e simbólico do povo palestino iniciado com a criação do Estado de Israel, cuja narrativa idealizada de sua origem e destino contrasta com a crueza dos meios empregados no passado e no presente.

As várias justificativas históricas ou pseudo-históricas e unilateral ou seletivamente “moralizantes”, isto é, “de justiça” na criação da nação israelense em território palestino se revelaram, no curso deste processo, como acobertamento de uma iniciativa de natureza fundamentalmente colonizadora, quer dizer: de apropriação territorial e dominação étnica, e, portanto, violenta por desígnio, cujo modelo histórico foram os nacionalismos e o colonialismo europeu, e contou com o apoio de fato das potências da Europa e dos EUA no século XX como condição essencial de sua efetivação.

Ao povo palestino cabe a expiação pelos crimes da extrema direita nazista na Alemanha. É o que diz clara e absurdamente o gesto da representação israelense, cujo destinatário é, não a consciência humanitária global que se choca e se rebela contra o genocídio palestino, mas o Ocidente branco e cristão e sua absoluta culpa multissecular pelo destino dos judeus na história.

Há aqui uma espécie de chantagem publicamente declarada que visa, por via das dúvidas, garantir a narrativa mistificadora da “guerra de defesa”. Chantagem quase desnecessária, eu diria, já que os interesses materiais e estratégicos dos EUA, com seus vassalos europeus, e o poder do Estado de Israel, aliado e subordinado ao Império Global, coincidem completamente na conjuntura e no ciclo histórico.

Trata-se, no panorama geral, da iniciativa norte-americana de conter a China, dominar a Rússia, reafirmar a subordinação do Sul Global. Neste panorama, estão intimamente relacionadas a guerra por procuração contra a Rússia na Ucrânia, insuflada e financiada pelos EUA, a subordinação política e econômica da Europa, a destruição antecipada publicamente por Joe Biden do Nord Stream e as repercussões negativas do atentado anonimamente realizado para a já combalida economia europeia, a presente ofensiva genocida de Israel contra os palestinos de conquista e domínio territorial, que tem explicitamente como importante objetivo coordenado, conforme a própria liderança de Israel, a contenção das novas rotas energéticas de iniciativa chinesa entre a Ásia, o Oriente Médio e a Europa, como observado por vários analistas.

Estes são elementos de um mesmo processo e estratégia pela qual o Império tenta reverter o esgotamento histórico das suas condições de dominação global. O domínio do Oriente Médio e seus recursos energéticos, incluindo os recursos da região costeira de Gaza apontados por especialistas, é parte vital desta estratégia.

O Estado de Israel, para o infortúnio de seus cidadãos na presente crise, é uma peça nesta máquina de dominação global que, em última instância, ultrapassa as decisões e o poder da sua elite dominante, malgrado a arrogância e violência criminosa dos atuais dirigentes, a ideologia messiânica, a arrogância providencial, sempre incerta de si sob a proteção “divina” pelas armas norte-americanas.

O ataque palestino a Israel, com toda sua dimensão sangrenta e a violência apocalíptica da resposta israelense, eliminou definitivamente o atual processo de normalização comercial e diplomática das relações de Israel com os países árabes da região, como a Arábia Saudita e o Egito. Normalização que significaria um isolamento ainda maior e abandono final da causa palestina como observaram vários analistas.

Essa iniciativa de enorme custo local de uma força minoritária contra um adversário poderoso demonstrou sua racionalidade e eficácia estratégica. A resposta de Israel, multiplicando a violência, apostando na barbárie, demonstra claramente, sob a máscara da fortaleza, a surpresa e o temor de seus dirigentes e os limites práticos e ideológicos da narrativa nacional e étnico-religiosa e repercute nas bases materiais, práticas e históricas do Estado.

Após a desejada e improvável eliminação total do povo palestino e a conquista territorial final, qual o futuro de Israel? A profundidade da crise presente não deixa entrever a simples continuação do status quo ante ou uma resolução definitiva favorável aos planos estabelecidos de hegemonia regional da elite dominante israelense apoiada pelo Ocidente.

O conflito violento e desigual entre palestinos e israelenses se mostra hoje de modo cristalino para todos os que querem ver, e eles são cada dia mais numerosos, como uma das faces de uma crise sistêmica global expressa na crise da hegemonia ocidental que assinala mudanças profundas nos paradigmas históricos herdados no século XXI.

Neste contexto, por detrás das máscaras do poder local e do poder global, o crescimento da violência expressa a insensatez, a arrogância cega, a húbris, a desorientação de fato, as incertezas, as dificuldades e o medo das chamadas elites transnacionais, a ansiedade das classes dominantes globais para com as transformações histórico-estruturais em curso.

Reações que só farão aumentar os desafios, as incertezas, os perigos e os custos da crise global para a população mundial neste período marcado pelo inevitável esgotamento das formas de dominação com as energias de vida aprisionadas, confinadas por um sistema universal de desigualdades, exploração e opressão das maiorias.

Gaza é, a seu modo, a metáfora viva do confinamento e da opressão como destino dos povos submetidos às práticas predatórias dos donos do mundo, da barbárie da dominação e igualmente símbolo da resistência no âmago da destruição e do desespero.

Marcelo Guimarães Lima é artista plástico, pesquisador, escritor e professor.

Nota


[1] https://operamundi.uol.com.br/guerra-israel-hamas/83658/uso-de-estrelas-amarelas-por-delegacao-israelense-na-onu-gera-criticas-do-proprio-sionismo

Cinema argentino repudia Milei

A campanha de Javier Milei prometeu, em meados de agosto, fechar o INCAA, provavelmente a instituição mais bem sucedida na história da Argentina. Pois ontem (2), na abertura do Festival de Mar del Plata, veio a resposta do cinema argentino ao Bolsonaro 2.0. Uma linda resposta! Assista...

# Feio por fora e feio por dentro

Cassação de Moro é dada como certa. A dúvida é saber quem vai para o seu lugar

# Bolsonaro ordenou mais de 30 mil monitoramentos ilegais

Polícia Federal quer saber quem eram os alvos

# Protestos pelo mundo se solidarizam com palestinos

Manifestações também ocorreram no Brasil 

Filosofia da Práxis: Raymond Williams e o marxismo  - parte I e parte II

Celso Frederico em A Terra é redonda

leituras de sábado

o que há de novo?

# links para as seções do site

Déficit zero não faz sentido, diz Bresser-Pereira

Ex-ministro e outros economistas rebatem ataques da imprensa tradicional e dos liberais, que armaram um cavalo de batalha após Lula dizer que “dificilmente” vai zerar o déficit primário no ano que vem (leia mais)

em cima da hora

o que há de novo?

"A Bíblia diz que há momentos de paz e momentos de guerra. É momento de guerra. Israel está separando a civilização da barbárie" (Netanyahu, ao negar o cessar-fogo em Gaza)

# Gaza e a falência moral dos EUA e de Israel, por Aldo Fornazieri

A história pode ser escrita e reescrita, pode ser contada de várias maneiras, mas o seu juízo sempre tem um sentido universal (leia e assista aqui)

Ministério de Israel sugere remoção forçada de moradores de Gaza para o Egito

2,2 milhões de palestinos seriam forçados a sair de Gaza em direção à Península do Sinai, no Egito (leia mais)

# Com mais de 8 mil palestinos mortos, premiê israelense rejeita cessar-fogo (O.M.)

# "Quantas vidas serão perdidas até passarmos à ação", indaga na ONU chanceler brasileiro Mauro Vieira (CC)

# Viver e morrer em Gaza (clipping do site)

Triste lembrança do que foram as transferências forçadas de judeus para os campos de concentração na época do nazismo. O mundo condenou o Holocausto, como faz hoje em relação ao genocídio de Israel contra os palestinos... tratados como gado de corte em sua própria terra

pensatas de domingo

Sadismo: bombardeios revelam política israelense sem objetivos militares. Mundo inteiro condena Israel # Saiba mais em 'Viver e Morrer em Gaza'

Lula disse que só aceitaria um 3o mandato no Planalto se tivesse condições de realizar mais e melhor     # Quo Vadis  # Saiba mais em Lula Três 

Paraná cria pedagogia da vigilância e transforma escolas em espaços orwelianos
# Leia na Públic# E mais: a falta que faz o professor

atualizações

Sergio Moro, feio por dentro e feio por fora, com seu mau caráter, levou o país a entender a podridão dos setores que o apoiaram. A Lava Jato foi a criação dessa gente. Só não viu quem não quis...

o que há de novo?

 # Balanço crítico da Lava Jato

Ciclo de debates realizado na Faculdade de Direito da USP em 26 e 27 de outubro

Evento iniciado na USP em 26 de outubro expôs o xiqueiro em que se transformou a cobertura da operação que falsificou, para a opinião pública, os sentidos da realidade, tudo para impedir que o voto popular consagrasse (como de fato acabou consagrando em 2022) Lula como principal figura da política brasileira e um dos seus principais agentes da mudança social. Acompanhe nesta 1a postagem 'quase especial' da seção O que há de novo os disfarces da mídia revelados por Mônica Bergamo e Luis Nassif. Hoje tem mais...

# Você fazia uma matéria crítica e o resto da imprensa caia para proteger Moro (Monica Bergamo, da Folha)

# Veja manchetava o lixo na sexta e o JN repercutia (Luis Nassif, editor do GGN)

leituras da 5a feira

o que há de novo?

pensatas de domingo

Proposta de Tarcísio de Freitas de reduzir os investimentos em educação pode retirar até R$ 9,66 bilhões de escolas da educação básica. A ampliação de vagas em creches nos municípios também pode ser afetada (leia mais na Folha)

Tarcísio, o inútil, quer retirar quase R$ 10 bilhões de universidades, escolas e creches em SP

leituras da 6a feira

SinproSp lança número 1 da nova fase da revista GIZ

Publicação leva a professoras e professores de todos os níveis as temáticas mais importantes no cenário contemporâneo e que envolvem o desafio pedagógico da construção da cidadania. 

Acesse aqui o arquivo integral desta edição e divulgue a revista nos espaços das ideias comprometidas com a Educação e com a democracia.

Porque gado a gente marca, tange, ferra, engorda e mata, mas com gente é diferente

Vandré, Jair Rodrigues, 1966

leituras da 3a feira

# O capitalismo morreu; agora é o tecnofeudal

Yanis Varufakis

Paulo Henrique Cassimiro

pensatas de domingo

Vivendo, aprendendo e ensinando...

Ensino porque busco, porque indaguei, porque indago e me indago. Pesquiso para constatar, constatando, intervenho, intervindo educo e me educo. Pesquiso para conhecer o que ainda não conheço e comunicar ou anunciar a novidade
(Paulo Freire, patrono da educação brasileira)

verso a verso

Cuidado com o que você lê

A Folha de S. Paulo resolveu deixar clara sua percepção ideológica (e não jornalística) da guerra entre os palestinos e Israel. Numa nota bastante cínica e plena de desinformação semântica e nada profissional sobre o agravamento da tragédia vivida no Oriente Médio, o jornal explica porque chama os soldados do Hamas (e o próprio Hamas) de "terroristas", como se os crimes praticados por Israel contra os árabes desde sua fundação em 1948 não o fossem. O deslize (eu chamaria isso de "crime") da Folha, contudo, não é exclusivo do jornal paulista, mas se espalha como um vírus por toda a "grande" imprensa, e contamina não apenas os fatos relativos ao que está acontecendo em Gaza, mas as narrativas construídas sobre todo o contexto nacional e internacional.  

O site  noticioso The Intercept, em boa hora, elenca uma série de advertências e resguardos que a opinião pública deve tomar em relação a essa modalidade disfarçada das fake news: os fatos são todos verdadeiros, mas o seu enquadramento é mentiroso, o que leva a sua interpretaçãa a ser mais verossimil do que a verdade. Vale a pena a leitura dos textos abaixo.  Mas não é preciso ir muito longe: uma  leitura dos mapas expostos mostram aa razões da guerra interminável  na região de Gaza...

As matérias  da Folha, do Intercept e outras notícias sobre o rigor com que os fatos recentes devem ser lidos e interpretados: * Folha passa a tratar Hamas como organização terrorista * Bloqueio a Gaza agrava colapso humanitário * Os palestinos têm o direito de atacar Israel * A farsa do humanitarismo do ocidente * Facebook apaga críticas a Israel * Guerra, terror e ultraje seletivo * Nada justifica o assassinato de israelenses pelo Hamas

Palestina livre... ou não haverá paz no Oriente Médio

Ataque do Hamas a Israel é a consequência da situação de calamidade humana a que o governo de Tel Aviv levou a Faixa de Gaza e todas as demais áreas palestinas ocupadas desde 1967. E isso nada tem a ver com os judeus ou com os árabes, mas com uma política imperialista posta em prática no Oriente Médio de forma calculada desde a Guerra Fria. Só há uma chance: a retirada de Israel de todas as áreas ocupadas e a assinatura de um tratado de paz supervisionado pela comunidade internacional.

Leituras sugeridas: * Oito perguntas para entender o conflito que já dura 7 décadas (BBC) * Israel declara guerra e inicia novos ataques a território palestino (Opera Mundi) * Reginaldo Nasser: Governo Lula tem visão defasada sobre questão palestina (OM) * O que é o Hamas (DW) 

Quem me dera agora eu tivesse a viola pra cantar

Edu Lobo, Ponteio, 1967

Ulysses Guimarães (1916-1992)

Constituição de 1988: 35 anos de resistência 

A Carta Magna brasileira, considerada uma das mais avançadas do mundo em termos de direitos sociais, foi o resultado possível de uma conjuntura de transição entre a ditadura e a restauração da democracia. Esse foi o espaço - ou a lacuna - de que se aproveitaram as tendências conservadoras para emperrar a radicalidade que teria mudado a cara do Brasil. O resultado é o que se vê: conquistas ainda por implementar e mudanças que deixam o texto constitucional permanentemente sob a pressão das elites golpistas e protofascistas que querem o retrocesso institucional.


Na contramão desse cenário, a resistência. Amplos setores da sociedade civil comprometidos com as conquistas de 1988 têm nas mãos o legado de Ulysses Guimarães - um moderado genial que construiu o consenso dos direitos da cidadania do qual resultou a Constituição. Como símbolo da longa crise brasileira, Ulysses talvez seja uma espécie de representante da utopia política da  negociação e do avanço popular que precisa ser mantida em nome do reformismo social e da democratizaçào profunda do Estado brasileiro.

# Sugiro a leitura do texto de Eugênio Aragão, A Constituição Golpeada (Carta Capital)

leituras da 5a feira

As greves que incomodaram o andar de cima

Na paralisação do Metrô, CPTM e da Sabesp, mídia comercial “compra” o discurso da direita, taxando-a de “greve ideológica”. Visa opor trabalhadores à população. Falhas nas linhas privatizadas mostram o cinismo da reação conservadora. Leia Glauco Faria, em Outras Palavras

cenários

Lava Jato: é hora de a História acertar contas com a mídia tradicional

Houve um conluio criminoso entre o juiz suspeito, os procuradores que usaram o Estado e veículos que cometeram atentados contra a democracia, diz Luiz Costa Pinto no portal 247 (leia aqui). Leia também no GGN: Como a grande mídia foi peça fundamental no xadrez da Lava Jato 

leituras de 2a feira

pensatas de domingo

leituras da 6a feira

Brasil foi o 2o país a propor regulação da IA, mas sofre para aprová-la (leia na Folha)

A colmeia digital

➤  A inteligência artificial torna a humanidade mais estúpida (artigo de Francisco Louçã, em A Terra é redonda)


ONU: "voto do senado sobre marco temporal é negativo para toda a humanidade" (leia aqui)

DESAFIANDO DECISÃO DO STF, SENADO APROVA MARCO TEMPORAL E ABRE CAMINHO PARA O GENOCÍDIO CONTRA INDÍGENAS

Leia aqui a matéria do UOL e a análise de Leonardo Sakamoto sobre o retrocesso aprovado pelos senadores

páginas soltas

Quem controla a economia brasileira

Estudo pioneiro mapeia os grupos que acumularam riqueza e poder, enquanto o país regredia. Quais são? Como se favoreceram com as políticas neoliberais, a ponto de chantagear Estado e sociedade para impor seus interesses? Leia em Outras Palavras o artigo de Eduardo Magalhães Rodrigues.)

Ato na PUC-SP homenageia Nadir Kfouri e desafia Tarcísio de Freitas

“Erasmo Dias não pode ser nome de coisa alguma”, destacou o jornalista Juca Kfouri contra a homenagem do governador ao coronel expoente da ditadura, responsável pela invasão da PUC há 46 anos. Nome da ex-reitora foi saudado em placa de rua por sua atuação e coragem (leia na RBA)

Desenvolvimento x Estagnação

A mídia hegemônica se desespera e transforma o anti-lulismo em pauta central de tudo quanto divulga. A "mais recente novidade" continua sendo o volume dos gastos públicos, que tendem a aumentar - graças a Deus! - com o fim do teto das despesas orçamentárias, tal como foi concebido depois do golpe do impeachment contra Dilma. As evidências não dão qualquer crédito às teorias neoliberais, mas ainda assim vale a pena aprofundar o debate. Nesta postagem, Beluzzo x Pessôa... 

Prefácio de Luiz Gonzaga Belluzzo para o livro Novíssima dependência: subordinação brasileira ao imperialismo no contexto do capitalismo financeirizado, de Lucas Crivelenti e Castro. 

Em entrevista ao Estadão, Samuel Pessôa insiste na velha tese de que política fiscal neoliberal é fator de crescimento econômico. Os fatos mostram exatamente o contrário. 

Franco Bifo Berardi

Ideias fora de ordem, mas no lugar e na hora certa

Pensamento Contemporâneo: uma estratégia de compreensão das anomalias do presente, mais do que uma estratégia de luta...

Pois então...

Estou entretido na leitura da entrevista com o pensador italiano Franco Bifo Berardi publicada pelo site Outras Palavras. Os conceitos e a construção que Berardi faz em torno das ideias que procuram explicar as crises contemporâneas formam um mosaico, mas a figura que resulta disso está longe de ser um amontoado de afirmações sentenciosas como as que estamos todos acostumados a ler e ouvir. Berardi toma o cuidado de alinhavar entre elas uma ontologia que me parece coerente com essa que pode ser uma espécie de 'psicologia da revelação' sobre a intensidade das mudanças que estamos vivendo, em especial quando ele põe o foco sobre os 3 níveis de processos que ocupam sua análise: o da dissolução da subjetividade cognitiva, o das transformações no mundo do trabalho e as mudanças decorrentes da disrupção tecnológica. Esse conjunto forma a essência da cultura neoliberal que Berardi chama de "doença psíquica"; mas descontada a simplificação que um rótulo desses sempre carrega, o fato concreto é que há mesmo no presente uma narrativa que aponta para essas 'anomalias' que vão da guerra ao colapso climático, do esoterismo evangélico à inteligência artificial, das construções identitárias à emergência do fascismo, todas elas constituindo o corpo de investigação teórica que o entrevistado elenca nos vários momentos da sociologia contemporânea.

Penso que a sistematização dessas correntes de pensamento, tal como Berardi tenta fazer, é hoje um dos principais desafios de uma interpretação consistente da atualidade e, por isso, talvez o instrumento eficiente na formulação de uma teoria interpretativa que nos permita organizar estratégias de compreensão, mais do que estratégias de lutas...  

Ricardo Nunes, a síntese do abismo brasileiro

Prefeito paulistano tenta reeleição com artilharia grossa. Apoiado por fundamentalistas e velha mídia, negocia com o governador, e oferece em troca aval à privatização da Sabesp. Sintetiza o pior de dois mundos: o neoliberal e o bolsonarista (leia mais em Outras Palavras e na antologia do site sobre as eleições municipais de 2024)

Atualização:  Ricardo Nunes pagou 16,5 milhões a jornais de bairro de aliados, ex-dono de creche e até políticos de fora de São Paulo

Tarcísio e Nunes: uma aliança que os paulistanos devem repudiar: mau caratismo, incompetência e atraso

páginas soltas

A revolta da extrema direita

As reações da extrema direita às sucessivas derrotas que sofreu em todos os níveis nos últimos dias não se fizeram esperar. É uma revolta descontrolada e raivosa que põe em evidência o principal obstáculo político que o Brasil terá que superar até que consolide a conquista plena dos direitos sociais...

leituras da 6a feira

Bolsonaro e aliados armaram golpe para tentar anular eleições de 2022

Revelações de Mauro Cid colocam ex-presidente a um passo da cadeia (leia mais)

Pelos direitos históricos dos povos indígenas, pelo fim do marco temporal

STF está a um voto de formar maioria pela extinção do marco temporal, um instituto jurídico que abre caminho para a devastação ambiental e libera o genocídio provocado pelos empresários da terra contra as tribos indígenas. Leia as matérias da Folha e do Le Monde sobre o tema.

PUC-SP, 1977-2023

A ditadura brasileira iniciada em 1964, e que durou até 1985, mergulhou o país em longo período de arbítrio e de retrocessos econômicos, políticos, sociais e culturais. Reacionarismo e violência foram suas práticas e seu legado.

Leia mais

leituras da quarta feira

Para que serve Tarcísio de Freitas?

Confronto no STF

Maioerovitch, Josias

Alexandre de Moraes deixa André Mendonça com a dimensão de um roedor 

(Leia a matéria da Folha sobre a 1a condenação de um golpista na história recente do Brasil)

Domenico de Masi (1938-2023)

Tarso Genro:

Faleceu neste 9 de setembro Domenico De Masi, aos 85 anos. Queria-o como a um irmão intelectual mais velho – sempre presente e sempre distante – que recordo com carinho e com a alegria de tê-lo conhecido e recebido seu afeto e até – quem sabe – merecido dele uma certa admiração. Logo depois de ter encerrado meu primeiro mandato como prefeito de Porto Alegre fui convidado, se não me falha a lembrança, pelo prefeito Walter Veltroni, de Roma, para fazer uma palestra sobre a nossa experiência de governo, particularmente sobre a invenção local do Orçamento Participativo

Quando encerrei minha fala visualizei ao fundo uma pessoa que não reconheci à distância, que me acenava: era Domenico. Fui rapidamente até o fundo do Auditório no Campidoglio, onde era realizado o evento, e lá estava ele com a sua simpatia e simplicidade. Meio assustado perguntei “o quê, Domenico, estás fazendo aqui?” Me respondeu com uma voz baixa e conspirativa – irônica e irreverente – “é que a maioria dos políticos aqui na Itália me aborrecem e você não me aborrece”. Imaginem meu orgulho! (leia mais)

Cena brasileira

"Lula viaja pelo exterior com discursos entendiantes, enquanto o Brasil afunda" é a manchete de uma edição recente do Estadão em mais uma pauta de resgate do anti-lulismo, desta vez no discurso idiota e quase tumular de Mangabeira Unger. A Folha não deixa por menos: "Esse crescimento que está aí não se sustenta", diz Affonso Celso Pastore, um dos mais incompetentes presidentes que o Banco Central já teve. A bola de cristal  vem da observação de que o aumento dos investimentos públicos (aqui entre nós: a salvação do capitalismo brasileiro) vai levar ao aumento dos juros - fato que retrairia a economia. Isso tudo apesar das evidêncas, todas elas em sentido contrário.

Na arena política, o cenário é o da expectativa da prisão de Bolsonaro, agora ao que parece definitivamente encalacrado pelas revelações de Mauro Cid depois de ter sido abandonado por seu chefe: "cada um que siga a sua vida", disse o ex-presidente ao se referir ao ex-ajudante de ordens. Pois é o que Cid está fazendo com sua delação premiada, com todo o estrago que ela vai provocar a si próprio e na facção da família inteira do meliante número 1 da extrema direita, cada vez mais irritada com as dificuldades que encontra para sua organização.

Enquanto isso, o marreteiro Tarcísio de Freitas, um homem que ameaça o Brasil, vai acumulando deságio de popularidade em vários movimentos que se desenvolvem ao seu redor, todos eles marcados por uma coleção de recuos, o mais recente deles o distanciamento de Ricardo Nunes que não quer mais saber de intimidades com o bolsonarismo, Mas o "governador", que não é bobo, já rearticulou seu dispositivo militar para compensar as defeções civis, como se deduz do prêmio que deu ao coronel Toaldo Lacerda, um dos principais envolvidos na tentativa de golpe de Bolsonaro no 7 de setembro do ano passado,


Salvador Allende, o reformista socialista que inspira movimentos no mundo inteiro

Chile, 11 de setembro de 1973

"Não vou renunciar! Colocado numa encruzilhada histórica, pagarei com minha vida a lealdade ao povo. E lhes digo que tenho a certeza de que a semente que entregamos à consciência digna de milhares e milhares de chilenos, não poderá ser ceifada definitivamente. [Eles] têm a força, poderão nos avassalar, mas não se detém os processos sociais nem com o crime nem com a força. A história é nossa e a fazem os povos".

Mensagem de Salvador Allende pouco antes de se suicidar durante o bombardeio aéreo do palácio La Moneda, em Santiago, no dia 11 de setembro de 1973.

Leia aqui a postagem completa sobre os 50 anos do golpe no Chile

pensatas de domingo

.Acompanhe aqui a edição de estreia da página, inteiramente dedicada à memória dramática do golpe que depôs Salvador Allende há 50 anos... Uma advertência aos democratas do mundo inteiro.

Histórias impuras

Uma nova seção no site aberta para a contação dos relatos complexos vivenciados pela experiência histórica que marca o cotidiano. 

Abaixo, 3 experiências narrativas da inauguração da página: o jazz, segundo Adorno; a Ciência sob o capitalismo; a herança sanguinária de Pinochet (que o governo do Paraná comemora aos 50 anos do golpe contra Allende).

Pensador alemão, expoente da Escola de Frankfurt, diagnosticou como o jazz integrou os negros à sociedade por meio de estereótipos e representações racistas

Como o mercado comanda o trabalho científico: a universidade-empresa, os métodos de avaliação obtusos... a tirania da “propriedade intelectual”

Governo do Paraná ofende vítimas dos crimes de Pinochet

Material veiculado pela Secretaria da Educação (herança de Feder) expõe o crime  da doutrinação bolsonarista imposta à escola pública

Sobre as grandes fortunas

"Ser rico não é pecado". A elite brasileira segue destilando desprezo e insensibilidade nas página da imprensa corporativa, sua privilegiada porta-voz

Eduardo Borges, A Terra é redonda

Projeto para taxar os “fundos dos super-ricos” despertou a cólera financista, a mesma cólera que defende acabar com o piso da Saúde e Educação

Paulo Kliass, Outras Palavras

A conspiração fracassada: Lava Jato morre pela última vez

Decisão de Toffoli define o destino da maior conspiração contra o Brasil: a armação jurídico-midiática que pretendeu inviabilizar a liderança de Lula e o protagonismo das forças populares no processo político nacional (acesse aqui o dossiê do blog sobre o tema)

leituras de terça-feira

pensatas de fim de semana

Quando a máquina elétrica de debulhar milho chegou ao campo, os peões de estância exclamaram: “Não falta inventar mais nada!”...

Investigação sobre a Esperança: o afeto rebelde

Para Terry Eagleton, só a ação que deseja e espera um mundo transformado é consequente com o ato de se indignar

Marco Temporal: um temporal de indecência

A luta anti-colonial e  humanitária pelo veto do STF à violência contra indígenas

Para desfazer o 'arquivo morto' da História

A arqueologia da verdade nas escavações da antiga sede do DOI-CODI

Milícias e Estado: Mata-se e... fica por isso mesmo

Os mecanismos do poder que alimentam a violência estrutural

Piketty mudou o pensamento econômico do século XXI 

Neoliberais brasileiros ainda não se deram conta disso

O pior é que está tudo documentado

O estafeta de Bolsonaro, Mauro Cid, admite o 'mar de lama' de que participou

  Impunidade dos generais golpistas

A politização das FFAA (...) apenas reforçou a postura da extrema direita

Por que ler Marcuse no século XXI

Menor interesse por Marcuse mostra declínio da utopia das sociedades

PIB cresce

Contra o pessimismo da estupidez neoliberal, só Lula acertou: o Brasil volta a crescer e fica bem na foto

  O coração do Faustão

Ele estava na lista do SUS, que também se vale de critérios técnicos e de  avaliações sérias 

50 anos depois, militares chilenos são condenados pela morte de Victor Jara

Jara, uma das vozes mais proeminentes da música popular da América Latina, foi torturado e morto com 44 tiros após ser detido na Universidade Técnica do Estado. Os oficiais da reserva do Exército Raúl Jofré, Edwin Dimter, Nelson Haase, Ernesto Bethke, Juan Jara e Hernán Chacón, juntamente com Rolando Melo, foram condenados a penas que variam de 8 a 25 anos de prisão. (leia mais).

Crime e castigo: General condenado pelo assassinato de Jara se suicida antes de ser preso

Chile: a História fala por último e fala a verdade

Você compraria alguma coisa dessa gente?

Os meus CDS estão todos em uso e me livram da ditadura das playlists que eu não criei

Os CDs estão de volta

Onda nostálgica faz renascer o Compact Disk e a Geração Z experimenta deixar de lado as redes sociais e os celulares.
Ótimas matérias do Estadão: * O CD voltou * Jovens desenterram ícones dos anos 2000 * Adolescentes luditas 

O capacho fascista

Tarcísio de Freitas navega na mesma corrente de Doria e se abraça no afogamento progressivo de Bolsonaro. Sem projeto para São Paulo, nem para o estado nem para a capital, o marreteiro ensandecido corre  em busca daquilo que 'pintar' (leia mais)

E ainda: O governador sem nenhum caráter se esquiva de justificar homenagem a Erasmo Dias

Militares que atentaram contra a Constituição em 8 de janeiro ganham salvo-conduto e o Exército brasileiro pode manter indefinidamente sua posição de partido fardado que arbitra e tutela a livre manifestação da sociedade civil. A conciliação que marcou o fim da ditadura e que transformou a constitucionalidade em terreno da insegurança da representação política, com o amplo espaço que isso permitiu ao fascismo bolsonarista e seus aliados, sai instituída como prática disponível e intermitente sempre que o povo colocar em xeque o sistema de poder. A lógica para resolver o impasse é simples: os militares têm que se submeter radical e integralmente à lei.

Pois então...

O tema da intromissão dos militares na esfera da deliberação política da sociedade civil brasileira deve ser o mais frequente nos estudos sobre nossa história contemporânea, pelo menos em torno do longo período que se estende da Guerra contra o  Paraguai até essa trapalhada do 8 de janeiro. A diversidade de análises no entanto, parece conduzir a um conjunto de referências conclusivas sobre a natureza desse processo, entre elas a de que as Forças Armadas  (e não apenas o Exército) acabaram por se constituir  em verdadeira força de ocupação do país inspirada no terreno ideológico pela doutrina da segurança nacional como instrumento da dominação imperialista e como pacto pela interdição do regramento democrático - sempre que em torno desse regramento se formulasse um projeto de emancipação nacional e popular.

Talvez essa seja uma peculiaridade da forma leniente com que a democracia foi restaurada no Brasil: a complacência com os crimes do período de exceção e a absoluta ausência de qualquer responsabilização pela conduta de seus protagonistas, ao contrário de outro países - Chile, Argentina - onde torturadores e os que se valeram do fechamento institucional para silenciar a sociedade foram punidos com rigor. Essa lacuna de uma Justiça histórica atuando como pedagogia tornou parte dos militares brasileiros arrogantes e prepotentes, um núcleo da corporação acima da lei e intimidatória. O resultado é o que estamos vendo: uma acrobacia parlamentar e midiática para que os reponsáveis pela tragédia dos anos bolsonaro (e dos anos anteriores a ele) sejam absolvidos sem que sequer tenham sido investigados. Se a conclusão do relatório da CPI aliviar dessa forma estaremos sendo vítimas de uma farsa... e voltaremos a pagar por isso... 

Leia mais: * A notícia sobre o afago da CPI * Tratar golpista como lobo solitário é ideia absurda e temerária * Exército diz ter dificuldade para desligar até oficial sequestrador * Terrorismo militar *  Antologia sobre o tema do blog da 1a geração: acesse aqui.

pensatas de domingo

As ideologias e a subjetividade interpelada

Os modernos demiurgos

Se hace el camino al andar

Mudança geracional ou agonia de movimentos


Em outubro

O Sindicato dos Professores de São Paulo (Sinprosp) relança um dos seus principais projetos - a Revista Giz. Em pauta, artigos e debates em torno de três áreas que reunem as preocupações que norteiam nossa atividade profissional: Educação, Cultura e Trabalho. 

Giz pretende produzir reflexões que se constituam em referência para toda a categoria porque é no Sinprosp que se articulam nossas lutas, nossas utopias e a defesa da dignidade de nossa prática pedagógica e cidadã.

A nova Giz volta em outubro

leituras de sexta-feira

leituras em A Terra é redonda

Por Josué Pereira da Silva

Por José Raimundo Trindade

Considerações sobre o livro de Gabriel Cohn, por Horacio Gonzales

Getúlio Vargas, 24 de agosto de 1954

A  Era Vargas fez emergir (como mostra a formidável manifestação popular no féretro que acompanhou o corpo de Getúlio pela orla do Rio de Janeiro) os trabalhadores como protagonistas da modernidade brasileira, sempre interditados pelos interesses do imperialismo e das elites nacionais. Seus herdeiros políticos, como João Goulart (no centro da foto menor, à direita), também pagaram algum preço pela ousadia de pensar um Brasil mais justo. O desafio ainda está aí.


Carta-testamento de Vargas:


Mais uma vez as forças e os interesses contra o povo coordenaram-se e novamente se desencadeiam sobre mim. Não me acusam, insultam; não me combatem, caluniam, e não me dão o direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes. 

Sigo o destino que me é imposto. Depois de decênios de domínio e espoliação dos grupos econômicos e financeiros internacionais, fiz-me chefe de uma revolução e venci. Iniciei o trabalho de libertação e instaurei o regime de liberdade social. Tive de renunciar. Voltei ao governo nos braços do povo. A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho. A lei de lucros extraordinários foi detida no Congresso. Contra a justiça da revisão do salário mínimo se desencadearam os ódios. Quis criar liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas através da Petrobrás e, mal começa esta a funcionar, a onda de agitação se avoluma. A Eletrobrás foi obstaculada até o desespero. Não querem que o trabalhador seja livre. Não querem que o povo seja independente. 

Assumi o Governo dentro da espiral inflacionária que destruía os valores do trabalho. Os lucros das empresas estrangeiras alcançavam até 500% ao ano. Nas declarações de valores do que importávamos existiam fraudes constatadas de mais de 100 milhões de dólares por ano. Veio a crise do café, valorizou-se o nosso principal produto. Tentamos defender seu preço e a resposta foi uma violenta pressão sobre a nossa economia, a ponto de sermos obrigados a ceder. Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma pressão constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo, renunciando a mim mesmo, para defender o povo, que agora se queda desamparado. 

Nada mais vos posso dar, a não ser meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida. Escolho este meio de estar sempre convosco. Quando vos humilharem, sentireis minha alma sofrendo ao vosso lado. Quando a fome bater à vossa porta, sentireis em vosso peito a energia para a luta por vós e vossos filhos. Quando vos vilipendiarem, sentireis no pensamento a força para a reação. Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta. Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência. 

Ao ódio respondo com o perdão. E aos que pensam que me derrotaram respondo com a minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue será o preço do seu resgate. Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora vos ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História. (Rio de Janeiro, 23/08/54 - Getúlio Vargas)

Leituras sugeridas

leituras de quarta-feira

As forças de ocupação e o lixo fascista

 Militares lideram uma horda de bandidos e é a isso que se resume seu papel na história recente do país

Pois então...

A esta altura já está claro o sentido da articulação civil-militar que resultou do frágil processo de redemocratização do Brasil: tratou-se de um tipo de regime que assegurou, em especial nas mãos do Exército, a continuidade histórica de seu papel de árbitro tutelar das tensões decorrentes da complexidade da sociedade brasileira... pelo caminho da solução autoritária dos conflitos de toda a natureza que estiveram represados durante a ditadura. Muita coisa ainda será escrita sobre esse tema, mas a implosão do bolsonarismo e a verdadeira enxurrada de registros do bordel em que o país se transformou sob a tutela do empresariado e dos militares são dois processos que cobram uma profunda revisão institucional de nossas práticas políticas.

Penso que o ponto número 1 desse roteiro deve ser a revisão constitucional e doutrinária do papel das Forças Armadas no regramento democrático, não apenas através de um amplo inquérito em torno da sua responsabilização (e a de seus cúmplices em todos os setores) nos crimes cometidos ao longo de seis décadas, mas também na especificação rigorosa da sua atribuição funcional com destaque para a plena subordinação dos militares ao poder civil.   

A História tem muitos exemplos de conjunturas que passaram por mudanças qualitativas em decorrência do acúmulo de contradições evidenciadas em situações de crises como a que estamos testemunhando no país desde o desdobramento das eleições de 2022 e da tentativa do golpe de 8 de janeiro. O mero indiciamento e a condenação dos envolvidos no aparelhamento do Estado pelo bolsonarismo não é garantia de estabilidade institucional; ao contrário: a imobilidade diante dos fatores que geraram o que a sociedade está assistindo se transforma em alimentador de seus agentes, motivo que me parece justificar a revisão a que me refiro. As matérias abaixo (algumas para assinantes) parecem confirmar isso.

A queda de Bolsonaro e o futuro das Forças Armadas (Uol) * Comandante tenta unir Exército e prega legalismo (Folha) * Exército terá que conviver com o fantasma do folpe bolsonarista (Folha) * Os kids pretos (Piauí) * As mentiras que o general contou na CPI * Aliados de Bolsonaro planejaram usar 1,5 mil militares em golpe (Uol) * O general Etchegoyen e a covardia (Uol) * A conta das Forças Armadas (Outras Palavras).

E ainda: * O que fazer com os militares (Folha) * Militares querem limpar a própria barra (Folha) * A reforma militar (A Terra é redonda)

ACM Neto defende a candidatura de Kim Kataguiri a prefeito de São Paulo

Leia a matéria da Folha e conheça a história da sigla dos fascitinhas golpistas nesta antologia:  

"Show de bola" de Tarcísio e Feder. Uma vergonha!

Discurso muda outra vez: agora, livros didáticos (definidos antes como 'rasos' e inadequados) vão enriquecer as escolas


Má fé, estupidez e incompetência em dose dupla

pensatas de domingo

Fora com essa gente!

Sugiro duas leituras da edição da Carta Capital desta semana (aqui) - a matéria que fala sobre essa figura desprezível que é o Sr. Feder, o pulha que o exasperado e inseguro Tarcísio de Freitas "arrumou" como o secretário da Educação de São Paulo. Feder faz o jogo de seus interesses empresariais em cima de um crime: o apagamento da cultura letrada dos estudantes da rede pública (que ele subestima) sob o pretexto de que os livros perderam sua função educativa no mundo que ele imagina viver. A sociedade precisa varrer esse sujeito do governo (pg.28)


A outra matéria é o resgate do processo que instituiu a política de "distensão" da ditadura ao final do governo Geisel. Ali está a gênese dessa força de ocupação em que se transformou o Exército e que observamos agora na extensão escabrosa dos crimes cometidos por Bolsonaro e apoiadores de farda e sem farda, mas todos sem qualquer vergonha do que fazem com o país (pg.10).

A ofensa

A mais contundente denúncia sobre a farsa da política que Feder quer impor a São Paulo: assista e divulgue

  No alto, à esquerda, a bela imagem do motivo que levou professores às ruas nesta semana: o protesto contra a ofensa que o embusteiro Tarcísio de Freitas praticou contra os brasileiros ao proibir os livros nas escolas estaduais. Nas demais fotos, no sentido horário, Laranja Mecânica, O Império dos Sentidos, Sacco e Vanzetti, Living Theatre e o Balé Bolshoi, registros de outras manifestações culturais vítimas do  mesmo crime. É um capítulo da nossa história recente que nos humilha diante do mundo... e de nós mesmos.

Pois então...
Estou analisando com meus alunos da PUC-SP aquela que considero a marca principal da cultura contemporânea nesta etapa da modernidade: a luta pela construção identitária de inúmeros segmentos sociais que reivindicam o pleno estatuto da cidadania, e a reversão progressista de todos os resquícios ideológicos que negam o reconhecimento da alteridade como princípio elementar da sociabilidade. Uma feliz coincidência: trato esse conjunto de questões com base na obra de Stuart Hall, autor com o qual divido as reflexões feitas com a turma no livro fundamental de Sueli Carneiro - Dispositivo de Racialidade. 

Esse pequeno registro vem a propósito do conceito de epistemicídio com o qual Carneiro amplia sua análise sobre o processo de 'apagamento' - ou bem mais definido como 'extermínio' - do universo simbólico que caracteriza os povos vítimas do processo colonial e que se seguiu (ou correu paralelo) às práticas genocidas incidentes nas áreas periféricas do capitalismo. Para Boaventura de Sousa Santos, que Carneiro acompanha na sua análise, o epistemicídio é a eliminação do conjunto de práticas 'estranhas' que o colonizado desenvolve em todas as suas práticas originais e que são vistos pelo colonizador como o impedimento de sua definitiva desqualificação humana (Carneiro, 2023, pgs 87-120).

As reflexões permitidas por essa análise é que me levaram a sugerir à classe o caráter permanente que a prática do epistemicídio adquire no Brasil ao longo de sua história recente (aqui compreendida a partir dos processos de modernização que caracterizaram a chegada ao poder de uma burguesia industrialista aliada a setores agrário exportadores), prática que se manifesta na repressão cultural aos movimentos dos grupos subalternos tanto em sua perspectiva nacional quanto internacional a partir de abordagens estético-conceituais que operam na dialética da própria cultura. Esse pode ser o mais abrangente fundamento político da aversão que as classes dominantes nas áreas coloniais mantém historicamente com as manifestações simbólicas contra-hegemônicas das várias camadas sociais que lutam por sua emancipação e pelo reconhecimento de sua identidade.

Os exemplos que mostram essa articulação entre as duas práticas de apagamento apontadas por Boaventura de S. Santos - a física e a simbólica - estão bastante presentes nos casos em que a sociedade brasileira foi duramente agredida pelas políticas repressoras que vitimaram a Cultura em todos os níveis, inclusive na conexão cosmopolita de suas formulações estéticas e discursivas. Ponho em destaque na colagem ao lado a evidência de uma política orgânica das classes dominantes brasileiras - em claro (agora de forma absolutamente evidente como demonstra o período Bolsonaro) alinhamento com a 'gendarmeria' em que se transformaram as Forças Armadas.

Esse é, penso eu, o significado maior desse absurdo (com toda a lógica que o absurdo tem em situações dessa natureza) veto ao livro na educação pública derminada por essa dupla de farsantes do governo do estado: o governador e seu suspeitíssimo secretário da Educação. Trata-se de um golpe epistemicida no coração mesmo da identidade nacional que advém do ensino - um sistema que articula um projeto nacional e autônomo de desenvolvimento, sempre que radicalmente democrático aberto e a serviço dos interesses públicos. É essa a lógica das práticas neoliberais, é essa a lógica do bloqueio da subjetividade identitária. É essa a ofensa de Tarcísio e de sua camarilha feita contra toda a sociedade brasileira.  

Tiro pela culatra: reação popular e decisão da Justiça obrigam Tarcísio a recuar e livros voltam a ser usados nas escolas públicas paulistas 

Aos gritos, ameaçando pegar a marreta e inconformado com mais uma derrota sofrida por sua estúpida gestão, o governador anunciou que as escolas públicas voltarão a fazer parte do programa nacional do livro didático do governo federal. O recuo de Tarcísio foi provocado por decisão da Justiça que apontou os prejuízos aos estudantes que os desmandos do governador e de seu secretário da Educação provocariam, caso ficassem impunes (leia mais).

Latifundiários canalhas, tirem as mãos do MST

Stedile desnuda circo da CPI para criminalizar 500 mil famílias assentadas e propõe discutir a realidade agrária do país
Leia mais na RBA e em Outras Palavras

João Pedro Stedile acusa CPI de tentar criminalizar os movimentos sociais

Afinal, Bolsonaro pode mesmo ser preso?

Pode sim, e isso talvez não demore muito
Leia aqui a matéria de Rafael Mafei, na Piauí

Um ex-presidente à altura do que foi seu mandato

para ler em Outras Palavras

Cinismo e suspeita: governo paulista vai comprar 200 milhões de livros digitais sem licitação 

(leia aqui)

O inimigos do livro (Edilson A. C. da Silva, Folha)
Nossos alunos precisam de livros? (Jaime Pinsky, Estadão)

Eu espero que alguma dignidade que tenha restado do Legislativo paulista desemboque num processo de impedimento contra Tarcísio e contra Feder por planejarem a morte da inteligência e do futuro

EXTRA: A FARSA QUE FEDER MONTOU NO PARANA E QUE QUER REPETIR EM SÃO PAULO

ASSISTA E DIVULGUE

pensatas de domingo

As imperdíveis matérias na Ilustríssima de hoje sobre Millôr Fernandes

Minha reverência pelo Millôr:

Passei parte da manhã deste domingo me deliciando com as homenagens feitas (em especial na Ilustríssima) ao Millôr Fernandes, que completaria 100 anos na próxima semana. Sempre gostei do Millôr, principalmente pelo liberalismo anárquico que ele exercitou nas atividades que desenvolveu. Se a essa postura faltava coerência ideológica, sobrava coragem em dizer o que dizia.

No entanto, de tudo  quanto li hoje senti falta de um momento em que o jornalista acertou a medida entre as duas pontas: o editorial do Pasquim (1975) que, livre da censura, foi apreendido imediatamente nas bancas justamente pela denúncia que fez - em texto do Millôr - sobre o arbítrio que a "distensão" de Geisel sobre o jornal representava. O texto é delicioso e sugiro que seja lido com o olhar posto no espírito desobediente com que o assunto é tratado.

Olhando ao redor das demais notícias em destaque publicadas hoje - todas elas invariavelmente dando conta dos escândalos canalhas de Bolsonaro e quadrilha, confesso que senti falta de alguma coisa parecida com o escárnio com que o Millôr tratava os militares.

Tudo isso, inclusive a charge que levou a censura a proibir o próprio Millôr nas páginas da Veja (lembram?) está nos textos e nas imagens abaixo.

A vez de Bolsonaro e de sua quadrilha

Enxurrada de evidências das práticas dos crimes que cometeu - em especial aqueles que tinham o objetivo de fraudar as eleições de 22 - apontam para o mesmo desfecho: a prisão de Bolsonaro e a de seus cúmplices. 

Acompanhe aqui as matérias que falam sobre o destino da bandidagem bolsonarista.

Direita continua inconformada e abre frente regional contra Lula

Ops! Rolou na mídia com muita intensidade no fim de semana a notícia da armação de uma frente sul-sudeste que pretende aprofundar o desequilíbrio econômico e social que caracteriza as regiões brasileiras. É uma descarada proposta de reduzir os recursos destinados ao Nordeste a partir da formação de um bloco de poder que se contraponha a Brasília. Falando claro: trata-se de um crime que não tem nada de democrático e que se desdobra em várias dimensões. A primeira é a constitucional porque a ideia vai na direção oposta ao princípio do federalismo; a segunda tem a marca da perversidade social: a consolidação do desequilíbrio pretendida pelos 3 governadores estabelece a consagração da pobreza em que já vivem as populações das áreas discriminadas; a terceira é gravíssima: o projeto tem o objetivo de inviabilizar as políticas federais (leia-se "do governo Lula") de desenvolvimento das regiões mais pobres. O que Zema e seus seguidores querem é quebrar a hegemonia do projeto de equilíbrio social que venceu as eleições de 2022.

Estamos diante de um novo tipo de conspiração. Bom seria que, diante da gravidade criminosa da proposta, as assembleias legislativas dos estados governados por esses caras decidissem pelo afastamento de cada um deles do cargo que ocupam. 

pensatas de domingo

 Pois sim... 

Após pressão, governo de SP recua e vai imprimir e encadernar livro digital para alunos

Tarcísio de Freitas, um colecionador de desmandos, entre marteladas e com os cheiros da morte e da ignorância que se espalham ao seu redor, sofre outra derrota, mas o ovo da serpente alimenta suas pretensões 

Que estranho... Imagens do destempero raivoso do "governador bolsonarista" Tarcísio de Freitas evaporam das redes. Mas o link (aqui) para a matéria da Poder 360 continua ativo. Vale a pena guardar isso..

  Instinto selvagem

Na sequência das fotos, a lamentável e doentia explosão do ódio contido (sabe-se lá desde quando) no espírito de Tarcísio de Freitas. O episódio (assista aqui) marcou o leilão, em março, de um trecho do Rodoanel e mostrou o destempero do governador bolsonarista, mais próximo de alguém disposto à violência do que um administrador que 'vendeu' aos eleitores a imagem do jovem moderno e empreendedor. Pura balela! Tarcísio é um cara sombrio que nos ameaça, como parece ter ficado evidente agora na sua posição vacilante em relação à chacina do Guarujá (já não bastasse a higienização social que ameaçou promover na Cracolândia). Na Alemanha dos anos 30 essa ideologia tinha nome, sobrenome e endereço...

Leia mais: * Mortes no Guarujá superam 1o trimestre na baixada santista e em 14 cidades do interior * Conselho quer que mortes sejam investigadas como chacina * PM atirou 34 vezes e matou 7 em 42 horas * Ouvidoria apura mais mortes * Gritos e tortura * Tarcísio soa absurdo * A lógica da Operação Vingança * Tarcísio vira refém da PM * Tarcísio adere ao discurso linha-dura * Chacina por vingança * Carta aberta ao ministro Flávio Dino

As variações de julho e as aulas de volta

Inteligência artificial: utopia ou distopia? 

Acesse aqui a antologia de textos sobre a discussão que tomou conta do noticiário 

Interesses privados afundam Brasil na pobreza e... comemoram


Curiosa a matéria publicada na Folha na 6a feira 23 de junho sobre o mega empreedimento imobiliário na zona sul de São Paulo: ao lado da suntuosidade, o caos da miséria imensa (leia mais) 

Lemann (no centro), Sucupira e Telles: bandidagem neoliberal

Capitalismo brasileiro: o reduto dos escroques

Levantamento inédito que lista, categoriza e tipifica todas as ações potencialmente criminosas de Jair Bolsonaro

Leia mais e colabore na divulgação (acesse aqui)

O PL 2630 como parte da guerra cultural da extrema direita

Wilson Gomes, na Folha

Hordas avançam sobre os princípios da racionalidade iluminista e querem reduzir a cultura a trapos do obscurantismo. Fora com essa gente!

* Extrema direita deturpa ideia de censura (Sakamoto) * Big Techs: o lobby mais poderoso do mundo (Intercept) * As big techs é que estão sendo derrotadas (R. Azevedo) * A CPI e a volta da extrema direita (F. Barros e Silva)

A força e o futuro da extrema direita no Brasil (Safatle) A regulação das plataformas e o projeto nacional (Bolaño)

O arcabouço fiscal

Folha de S. Paulo: jornalismo e cinismo

Democracia forte requer objetividade jornalística qualificada, mas veículos poupam mercado financeiro, fardados e empresas em seus noticiários.

Leia Fabiana Moraes, Intercept

O que não tem conserto

Nora Krawczyk, Márcia Aparecida Jacomini e Monica Ribeiro da Silva (IHU)

Pela revogação da Lei 13.800, contra a infâmia das elites e a morte do futuro

Otaviano Helene (A Terra é redonda)

Bolsonarismo representa forma de entender o mundo, é estruturante, diz socióloga
Esther Solano confunde causas com consequências e acaba por naturalizar Bolsonaro como figura de representação dissociada de suas bases sociais de apoio (leia mais).


Acaba a farsa da 'redendora'!

Exército põe fim às comemorações do golpe de 64 (leia aqui)

Mais: * Por recomeço, militares se aproximam do STF e de Lula * Após Bolsonaro * Água mole em pedra dura * As esquinas em que os generais se perderam

Prêmio Nobel da Economia em 2001, Stiglitz contesta princípios monetaristas do mercado e bate pesado no capitalismo neoliberal

Esquerda gere melhor economia e Lula está certo sobre juros, diz Nobel

Para economista, agenda econômica da direita levou a baix0 desempenho enquanto projetos da esquerda mantém foco no  crescimento inclusivo (leia mais).

Leia ainda: * Austeridade Fiscal (Paulo Kliass) * O que é o arcabouço fiscal proposto por Lula e Haddad (G1)

Bolsonaro: verdade e mito

Construção semiótica da figura de Bolsonaro é objeto de pré-ensaio escrito por Miguel Antunes Ramos (leia aqui) a partir de observações de documentário ainda em produção. Segundo o autor, teria sido essa a estratégica responsável pela idolatria irracional de parte da sociedade em defesa de um bandido. Às vésperas de sua prisão diante do volume de crimes que cometeu, o capitão fascista pode se deparar com o mesmo destino de outros heróis com os pés de barro: a indignação que cobra da mentira o rigor da história.

Carnaval, povo e História: blocos paulistas arrastam multidão com música e entusiasmo pró-Lula

Matérias da Folha exibem enraizamento democrático do Carnaval e consagram alegria popular contagiante

(leia aqui e mais)

Investigações avançam e se aproximam de Bolsonaro

Nos bastidores do Judiciário e entre políticos a avaliação é que o cerco em torno do ex-presidente vai se afunilando, fato que alimenta as expectativas de que o desfecho de todo o isolamento da extrema-direita culmine em prisão ou no exilio de seu lider (leia mais)

Chamar a coisa pelo nome: vitória de Lula é o fim do ciclo reacionário iniciado com o GOLPE contra Dilma Rousseff em 2016

O cidadão menos avisado pode pensar que é apenas uma questão semântica a discussão em torno da definição do movimento que derrubou Dilma Rousseff. Não é. O que a precisão conceitual - que se traduz na nominação do que foi a queda da presidenta - nos ajuda a entender é o significado do que aconteceu com o Brasil no período que se encerra agora com a eleição de Lula: o retrocesso que acaba de ser derrotado não é fruto do acaso, mas decorrência do embate entre dois projetos para o país: o neoliberal e o social.  Vale a pena a leitura das reflexões abaixo para que a percepção da realidade política não se perca no descuido com a história.

As motivações golpistas do impeachment 

O fascismo de mercado e a alternativa de Lula 

O golpe e sua derivação

A conciliação que nos trouxe até aqui

Na redemocratização brasileira, discurso de pacificação foi pretexto para não punir responsáveis pela violência do Estado durante a ditadura (artigo de Lucas Pedretti, piauí)

Vestígios de dignidade democrática de militares brasileiros podem crescer no cenário político

General Tomás Miguel Ribeiro Paiva e Marechal Lott , compromisso com a democracia

Veio da companheira Silvia, do SinproSp, a primeira alusão que li na tarde em que Lula demitiu o General Júlio Cesar de Arruda do comando do Exército (leia mais aqui) sobre o significado que teve para a democracia brasileira a ação do Marechal Lott, em 1955, quando a camarilha fascista do Exército brasileiro tentou impedir a posse de JK. A referência de Silvia foi colhida no artigo de Luis Nassif que contextualizou as raízes dessa espécie de 'força de ocupação' em que os militares brasileiros se transformaram. Nada indica que os fatores da crise tenham sido superados com a troca ordenada por Lula, mas a julgar pelo comprometimento das três 'armas' e de seus hierarcas com as práticas corruptoras e corruptas de Bolsonaro, é possível supor que se abre no cenário político uma nova etapa. Nos boxes abaixo, uma breve antologia das matérias direta ou indiretamente relacionadas ao episódio.

Lula adverte conspiradores e promete punição rigorosa para os envolvidos no golpe de 8 de janeiro

Em entrevista à Globo, presidente analisou papel dos militares e de Bolsonaro na conspiração contra sua eleição. Foi mais que uma entrevista; foi um pronunciamento.

* A íntegra da entrevista a Natuza Nery (se preferir, ouça o podcast)

É hora de o Brasil apontar o dedo para as Forças Armadas e desembarcar do cinismo golpista

Quem oprime o Brasil?

Terror em Brasília II

Morte à Cultura

Painel "As mulatas", de Di Cavalcanti, atacado com a ferocidade da ignorância bolsonarista em Brasília

Só mais 72 horas

"A história dos bolsonaristas radicais em Brasília, a espera por uma decisão que não veio e o que acontecia enquanto isso fora do movimento golpista".

No G1, a melhor matéria sobre a crise que culminou na barbárie fascista de 8 de janeiro. Para ler e divulgar (acesse aqui).

As cenas da tentativa de golpe desferida por Bolsonaro e seus aliados civis e militares em 8 de janeiro, ao contrário do que pode parecer, mostram o colapso do poder das elites no Brasil. Sem conseguir sucesso no desespero em tentar assegurar o governo pela via eleitoral e sem qualquer projeto que a legitimasse, à armação política ensaiada pelo bolsonarismo não restou alternativa senão a da ocupação física do centro do poder nacional. Por mais impactante que essa aventura possa ser, ela revela fragilidade e seu fracasso reforça a hegemonia dos movimentos sociais e a consolidação democrática.

Por que a seleção de Messi está na final e a de Neymar não? 

A Argentina está na final da Copa. O Brasil não. A Argentina usou seu time principal em todos os jogos que fez até agora, o último deles nesta terça-feira, diante da Croácia, a mesma que mandou a seleção brasileira para casa mais cedo. O Brasil preferiu descansar seus titulares em um jogo e se valeu de todos os 26 convocados no Catar. Messi assumiu o time e contagiou o país. Neymar foi mais uma vez um jogador comum em seu terceiro Mundial (continue a leitura)

Terror em Brasília I

Insurgência assassina contra a democracia exibe vocação fascista de Bolsonaro e de seus seguidores e põe sociedade brasileira em estado de alerta contra os que querem amordaçar a livre manifestação de sua vontade.

* Inspirador da baderna, Bolsonaro tem que ser punido Bolsonaristas espalharam botijões de gás e atacaram viaturas. Ninguém foi preso * Bolsonaro silencia, mas é visto como cúmplice do vandalismo

* Estadão: mapa de vídeos reconstitui vandalismo bolsonarista em Brasília

 * Acesse aqui a matéria do G1 sobre o ensaio do golpe bolsonarista na diplomação de Lula. 

Vivendo e aprendendo

Essa apropriação ilegítima dos simbolos nacionais promovida pelo fascismo bolsonarista mostrou ontem sua extrema fragilidade, e eu aprendi mais um pouco sobre a natureza social do imaginário, como se não bastassem os exemplos deixados pela ditadura militar que tentou, nos anos 70, fazer a mesma coisa. O fato concreto é que em torno da seleção de futebol - como de resto em outras manifestações coletivas arraigadas à nossa formação cultural - aglutinam-se disposições políticas de massa que nem sempre se tornam instrumentos da mobilização totalitária, podendo resultar no oposto à sua intenção original. 

Isso parece ter ficado evidente no contexto da vitória do Brasil sobre a Sérvia e no extraordinário poder catártico da organização coletiva como instrumento de luta - condições que caminham na contramão do projeto fascista que a vê (a organização coletiva) como instrumento passível da manipulação messiânica. O resultado foi o que se viu em torno da figura mítica construída por Richarlison ao assumir a condução da vitória do Brasil - condução essa rapidamente incorporada pela torcida na sua mais ampla significação democrática.

A lição é esta mesma: inviabilizar a apropriação fascista dos valores coletivos e torcer como se cada um dos signos desses valores fossem, como de fato são, territórios de disputa ideológica e política.

Leia também: * O atleta festejado dentro e fora de campo * Bolsonaristas vaiam vitória do Brasil * Richarlison é o ídolo que os brasileiros merecem depois de tanto sofrimento * Por que 'pombo'?

Richarlison: "Ultimamente, em toda entrevista que eu dou, uma pergunta é certa: ‘Por que você se posiciona?’ Mas talvez o melhor fosse ‘Por quem você se posiciona?’ É muito importante que isso fique claro. As pessoas de onde eu venho não têm voz e nem vez. Poucos, até hoje, procuraram saber o que é importante ou o que falta para que elas vivam melhor. No Brasil é assim, muitos só recebem atenção em época de eleição. Falando nisso, vocês sabem, eu nunca tive um partido político. Para ser sincero, nem me interesso, porque não preciso de um para saber que é errado faltar energia elétrica por 22 dias em um estado inteiro. Ou ainda que é um direito básico ter comida na mesa, saúde, educação e moradia. Também nunca entrei num laboratório. Ainda assim, eu posso dizer a todos que a ciência é a nossa única saída em todos os momentos. Eu vejo isso no meu dia a dia como jogador. Meu corpo precisa da ciência e da medicina para que eu possa fazer o que mais amo. Bom, eu sequer terminei meus estudos. Mas não é necessário um diploma para enxergar que muita gente é intimidada, encurralada e morta pelo racismo todos os dias no Brasil. Li numa matéria que 75% da população pobre é preta, e que 76% das pessoas mortas todos os anos também são pretas. Coincidência? Não precisa ser o rei da matemática para concluir o óbvio. É por isso que todos os dias agradeço a Deus pela oportunidade e por não ter virado estatística. O futebol me salvou! É por isso que eu falo, me posiciono e mostro a minha indignação: pelo mínimo de dignidade e igualdade para todos os brasileiros que não tiveram a mesma sorte que eu* (fonte).

Cem anos de fascismo

Por Jason Stanley, via piauí

Ao longo da história, políticos fascistas atraem o apoio de pessoas que, se questionadas, rejeitariam o rótulo de fascistas; elas só precisam ser persuadidas de que a democracia não mais atende seus interesses.


"Quando os fascistas Camisas Negras marcharam pelas ruas de Roma ao final de outubro de 1922, seu líder, Benito Mussolini, acabava de tomar posse como primeiro-ministro. Embora os seguidores de Mussolini já houvessem se organizado em milícias e começado a aterrorizar o país, foi durante a marcha de 1922, escreve o historiador Robert O. Paxton, que eles “passaram de saquear e atear fogo em QGs locais socialistas, redações de jornais, agências de emprego e casas de líderes socialistas para a ocupação violenta de cidades inteiras, tudo sem enfrentar qualquer oposição do governo” (leia mais)


"Desengano, perspectivas cinzentas para a vida, frustrações de toda a sorte, a irresolução do self, um caldo de cultura que alimenta um rancor que dirige o cotidiano, o outro como inimigo... penso que são esses os ingredientes da subjetividade que transformam o apelo fascista numa narrativa sedutora e catártica. Os textos procuram elucidar esse enigma do capitalismo: um sistema de signos discursivos que cativa pelo seu potencial predador, um ideologia que dá sustentação à racionalidade totalitária." (A sedução fascista, antologia do site)

Vincere!

equilíbrio fiscal

Quem paga a conta?

Um espetáculo deprimente

Bolsonaristas se ajoelham, abraçam quartel, choram, rezam o pai-nosso e colocam sua ignorância a serviço de golpe militar contra Lula

Leia aqui a matéria da Folha

Empresários dão mostras de sua verdadeira vocação espoliadora do povo e insistem na manutenção do teto dos gastos e na redução dos direitos sociais como instrumentos de acumulação de riqueza. O Brasil está diante de uma encruzilhada: ou transforma de cima a baixo as estruturas que o tornaram uma pastagem dos interesses financeiros globais ou se consolida como reduto daquilo que o capitalismo criou de pior.

O sonho do 'mercado'

Em meio ao otimismo despertado pela vitória de Lula, um processo curioso veio à tona: a torcida geral para que os projetos que possam colocar o Brasil entre as nações progressistas que querem construir uma nação democrática embasada na Justiça Social, teve uma única exeção: o muxoxo das elites apoiadas no bolsonarismo civil e militar que querem preservar as injustiças seculares com que se beneficiam, mas em especial os atrasos recentes marcados pelas reformas da previdência, da legislação trabalhista, pelos crimes ambientais, pelas privatiações, pela ação das milícias e tudo o mais que Bolosonaro representou desde 2018, quando fraudou a eleição que o levou ao Planalto.

Duas referências postadas aqui mostram a indignação dessa postura: a lembrança do deputado federal Ivan Valente (PSOL) em resgatar a oposição dos empresários à lei que criou o 13o, em 1962, sob a alegação de que o benefício arruinaria a economia nacional; e a magistral coluna de Janio de Freitas na Folha sob o sentido social dessa elocubração semântica chamada "mercado"- ao qual Lula deveria se submeter. Vale a pena ler os dois textos e divulgá-los amplamente.

No passado, a história como tragédia; agora, a história como farsa

Lula não foi eleito para servir ao mercado (Janio de Freitas)

Ah, que horror! Lula disse que prioritário é acabar com a fome, não a contenção de gasto social, o tal teto de gastos! A Bolsa caiu! Reação imediata do mercado (nome de guerra dos que não produzem, não se incluem na infraestrutura econômica, e ganham no jogo financeiro das Bolsas). E tome de manchetes em primeiras páginas e comentaristas do "mau passo" com que "Lula já começou". Todos sempre reforçando a exigência reiterada pelo mercado: "Lula tem que indicar logo o novo ministro da Economia".

Tem que? Ainda falta ao mercado a informação de que Lula foi eleito para presidir um país de mais de 215 milhões de habitantes, não para servir à camadinha especulativa. A decisão eleitoral completa neste domingo duas semanas, apenas. Nas quais o mercado se fez de inquieto porque este é um método eficaz para acionar o sobe-desce lucrativo da especulação financeira. E de quebra dizer quem manda, para ver no que isso dá. Nenhuma empresa séria depende da urgência de um nome de ministro.

Expoente dos chamados investimentos financeiros, Arminio Fraga deu a Lula, na Folha, a resposta do mercado: "Estabilidade fiscal (...) gera mais investimento e mais crescimento. Simples assim. E (...) aumenta a chance de os recursos beneficiarem os mais pobres". Parece falar de economia, mas é de políticas que trata.

O crescimento não depende necessariamente de estabilidade financeira, e o Brasil tem no inflacionário governo Juscelino um dos seus tantos exemplos de desvario financeiro e crescimento. O governo da mediocridade desleal, de Michel Temer, até criou o "teto de gastos", mas daí não vieram "mais investimento e mais crescimento". Recursos, provenientes de estabilidade ou não, só "beneficiam os mais pobres" se esta for a política do governo. O que só por um breve período aconteceu no Brasil —e nem digo qual.

O batido tema da estabilidade fiscal ao gosto da especulação provocou, afinal, algo positivo. E assombroso. Em discreto pé de página, uma entrevista ao jornal O Globo (11 novembro, pg.12)


Muito reverenciada por seus colegas destacados na imprensa brasileira, carioca que leciona na Johns Hopkins University, Monica de Bolle foi direta e clara desde o início. Sobre a reação do mercado a Lula: "O mercado (...) faz esses movimentos de Bolsa e dólar para ganhar dinheiro. Esses movimentos não querem dizer nada. Os economistas do mercado têm uma visão míope e estão com ela há muito tempo". Eles e os jornalistas que os ecoam.

Mais: "O teto de gastos já não existe há bastante tempo, basicamente desde que foi criado. Foi modificado em praticamente todos os anos do governo Bolsonaro. (...) Foi uma regra fiscal para jogar no lixo. (...) O momento é de revogar e fazer um teto novo".

A complacência utilitária do mercado com Bolsonaro e Paulo Guedes sufocou as reações a desatinos como a PEC Kamikaze, "a coisa mais populista e gastadora" (de Bolle), o orçamento secreto ainda vigente, o gasto eleitoreiro pró-reeleição. E tantas outras causas do rombo já estimado em prováveis R$ 400 bilhões, a ser deixado para o novo governo.

O que deveria inquietar o mercado e o empresariado bolsonarista é o risco decorrente de esperáveis investigações sobre os pagadores de atos golpistas contra o resultado eleitoral. Esses fatos que se espalham pelo país alertam para o rigor necessário à escolha dos futuros dirigentes da Polícia Federal, das demais polícias federais e da Abin. E, mais adiante, de quem restaure a moralidade na Procuradoria-Geral da República.

Lula terá pela frente o maior dos desafios: desratizar o Brasil dos interesses empresariais que promovem a pobreza e lucram com ela

Tudo indica que só uma coisa rivaliza com a torcida pela vitória do Brasil na Copa do Mundo do Catar: a torcida para que Lula - com  a eleição consolidada nas urnas e com o fracasso do golpe planejado por Bolsonaro e seus seguidores civis e militares - reconduza o país à normalidade constitucional e democrática e nos livre da herança maldita do nazifascismo-rascista que vamos ter que aguentar até 31 de dezembro. Nessa figa coletiva que a sociedade faz, acompanhando passo a passo as reuniões da transição e já dando como certa a aprovação de medidas de impacto social previstas para o início do novo governo, só há uma exceção: a oposição que o empresariado fará - com suas disposições criminosas de sempre - a quaisquer mudanças nas práticas econômicas que vêm sendo adotadas desde o golpe do impeachment em 2016: a reforma trabalhista e o teto dos gastos públicos.  Vale a pena acompanhar a movimentação dessa turma para que fique claro, de uma vez por todas, quem são os inimigos do país...

Brasil em transe

O transe coletivo de apoiadores de Bolsonaro após sua derrota nas urnas produziu uma série de ações como resposta ao sofrimento inscrito na estrutura neurótica: sofrimento que advém, neste caso, do déficit entre a realidade dos fatos e a psíquica (leia mais)

Antologia da vitória

2022: derrotados e vencedores

➤  Vitória de Lula enterra 2013

O fascismo será derrotado

O que querem os empresários?

Como ficam os militares depois da vitória de Lula


Direita quer enquadrar Lula e promover 3o e 4o turnos


O bolsofascismo brasileiro contra a justiça social

Amotinados frente aos quarteis cometem crime contra a democracia

Governo de Bolsonaro termina em ato de covardia institucional

Igor Gielow, Folha de S. Paulo


O presidente Jair Bolsonaro (PL) encerrou seu governo na prática nesta tarde de terça (1º) com um ato de covardia institucional, para ficar próximo da pior sigla da ditadura que enalteceu de várias formas ao longo de sua gestão.


Convocou sem ênfase o fim de protestos em rodovias por parte de uma franja de seus apoiadores que acredita que coisas como intervenção militar para negar a derrota por margem mínima sofrida para Luiz Inácio Lula da Silva (PT).


Agradeceu os mais de 58 milhões de votos que teve, mas não reconheceu a vitória do adversário. Deixou para um encabulado, se a palavra se aplica, Ciro Nogueira (Casa Civil) o papel de dizer que irá começar a transição de governo com o vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin (PSB).


Ou seja, admitiu a derrota sem ter a hombridade de fazê-lo. Novamente, seguiu a cartilha deixada por seu modelo político, o ex-presidente americano Donald Trump. Em novembro de 2020, o republicano demorou uma semana após a proclamação do resultado da eleição para, a seu estilo, postar no Twitter que Joe Biden havia ganho a eleição (continue a leitura)

A armação de Bolsonaro para negar a derrota nas urnas e escapar da prisão

O capitão criou uma teia que acabou por aprisioná-lo: rejeitado em toda a parte pelos desmandos criminosos que cometeu, imaginou jogar os trunfos que acumulou em quatro anos de 'governo' para mobilizar seus apoiadores de forma incondicional. Errou feio. A vitória de Lula mostrou uma sociedade ainda enérgica e disposta a fazer valer seus direitos e vontade sobre o impulso totalitário do fascismo. Vão pagar caro todos os que apostaram nessa aventura.

Por quem somos?

Ipec indica empate técnico em SP: Tarcísio, 46%; Haddad, 43%

Por que Bolsonaro é incancelável

Como os conservadores, que defendem valores  familiares 

tradicionais, se encantaram com um homem agressivo e desrespeitoso

Pablo Ortellado e Marcio Moretto (piauí)


Como é que um homem sórdido, abjeto e indecoroso como Jair Bolsonaro se tornou a principal liderança do conservadorismo brasileiro? Como é que conservadores, que defendem a decência e os valores familiares tradicionais, se encantaram com um homem agressivo, bruto e desrespeitoso? O estranhamento não é só brasileiro. Os americanos também se perguntam como os conservadores de lá puderam se deixar seduzir por Donald Trump, que tem os mesmos vícios. Enquanto os brasileiros se perguntam como seus conservadores podem admirar um homem que diz que usava verba de gabinete “para comer gente”, os americanos se questionam como seus conservadores podem respeitar um homem que disse que certas mulheres “pegamos pela boceta”. A explicação parece estar na cultura do cancelamento e do politicamente correto que os conservadores tão ardentemente repudiam (continue a leitura)

afinidades eletivas

À semelhança do processo químico que explica a atração mútua entre elementos de uma mesma natureza estrutural, esse retorno ao 'bom' convívio entre Bolsonaro e Sérgio Moro é uma amostra do novo tipo de ética que o fascismo brasileiro erigiu em norma política. Aqui, no entanto, a metáfora de Goethe pode encontrar uma outra referência: a da atração mútua entre vermes, o predador e sua vítima - ambos aproximados pela identidade do caráter fétido de suas personalidades. Vale a pena, por isso, um mergulho nas análises feitas em torno das imagens colhidas pela imprensa no debate entre Lula e Bolsonaro ocorrido no último dia 16 de outubro, um palco de performances de todo o tipo: do coro aos heróis e dos anti-heróis à observação do protagonista ausente, o povo brasileiro, vítima dessa imensa conspiração. Sugiro a leitura das matérias lincadas abaixo:
Relembre as acusações de Sergio Moro a Jair Bolsonaro (G1) * O ataque é pesado * (no Twitter, Moro fala a Leda Nagle sobre Bolsonaro) * Rifado, Moro mira 2026 (G1) * Ou derrotamos Bolsonaro nas urnas ou a extrema-direita arruinará de vez o Brasil (Folha) * Sobre o filme Mephisto (IIpefil) * Moro abraça bolsonarismo para evitar isolamento político (Uol) * Moro sonha com STF e com presidência (Estadão)

 2022: entre barbárie e democracia

➤  Entrevista de Bresser-Pereira no IHU


A luta de classes será geossocial

Artigo de Bruno Latour no IHU

Professoras e professores na reflexão de Valter Hugo Mãe

Achei por muito tempo que ia ser professor. Tinha pensado em livros a vida inteira, era-me imperiosa a dedicação a aprender e não guardava dúvidas acerca da importância de ensinar. Lembrava-me de alguns professores como se fossem família ou amores proibidos. Tive uma professora tão bonita e simpática que me serviu de padrão de felicidade absoluta ao menos entre os meus treze e os quinze anos de idade.

Estragar os nossos miúdos é o fim do mundo. Estragar os professores, e as escolas, que são fundamentais para melhorarem os nossos miúdos, é o fim do mundo.

A escola, como mundo completo, podia ser esse lugar perfeito de liberdade intelectual, de liberdade superior, onde cada indivíduo se vota a encontrar o seu mais genuíno, honesto, caminho. Os professores são quem ainda pode, por delicado e precioso ofício, tornar-se o caminho das pedras na porcaria do mundo em que o mundo se tem vindo a tornar.

Nunca tive exatamente de ensinar ninguém. Orientei uns cursos breves, a muito custo, e tento explicar umas clarividências ao cão que tenho há umas semanas. Sinto-me sempre mais afetivo do que efetivo na passagem do testemunho. Quero muito que o Freud, o meu cão, entenda que estabeleço regras para que tenhamos uma vida melhor, mas não suporto a tristeza dele quando lhe ralho ou o fecho meia hora na marquise. Sei perfeitamente que não tenho pedagogia, não estudei didática, não sou senão um tipo intuitivo e atabalhoado. Mas sei, e disso não tenho dúvida, que há quem saiba transmitir conhecimentos e que transmitir conhecimentos é como criar de novo aquele que os recebe.


Os alunos nascem diante dos professores, uma e outra vez. Surgem de dentro de si mesmos a partir do entusiasmo e das palavras dos professores que os transformam em melhores versões. Quantas vezes me senti outro depois de uma aula brilhante. Punha-me a caminho de casa como se tivesses crescido um palmo inteiro durante cinquenta minutos. Como se fosse muito mais gente. Cheio de um orgulho comovido por haver tantos assuntos incríveis para se discutir e por merecer que alguém os discutisse comigo. Disse que eu estava muito certo. Iluminei-me todo, não por ter sido o mais rápido a descortinar aquela solução, mas porque tínhamos visto imagens das estátuas mais deslumbrantes do mundo e eu estava esmagado de beleza. Quando me elogiou a resposta, a minha professora contente apenas me premiou a maravilha que era, na verdade, a capacidade de induzir maravilha que ela própria tinha. Estávamos, naquela sala de aula, ao menos nós os dois, felizes. Profundamente felizes.

Talvez estas coisas só tenham uma importância nostálgica do tempo da meninice, mas é verdade que quando estive em Florença me doíam os olhos diante das estátuas que vira em reproduções no sétimo ano da escola. E o meu coração galopava como se tivesse a cumprir uma sedução antiga, um amor que começara muito antigamente, se não inteiramente criado por uma professora, sem dúvida que potenciado e acarinhado por uma professora. Todo o amor que nos oferecem ou potenciam é a mais preciosa dádiva possível.

Dá-me isto agora porque me ando a convencer de que temos um governo que odeia o seu próprio povo. E porque me parece que perseguir e tomar os professores como má gente é destruir a nossa própria casa. Os professores são extensões óbvias dos pais, dos encarregados pela educação de algum miúdo, e massacrá-los é como pedir que não sejam capazes de cuidar da maravilha que é a meninice dos nossos miúdos, que é pior do que nos arrancarem telhas da casa, é pior do que perder a casa, é pior do que comer apenas sopa todos os dias.


Estragar os nossos miúdos é o fim do mundo. Estragar os professores, e as escolas, que são fundamentais para melhorarem os nossos miúdos, é o fim do mundo. Nas escolas reside a esperança toda de que, um dia, o mundo seja um condomínio de gente bem formada, apaziguada com a sua condição mortal mas esforçada para se transcender no alcance da felicidade. E a felicidade, disso já sabemos todos, não é individual. É obrigatoriamente uma conquista para um coletivo. Porque sozinhos por natureza andam os destituídos de afeto.

As escolas não podem ser transformadas em lugares de guerra. Os professores não podem ser reduzidos a burocratas e não são elásticos. Não é indiferente ensinar vinte ou trinta pessoas ao mesmo tempo. Os alunos não podem abdicar da maravilha nem do entusiasmo do conhecimento. E um país que forma os seus cidadãos e depois os exporta sem piedade e por qualquer preço é um país que enlouqueceu. Um país que não se ocupa com a delicada tarefa de educar, não serve para nada. Está a suicidar-se. Odeia e odeia-se.”

Valter Hugo Mãe é escritor, editor e artista plástico, cursou pós-graduação em Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea na Universidade do Porto. Possui livros publicados de poesia, contos e narrativa longa, romances. Em 2007, recebeu o Prêmio Literário José Saramago com o seu segundo romance, O remorso de baltazar serapião

Carta Compromisso da Chapa 1 para as eleições do Sindicato dos Professores de São Paulo (SinproSp): documento histórico sobre a luta por una educação que emancipe a sociedade brasileira

Definição do 2o turno pode decidir o Brasil que queremos para o próximo século: ou a estupidez bolsonarista ou o Estado Social

  Uma família de ladrões governa o Brasil. Leia e divulgue o livro de Juliana Dal Piva sobre as origens do patrimônio dos Bolsonaro: um segredo em sigilo pelos próximos 100 anos

A Folha de sempre

Demorou, mas finalmente a Folha de S. Paulo abriu o jogo e decidiu proclamar, ainda que envergonhada, sua simpatia pela mais daninha corrente política que já atingiu a sociedade brasileira: sem qualquer prurido, em três editoriais deste domingo (9 de outubro), o jornal da Barão de Limeira repete a vilania que exibiu durante o golpe de 64 e pondera com seus leitores sobre os riscos de uma virada democrática caso Lula, Haddad e Moraes emplaquem os princípios que os têm caracterizado nesta etapa de resistência ao fascismo em que o Brasil vive. Vale a pena ler os 3 textos e concluir de sua narrativa ardilosa e sem fundamento a decisão a ser tomada pelos eleitores no próximo 30 de outubro. Como ilustração dessa armadilha ideológica em que o jornal se debate, vale a pena ler o artigo de Cristina Serra: Lula, o mercado e a Folha.

O lumpen-empresariado  (Avritzer)

Mídia deve assumir seu papel na naturalização da extrema-direita no Brasil

Leia Milly Lacombe, Folha

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