Capitalismo e esquizofrenia... e paranoia
O duplo movimento em Marx, Polanyi e Deleuze & Guattari
O duplo movimento em Marx, Polanyi e Deleuze & Guattari
O capitalismo é geralmente associado, à esquerda e à direita, com a dissolução dos códigos, do costume, da tradição, da moral, sob o domínio da mercadoria e do dinheiro, o que resulta numa esquizofrenia social, num "vale tudo" em que tudo é possível, desde que seja rentável. Mas será justo identificar o capitalismo com essa dissolução esquizofrênica, em que, como disseram Marx & Engels, "tudo o que é sólido, desmancha no ar"? Junto a essa deriva esquizofrênica destrutiva da moral tradicional, o capital não precisaria criar uma moral à sua imagem e semelhança? Contra a dissolução dos códigos sólidos, o capital contrapõe uma enorme atividade paranoica, uma paranoia social que mantém tudo dentro de seus próprios limites.
Esquizofrenia e paranoia como categorias sócio-políticas
A base teórica de que partimos nessa reflexão é a obra do filósofo Gilles Deleuze e do psiquiatra e psicanalista Félix Guattari, que escreveram à quatro mãos dois livros subtitulados Capitalismo e esquizofrenia: O anti-Édipo (1972) e Mil Platôs (1980). Guattari trabalhava em uma clínica psiquiátrica experimental e revolucionária, a clínica de La Borde. Surge dessa experiência a importância dos conceitos de esquizofrenia e paranoia na análise que a dupla faz do capitalismo, mesmo se os conceitos, em sua obra, não se confundem com as patologias a eles associadas. Para esses autores, no espírito da época, de crítica às instituições e saberes psiquiátricos, a "loucura" não deveria ser entendida como simples fato médico, biológico ou psíquico, mas imediatamente político, social, econômico. O esquizofrênico seria aquele que vive a linguagem, a libido, o psíquico, através do que Deleuze & Guattari chamam de um processo de descodificação e desterritorialização dos fluxos de desejo. O desejo esquizofrênico não se fixa em nada, não respeitando os códigos, costumes, tradições — a moral — instituídos socialmente; ele deriva livremente, pulando de um território a outro, os desfazendo. (Deleuze & Guattari atentam, entretanto, que o "esquizofrênico de asilo" não necessariamente apresenta essas características, podendo sofrer uma "trava" causada, segundo eles, pela repressão social e institucional). O paranoico, por outro lado, seria aquele que se atenta exageradamente aos códigos sociais, aos limites estabelecidos para o desejo, à Lei moral, não os cruzando e agindo de modo a que outros não os cruzem. O paranoico recodifica e reterritorializa os fluxos de desejo dentro do estabelecido.
Como o paranoico e o esquizofrênico, então, aparecem na análise do capitalismo? Na obra de Deleuze & Guattari, essas categorias deixam de ser patologias mentais e se referem a modos de organização social, econômica e política que atravessam toda a sociedade, embebida de desejo, de libido. A esquizofrenia, portanto, será um processo impessoal e geral que tende a descodificar e desterritorializar os códigos e fluxos sócio-desejantes que o capitalismo viu ruir. As sociedades extra-capitalistas, as sociedades (ditas) primitivas, indígenas, e os Estados e Impérios antigos, organizavam a sociedade por um regime de codificação, em que toda a moral social era regulada pelo costume, pela tradição, pela religião, pela lei. Com o fim dessas sociedades e o desenvolvimento capitalista, resultando na dominação capitalista do globo, progressivamente esses códigos se dissolvem sob o poder do mercado, do dinheiro, da mercadoria. Como dizem Marx e Engels, sob o domínio da burguesia, "tudo o que é sólido se desmancha no ar". O processo esquizo é o que dissolve a moral, os costumes, a tradição. É o enfraquecimento do Estado (do Déspota), da religião, do racismo, do sexismo. Se na sociedade tradicional cada um tem seu lugar pré-estabelecido, o lugar que a tradição e o costume impõe, do servo do feudo ao artesão em sua guilda, passando pela mulher no lar, com o processo esquizofrênico todos esses lugares (esses territórios) são desfeitos, as posições são liberalizadas. De agora em diante, como diz Marx em algum lugar, as pessoas tem em seus bolsos a sua identidade e seu meio de acesso aos territórios. É o dinheiro que dá acesso ao mundo, na forma da mercadoria, pela mediação do mercado. Cada um faz o que quer, sem estar preso ao senhor feudal, à guilda de artesãos ou ao lar. O desejo se libera dos códigos: descodificação; se move nos territórios: desterritorialização.
Entretanto, se isso fosse tudo, estaríamos longe da verdade. Se, como vimos, o paranoico é aquele que defende a tradição, a moral, o costume, a lei, o código, a paranoia enquanto categoria social será o processo impessoal e geral que recodifica os códigos desfeitos pela esquizofrenia. Como Deleuze & Guattari colocam, aquilo que o capitalimo desterritorializa com uma mão ele reterritorializa com outra. O subtítulo da obra, Capitalismo e esquizofrenia, não diz tudo. A esquizofrenia, sob o capital, é necessariamente acompanhada pela paranoia. O capitalismo é o único modo de produção econômico, a única máquina social, que se constrói sobre fluxos descodificados. Nesse sentido, ele depende da esquizofrenia e não poderia passar sem ela. Mas ele só consegue se sustentar sobre essa descodificação generalizada liberando uma enorme carga de energia paranoica, que restitui limites e códigos: o racismo, o patriarcado, o próprio Estado e a Lei, a religião, a moral e o costume adquirem uma forma verdadeiramente capitalista, atravessadas pelo dinheiro, pela mercadoria e pelo mercado.
O duplo movimento do capitalismo
“Seria um grande erro identificar os fluxos capitalistas e os fluxos esquizofrênicos, sob o tema geral de uma descodificação dos fluxos de desejo” (Deleuze & Guattari, O anti-Édipo, p. 325)
Karl Polanyi
Apesar de existirem leituras da obra de Deleuze & Guattari que tendem a identificar capitalismo e esquizofrenia (como a do chamado aceleracionismo incondicional ou de direita, capitaneados por Nick Land, que pretende alcançar a esquizofrenia pela aceleração do próprio capitalismo), a dupla é explícita ao diferenciar ambos (ver citação acima). Ao afirmar que o capitalismo depende tanto da paranoia quanto da esquizofrenia os autores lançam mão de um conceito primeiramente proposto pelo economista e antropólogo Karl Polanyi — embora não o mencionem — em seu clássico A Grande Transformação (1944). Polanyi, um teórico de viés social-democrata que constitui a base do pensamento hegemônico à esquerda até hoje, propunha que a história da sociedade de mercado era marcada por um duplo movimento: por um lado, a liberalização dos mercados, o movimento de constituição do livre mercado; por outro, a sua regulação jurídica pelo Estado. Polanyi acreditava que uma sociedade constituída totalmente sobre o livre mercado, um mercado totalmente autorregulado, era uma "flagrante utopia" que destruiria instantaneamente a "substância humana". Desse modo, contra o livre mercado ergue-se uma regulação externa, jurídico-estatal, a fim de barrar as consequências mais extremas da mercadificação. (O referido aceleracionismo landiano, inclusive, é como que o doppelgänger de Polanyi, na medida em que o que Polanyi valoriza com sinal positivo, a regulação externa do mercado, Land critica com sinal negativo, afirmando ser esse um "sistema de segurança humano" que deve ser aniquilado para que os fluxos esquizo-capitalistas sejam enfim liberados em toda sua força).
Melinda Cooper, em seu livro Family Values: Between Neoliberalism and the New Social Conservatism (2017), parte do conceito de duplo movimento para demonstrar como a liberalização de mercado própria do neoliberalismo não é estranha aos aparentemente contrários movimentos conservadores e reacionários. Retirar seguridade social, saúde pública, por exemplo, como consequência da austeridade fiscal, medida essencialmente neoliberal, reforça a posição subjugada das mulheres nas posições de cuidado e trabalho doméstico e reprodutivo, reforçando a família tradicional cujo fim é tão alardeado pelos conservadores. (Vimos isso no Brasil com Guedes e Bolsonaro). Entretanto, o conceito de duplo movimento que aqui opera, como a autora atenta, não é e não pode ser exatamente aquele de Polanyi. Polanyi e a esquerda polyniana tendem a identificar rápido demais liberalização (de mercado e de costumes) com o avanço da lógica capitalista sob a totalidade da vida. Contra essa liberalização, se coloca a regulação. Em Polanyi a regulação é externa, o duplo movimento é transcendente: o capital libera imanentemente o que a regulação deve segurar "por cima". Assim, a esquerda se vê na desconfortável e paradoxal situação de defender a conservação daquilo que o mercado destruiria (a comunidade, a família, a moral), o que muitas vezes a coloca na companhia dos piores conservadorismos. Contra essa concepção transcendente do duplo movimento, seria importante entendê-lo como totalmente imanente e intrínseco ao capital ele mesmo. Para voltar às categorias deleuzo-guattarianas, a paranoia não é externa à esquizofrenia capitalista, mas é imanente a ela. Os processos se dão horizontalmente. Cooper encontra na leitura deleuzo-guattariana de Marx o modelo desse duplo movimento imanente.
“O social-democrata polanyiano compartilha a nostalgia conservadora por comunidade, terra, e família, mas busca transformar essas instituições em condutos para formas estatais de proteção social”. Melinda Cooper, socióloga e teórica política australiana, em seu livro Family Values, p. 15.
Deleuze (esquerda) e Guattari (direita), acompanhados de um velho amigo.
Deleuze & Guattari eram leitores de Marx e eram marxistas a seu modo. O conceito de duplo movimento que os autores utilizam deve muito mais a Marx do que a Polanyi (talvez por isso nunca mencionem seu nome). As categorias de paranoia e esquizofrenia, saídas da clínica psiquiátrica de La Borde, após passarem pela sua dimensão sócio-político, a moral e o código, chega aqui à sua dimensão propriamente econômica. A economia libidinal, psíquica, chega à economia política - como Deleuze & Guattari afirmam, se trata de uma e a mesma coisa. A obra magna de Marx, O Capital (1867), demonstra como o processo de produção no modo de produção capitalista tende a subsumir toda a sociedade sob seu jugo, seu domínio, sua lógica, chegando à comodificação da cultura, da vida e da subjetividade, como diferentes correntes de pensamento crítico demonstram desde meados do século XX. Esse processo, a dominação global do capital está inscrita em sua própria lógica, em que o que interessa é sempre produzir mais para obter mais lucro.
Produção pela produção ou produção para o capital?
Ao capital não interessa suprir necessidades por meio de suas mercadorias. Isso é apenas o efeito secundário de sua busca incessante e infinita por lucro, por fazer do dinheiro mais dinheiro. Tecnicamente falando, o capital é o sujeito automático de valorização do valor, do seu próprio valor. Esse valor só se valoriza com a máquina girando, produzindo. Por isso mesmo, o capitalismo libera uma carga esquizofrênica nunca antes visto, e se alimenta dela. A produção de bens é efeito da produção de mercadorias para o mercado, onde o que interessa é o lucro, o valor adicionado a cada produto vendido (o famoso mais-valor). Assim, a produção econômica capitalista se transforma numa produção pela produção. Interessa produzir, não importa o que. Quanto mais melhor. Essa produção pela produção é a dimensão esquizofrênica do capitalismo. O processo esquizo é o processo de produção pela produção. Entretanto, como já era de se esperar. Não para por aí: duplo movimento. Junto à produção pela produção desterritorializada, descodificada, vem a paranoia capitalista para a reterritorializar na produção para o capital. Em verdade, não se produz tudo e qualquer coisa o tempo todo sem um critério: o critério do lucro, do mais-valor. A produção liberalizada esquizofrênica precisa ser contida (não pelo Estado, mas pelo próprio capital, imanentemente), nos limites capitalistas. A paranoia é quem guarda esses limites. Deleuze & Guattari retiram de Marx (Livro III de O Capital) uma "filosofia dos limites" que é exatamente aquilo que o duplo movimento visa a operar: o movimento esquizofrênico do qual o capital se alimenta é o de sempre chegar o máximo possível dos limites do modo de produção capitalista, pois quanto mais próximo maior é a produção e o lucro; entretanto, o movimento paranoico é aquele que bloqueia a passagem do limite, que faz com que a produção se mantenha no registro do lucro, da propriedade privada, do crescimento da riqueza estabelecida. O capital cresce, o valor econômico cresce: o movimento esquizo tende a desterritorializar essa riqueza socialmente, a liberalizar a mobilidade social através dela, a ampliar o acesso das pessoas ao mundo pelo dinheiro; por outro lado, o movimento paranoico tende a reterritorializar essa riqueza na riqueza velha, a recodificar os papeis sociais, a bloquear o acesso das pessoas ao mundo pela falta de dinheiro.
"A produção capitalista tende constantemente a superar esses limites que lhes são imanentes, porém consegue isso apenas em virtude de meios que voltam a elevar diante dela esses mesmos limites, em escala ainda mais formidável.
O verdadeiro obstáculo à produção capitalista é o próprio capital, isto é, o fato de que o capital e sua autovalorização aparecem como ponto de partida e ponto de chegada, como mola propulsora e escopo da produção" (Marx, O Capital, Livro III, p. 289)
Diagrama presente em O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia, de Deleuze & Guattari.
Os termos "produção pela produção" e "produção para o capital" são a face da crítica da economia política que os termos esquizofrenia e paranoia traduzem em termos de economia libidinal. De fato, com o advento do capitalismo, se produz de maneira jamais vista em modos de produção anteriores. Entretanto, essa produção liberada possui uma restrição imamente: para manter a reprodução do capitalismo, ela se mantém dentro de seus limites. O capitalismo efetivamente convive com a maior carga esquizofrênica da história. Mas isso não impede que ele seja, simultaneamente, uma máquina paranoica, que precisa da paranoia e produz paranoicos. Esquizofrenia e paranoia se relacionam de três modos: 1) há uma complementariedade, em que a um movimento esquizo responde um movimento paranoico; 2) há uma alternância: há momentos históricos em que, por diversas razões, predominam movimentos esquizofrênicos liberalizantes (os Direitos Civis e a Revolução Sexual nos anos 60 e 70, por exemplo), e outros em que predominam movimentos paranoicos recodificantes (o nazifascismo dos anos 30); 3) por fim, o sentido que mais importa: mais do que se complementarem ou alternarem, esquizofrenia e paranoia, sob o capitalismo, se reforçam mutuamente: quanto mais um avança em uma direção, mais o outro avança em outra. Quanto mais isso esquizofreniza, mais isso paranoia. Quanto mais a descodificação e desterritorialização dos fluxos atinge os limites do capitalismo estabelecido, mais forte é a carga paranoica liberada e investida contra ela.
“O capitalismo instaura ou restaura todos os tipos de territorialidades residuais e factícias, imaginárias ou simbólicas, sobre as quais ele tenta, bem ou mal, recodificar, reter as pessoas derivadas das quantidades abstratas. Tudo repassa ou regressa, os Estados, as pátrias, as famílias” (Deleuze & Guattari, O anti-Édipo, p. 53).
Neoarcaísmos
Voltemos, por fim, à economia libidinal. Como é possível que a destituição não apenas dos papeis, mas da própria categoria de gênero, que temos visto, conviva com a ascenção de Trump, Bolsonaro e afins? Como é possível que o antirracismo difuso molecularmente pelas populações racializadas conviva com o ressurgimento dos piores tipos de discriminação racial. Deleuze & Guattari chamavam esses fenômenos de neoarcaísmos: formas novas das práticas antigas: os piores códigos, descodificados pela esquizofrenia, recodificados pela paranoia capitalista. Como Cooper, mas também Wendy Brown, apontam, essa recodificação paranoica do "arcaico" faz com que a moral, a tradição, o costume (o patriarcado, o racismo, a religião), tomem uma forma propriamente econômica, propriamente capitalista. Um mundo composto de fluxos descodificados, dominado pelo mercado, pelo dinheiro, pelo preço, pela mercadoria, não abandona e não contradiz, não sob o capitalismo, os costumes mais duros. Agora se tratam de paradoxais "códigos descodificados". Trump e Musk são talvez a melhor cara desse processo: o grande capital encarnado se aventurando na política com as posições morais mais arcaicas (a Nação, as Raças, o Patriarcado, a Família). Neoarcaísmo. A produção pela produção remetida à produção para o capital, no nível da economia política, produz, no nível da economia libidinal, uma esquizofrenia referida à paranoia: o que poderia, sob outras circunstâncias, se desterritorializar, se reterritorializa na família, na propriedade, na moral, na religião, nos costumes, mas agora atravessados de ponta à ponta por uma lógica economizante. Como Brown aponta, não é que tudo vire economia, mas tudo toma a forma econômica. Inclusive aquilo que resistia à economização. Código descodificado. No neoarcaísmo o "arcaico" vira "neo" pelo mercado.