António Rego Chaves

MEMORIAL
                                                                                             

 

21 de Maio

 

 

Quarta-feira, 21 de Maio de 2003, ao princípio da tarde, o avião que transportava Eugénio Ribeiro aterrou em Madrid no aeroporto de Barajas. Meia hora depois encontrava-se num hotel à beira da Gran Vía, desfazendo a mala e arrumando o seu conteúdo no quarto que tencionava ocupar durante uma semana.

O calor apertava, incitando-o a abandonar o edifício. Saiu quase a seguir, em busca de um bar onde pudesse beber uma caña. Assim começava a sempre adiada peregrinação aos lugares de um luto até então nunca extinto, trinta anos depois do acidente de viação que modificara toda a sua vida sem possibilidade de retorno.

Trinta anos. Por que esperara trinta anos? Que se passara em 1973, naquela cidade impossível de afastar da sua memória? Por que razão só agora decidira tentar decifrar o enigma da sua longa cobardia, cada mês e cada vez mais evidente? Que o conduzira ali, porventura na ocasião menos previsível, num momento em que tudo poderia incliná-lo para a pacificação do corpo e do espírito, para uma melancólica anestesia dos afectos, para a tranquilidade de um resignado fim de vida sem mais sobressaltos?

Se alguém lhe tivesse dirigido tais perguntas, Eugénio, sempre preocupado com manter a sua vida íntima fora do alcance de amigos e conhecidos, decerto recusaria qualquer resposta ao intrometido. De resto, o nó do problema talvez fosse muito simples: é que nem ele próprio conhecia, nem sequer sabia se algum dia viria a conhecer, as verdadeiras causas que o tinham levado a tomar o avião para Madrid, deixando Lisboa entre parêntesis, porventura como garantia de fuga ao doloroso passado que nos últimos tempos tinha constituído o centro dos seus pensamentos.

O passado. Essa, sem dúvida, a palavra-chave da viagem que empreendia em 2003, trinta anos depois ter recomeçado a viver como se nada tivesse interrompido o seu atlético percurso solipsista. Viagem que se iniciava bem no coração de Madrid, em plena Gran Vía, agora já bebida uma meia dúzia de cañas, e que poderia vir a estender-se até à capital do seu vazio, da sua angústia, do seu desassossego. Viagem sabe-se lá se sem regresso.

 

«Ando a beber de mais. E há o sal, a tensão arterial, as insistentes recomendações do cardiologista, enfim, o bom senso e até o bom gosto de viver sem riscos, como se esta minha pobre carcaça pudesse durar ou merecesse durar cem anos. Triste carcaça, cada vez mais dolorida, cada vez mais vulnerável, cada vez mais próxima do fim... Ando a beber de mais e cada vez mais. Já sei que aqui vou abusar da cerveja, do xerez seco, do whisky. Um pouco na esteira do cônsul Geoffrey Firmin, mas esse enchia-se de tequila e mezcal, ao passo que Malcolm Lowry se esquartejou metodicamente até mergulhar a alma em barris de gin com barbitúricos, até a transformar em lama. ALma, LAma. A diferença é muito pequena, só uma inocente troca de duas letras no início da palavra. Madrid poderá ser a minha Quauhnáhuac – meu vulcão, meu abismo, minha taberna. Mas para quê meter cinquenta e sete cantinas e até – quem sabe? – dezoito igrejas mexicanas neste ibérico monólogo alcoólico? Que tenho eu a ver com o cônsul de Lowry e com a sua condenação às malditas penas terrenas infernais?»

 

A meio da tarde, Eugénio regressava ao hotel, com uma garrafa de whisky e uma nova tradução para castelhano de Ser e Tempo, acabada de publicar em Espanha. Ia curioso. Folheara a obra na livraria e deparara de imediato com o parágrafo onde Martin Heidegger escrevia sobre a «possibilidade de experimentar a morte dos outros». Recostado em duas largas almofadas colocadas na cabeceira da cama, de modo a ter o tronco confortavelmente apoiado, foi lendo com dificuldade algumas páginas, tarefa que o ocupou até ao princípio da noite. Aqui ou ali parava para reflectir, procurando captar o sentido de um período ou assegurar-se de que o tinha de facto entendido. Repetiu em voz alta duas frases, fazendo-as suas, moldando-as à sua forma de sentir: «O defunto abandonou e deixou para trás o nosso ‘mundo’. A partir deste, os que ficam podem estar, no entanto, com ele.»

 

«Não posso tomar banho em álcool e ler Heidegger ao mesmo tempo. Raios, para isso bem poderia ter ficado em Lisboa. Lá também tinha de Heidegger quanto bastasse, álcool a rodo. E sabe-se lá se menos solidão, menos vácuo, menos sofrimento. Que tem a minha ALma ou a minha LAma, tanto faz, a ver com literatura ou com filosofia? Não passo de um escritor de meia tigela e de um esporádico leitor de textos obscuros. Vendo bem, o que eu sou mesmo é um escritor de muitas tigelas de whisky.»

 

Saiu outra vez para a rua. A noite estava quente, jovens evidenciavam ruidosamente a sua alegria, turistas passeavam-se em busca de um restaurante para jantar. Eugénio foi subindo lentamente a Gran Vía, observando tudo e todos, olhando com curiosidade as montras e deixando para trás a Plaza de España. Lá em cima, na Plaza del Callao, virou à direita, percorrendo sem destino certo a Calle Carmen, desembocou na Puerta del Sol, encaminhou-se para a Plaza Mayor. De súbito, recordou-se: Hogar Gallego. Isso mesmo. O amplo e acolhedor restaurante onde tantas vezes tinha almoçado ou jantado, tão infinitamente só, naquele ano de 1973, quando fora forçado a passar quase um mês inteiro em Madrid. Poucos minutos depois encontrava-se à porta, mas quase tudo mudara: embora mantendo a fachada, vagos «uruguaios» tinham substituído a antiga ementa por pratos de carne de vaca importada do seu longínquo país. Recuou e afastou-se apressadamente, inconformado por não encontrar onde os esperava o vinho ribeiro e a perdiz escabechada cuja recordação lhe despertara a gula.

 

«Sou um incorrigível hedonista disfarçado de intelectual angustiado. Publiquei meia dúzia de livros que quase me deram para viver bem – e teriam mesmo dado se lhes tivesse retirado uns parágrafos um tanto ou quanto carregados de foices ou martelos, sobretudo de martelos, que de camponeses pouco entendo, e acrescentado outros bem temperados, aqui e ali, com alguns ruidosos e prolongados orgasmos. Mas, enfim, o problema não é esse, porque lá fui subsistindo sem evidentes tragédias económicas, graças às traduções e às revisões de provas tipográficas. O problema reside em que hoje venho aqui para começar a escrever o único livro que talvez devesse ter escrito e encaminho-me para o Hogar Gallego em vez de ir ao Cementerio Inglés, onde Paula ficou enterrada por eu ter declarado que nem ela nem eu tínhamos religião. Em 1973 era obra. E eu a enxotar o pobre do padre da minha cabeceira, ao mesmo tempo que lhe gritava, revoltado, num macarrónico castelhano de turista português que foi às compras a Badajoz: “No quiero nada de su maldita Iglesia franquista. Me entiende usted? ” Ainda me lembro do vulto de saias negras a fugir de mim, que estava imobilizado na maca e com uma data de costelas partidas, como se tivesse medo de que eu fosse o demónio ou lhe quisesse e pudesse bater...»

 

Acabou por encontrar, nas proximidades, um restaurante asturiano quase deserto, onde saboreou lentamente uma pequena porção da generosa dose de fabada que lhe foi servida, bebendo meia garrafa de vinho tinto e duas aguardientes gallegas. Depois tirou do bolso um pequeno bloco de apontamentos e tomou algumas notas:

 

«Tenho de viver com as minhas duas penas. A pluma ou o aparo ou o computador, tanto faz, é a mesma; e a angústia que me acompanha desde a infância e a adolescência, essa que, como o Swann de Proust, fiz emigrar para o amor. Essa que não me larga, que me corrói, que me sufoca. Essa que nunca me dará tréguas enquanto não tiver a coragem de me analisar sem complacências, talvez para concluir que andei todos estes anos a mentir aos outros e a mim próprio, forjando uma imagem da minha forma de estar na vida que nada tem a ver com o que na realidade fui e sou. Não passo de um escritor menor que sempre fugiu para a frente, obcecado pelo medo de sofrer, que nunca soube parar para reflectir sobre o que fez da sua vida, para aprender a amar os que o amaram e para procurar fazer crescer em si o pouco que tinha de bom, se é que alguma coisa de bom tinha. Continuo, aos sessenta e quatro anos, a ser um lastimável adolescente, o que significa que não terei muito mais tempo para compreender e assumir as razões dos meus erros e dos meus remorsos.»

 

Cambaleava um pouco quando abandonou o restaurante, sob o olhar severo do empregado de meia-idade que o atendera, obviamente desconfiado por o ter visto comer pouco, beber muito e escrever. Notou a expressão do homem mas não a estranhou: estava habituado a ver as pessoas consideradas «normais» olharem quem escreve em público com um misto de incomodidade, de desprezo e de antipatia, como se elas fossem bichos raros que enchessem sem qualquer préstimo páginas e páginas de papel com factos absurdos, sentimentos incompreensíveis ou ideias explosivas. Mesmo a família – pai, mãe, tios e tias, primos e primas – sempre aceitara mal que ele não tivesse sido funcionário bancário ou «abraçasse a carreira das armas», enfim, que não fizesse alguma coisa de «lucrativo» ou «útil», isto é, que arranjasse um emprego «estável», «seguro», «respeitável.» Um dia o pai dissera-lhe brutalmente, num momento em que, já completados dezanove anos, ele lhe manifestara o desejo de sair talvez para sempre de Portugal – onde se sentia abafar, sobretudo após a «derrota» de Humberto Delgado nas chamadas «eleições presidenciais» de 1958 –, e arranjar um qualquer emprego em Paris que lhe permitisse frequentar a Sorbonne e escrever: «No meu tempo também havia gente como tu, com a mania que sabia tudo da vida e que o mais importante do mundo era fazer versos ou pintar coisas que ninguém entendia. Sabes como acabaram? Na valeta. Sim, acabaram todos na valeta, onde é que haviam de ter acabado? Será isso que queres para ti?»

Eugénio deixara a conversa ficar por ali, não fosse ela terminar com alguma eloquente e irrespondível bofetada paterna. Logo que pudera, graças ao apoio de um amigo cujo pai trabalhava numa editora, começara a rever provas tipográficas e a traduzir alguns livros do francês e do castelhano, o que lhe permitira sair de casa, alugar um modesto quarto independente junto ao Príncipe Real e recomeçar a sonhar com Paris e com uma vida vivida bem longe dos mundos das taxas de juro e das metralhadoras castrenses que, pouco tempo depois de ter sido declarado «isento de todo o serviço militar», passaram a servir para matar toda a espécie de homens, mulheres e crianças na Guerra Colonial.

Quando se interrogava sobre as raízes da sua angústia, encontrava facilmente numerosos pontos de ruptura: ruptura com o pai, quase sempre ausente do seu quotidiano, violentamente autoritário, mesmo despótico; ruptura com a mãe, primeiro tão próxima de si, depois, calculista, procurando dar um outro rumo à sua existência e pressionando-o a empregar-se logo que acabasse o liceu, a fim de ficar com as mãos livres para construir outro lar com alguém que, além de lhe ser fiel – o que não sucedia com o marido –, lhe assegurasse um maior conforto económico; ruptura, lenta ruptura, a partir dos quinze ou dezasseis anos, com os amigos demasiadamente interessados em bailes, jogos de futebol ou demonstrações de força bruta, numa altura em que ele começava a descobrir Dostoievski e Tolstoi, António Nobre e José Duro, Mário de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa. De quase todos os amigos se alheara, pois – mas não sem uma magoada consciência da sua involuntária solidão e uma profunda amargura.

Repetira aos vinte anos, vezes sem conta, as primeiras frases de O Mito de Sísifo: «Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio. Julgar se a vida merece ou não ser vivida, é responder a uma questão fundamental da filosofia. O resto, se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou doze categorias, vem depois. São apenas jogos; primeiro é necessário responder.» Jogos de palavras, frívolos desportos intelectuais, modas e bordados literários, isso jamais lhe interessara. E fora pela mão de Albert Camus que descobrira Nietzsche, Kierkegaard, Chestov. Só depois viera a conhecer Unamuno, Sartre, Merleau-Ponty e Marx.

A leitura de Marx quebrara por alguns anos o seu isolamento. Havia um mundo colectivo a analisar e a transformar, um mundo de que ele fazia parte mas pelo qual, devido à classe social de que era originário e ao seu conhecimento teórico da temática política, deveria sentir-se mais responsável do que muitos outros dos seus contemporâneos: o mundo das pessoas com fome, crianças, trabalhadores manuais ou velhos, gente que parecia ter nascido com um destino marcado pela fatalidade mas por cuja libertação seria necessário lutar. Era difícil brandir O Manifesto Comunista ou os Manuscritos de 1844 com uma mão, enquanto a outra segurava a poesia de Álvaro de Campos, sobretudo perante certos devotos de qualquer dos dois universos incomunicantes, incapazes de aderir sem reservas a um sem condenar liminarmente o outro. Eugénio tentara praticar a acrobacia dos consensos e da conciliação, mas cansara-se de lutar contra tudo e contra todos. Conservara os seus autores bem presentes no dia-a-dia e desistira de convencer fosse quem fosse de que era possível viver pacificamente com Karl Marx e Fernando Pessoa na mesma cabeça e no mesmo coração.

Paula conhecera-o assim, já sem integração possível em qualquer organização política, instituição religiosa ou capela literária, com vinte e cinco anos. Erigira-o em centro da sua atenção, admirara-o, amara-o. Ele envaidecera-se, enternecera-se, deixara-se aconchegar pela dádiva da mulher que caminhara ao seu encontro. E respeitara-a sempre, respeitara-a nos pensamentos, nas palavras e nos actos, respeitara-a no mais íntimo dos seus afectos, até ao dia da sua morte em Madrid. Respeitara a integridade, a lealdade, a transparência daquele ser que se lhe entregara sem condições e até ao fim. Agora perguntava-se, trinta anos passados: «Que venho aqui fazer? Falar-lhe, falar-me, falar de quê, porquê, para quê?» E procurava em vão qualquer resposta credível a todas e cada uma das suas interrogações.

 

«Foi um longo dia, chegou a altura de me ir deitar. Não sei por que motivo continuo aqui, mas vou dormir, dormir sem pesadelos, depois de tanta aguardiente gallega. Amanhã acordarei um pouco mais lúcido. Tomo o pequeno-almoço, saio, hei-de ter uma ideia. Uma ideia, nem que seja uma minúscula e ridícula ideia capaz de me deixar detectar o fio desta meada onde me encontro envolvido e da qual não sei desenvencilhar-me. Por força que todo este álcool se vai evaporar para deixar nascer uma ideia no meu lúgubre cérebro. Talvez volte ao Museu do Prado, para rever o Goya das pinturas negras. Para me sentir e entender, para recordar de perto a velhice, o horror, a morte. É isso, amanhã vou rever o Goya das pinturas negras, aquelas que ele deixou na Quinta del Sordo. Mas não irei ao Cementerio Inglés. Aí, não. Está decidido. Não quero voltar a entrar em tal sítio. Uma vez bastou, no dia do enterro de Paula.»

 

Regressou ao Mayorazgo depois de vaguear, durante um bom par de horas, pelas estreitas ruas próximas da Plaza Mayor, um mar de tascas de asseio duvidoso, de chulos e de prostitutas. Homens viscosos estendiam-lhe fotografias de mulheres seminuas e cartões ensebados com moradas de clubes nocturnos especializados em striptease, jovens e velhas profissionais do sexo dirigiam-lhe convites brejeiros, bêbedos sem dinheiro pediam-lhe uma moeda para o último copo da noite. Orfeu, alcoolizado e mais só do que nunca, descia aos infernos e encontrava um decrépito e sujo bairro da capital espanhola à espera de um Pérez Galdós que falasse da sua actual miséria ou de um Goya que pintasse os seus desdentados sobreviventes, as suas aterradoras ruínas humanas. Eurídice nunca passara por ali, Eurídice não estava em lado nenhum, Eurídice apenas viera, num dia já longínquo, morrer, indefesa, a Madrid.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

22 de Maio

 

 

Eugénio levantou-se cedo, percorreu toda a Gran Vía até à Plaza de Cibeles, tomou o pequeno-almoço no Café Gijón, em pleno Paseo de Recoletos, e dirigiu-se, sem pressas, ao Museu do Prado. Frente à humanidade grotesca, à pobreza e à morte evocadas nas pinturas negras de Goya, deixou-se invadir por uma lenta e pesada melancolia, sem sombra de revolta. A revolta que tantas vezes lhe despertara o absurdo da condição humana, tão intensa que nunca ousara exprimi-la por palavras escritas, a revolta que não lhe permitira sequer conceber a existência de um Deus com intervenção nos assuntos terrenos, essa apresentou-se-lhe, de súbito, senão sem sentido, pelo menos apaziguada. Deteve-se alguns minutos perante cada uma das obras que mais o haviam tocado, tendo sempre presente a ideia de que aquela seria a última vez que poderia observá-las, que não mais voltaria a Madrid, que o fim da sua vida estava próximo, muito próximo, mesmo iminente. Veio-lhe a vaga noção de que deveria dirigir um gesto de gratidão àquele homem grande e desesperado que fora suficientemente generoso para deixar aos seus contemporâneos e ao futuro uma tão terrível mensagem de espanto, de verdade e de piedade. Fazer-lhe um aceno, ainda que patético, que o transcendesse a si, ao seu insignificante eu, e se estendesse, por uma fracção de segundo que fosse, para além da irremediável ausência de Francisco Goya. Algo que não fosse presenciado por estranhos, secreto. Cruzou os braços sobre o peito, inclinou a cabeça para a frente e murmurou uma inesperada oração, equidistante do ridículo e do sagrado: «Obrigado por me teres recordado de que não estou só com os meus fantasmas!». Saiu com a serenidade própria de quem tivesse por breves mas inesquecíveis momentos vislumbrado um apaziguamento até então desconhecido.

 

«Quis dirigir-me a Goya, só a Goya? Ou será que não consigo libertar-me desta ideia de que Deus devia existir, que não sei viver sem ela? Estava só com pena de mim ou, de facto, sou capaz de um sentimento de solidariedade para com todos os homens em geral, pelo menos os doentes, os pobres, os humilhados e ofendidos? E aqueles seres desprezíveis que ele pintou, marcados pela inveja, pela maldade, pela grosseria, pela bestialidade, pelo egoísmo feroz, pela gula, pela boçalidade, serão assim tão diferentes de mim? Onde estou eu em todos aqueles quadros? Neste momento, talvez apenas num, no que mais me encheu de tristeza, El perro, que é a mais terrível imagem que conheço do desamparo, do abandono e da impotência perante a morte. ‘Morre-se só’, claro, disso sabia bem o Pascal da ‘aposta estúpida’. Mas também vivemos sós, irremediavelmente sós, com os nossos mortos. Vivemos sós com os nossos queridos mortos.»

 

Atravessou o Paseo del Prado e continuou a caminhar até encontrar a Calle de Cervantes, parou a meio e olhou longamente a fachada do modesto hostal que o albergara trinta anos antes, durante a agonia de Paula no Hospital La Paz. Na Plaza de Jesus, movido por um impulso a que não quis resistir, entrou na Taberna la Dolores, onde tantas vezes bebera. Subiu as escadas que conduziam ao velho bar, sentou-se a uma mesa. Uma mulher de avental estendeu-lhe a lista, sem uma palavra. Não tinha fome: pediu gambas al ajillo e uma caña. Depois, enquanto esperava, foi observando os três postais com obras de Goya que comprara no Museu do Prado: El aquelarre, Dos viejos comiendo, La romería de San Isidro. Narinas dilatadas, olhos esbugalhados, rostos animalescos. A evidência da inevitabilidade da morte, o brutal esgar do medo.

Alarves, cúpidos, os bruxos de El Aquelarre iam tomando corpo na sala, confundindo-se com os clientes que afluíam à hora do almoço, sobrepondo-se a qualquer outra imagem da pequena multidão que enchia a taberna. O barulho vinha sobretudo dos turistas: embrulhavam restos de comida em guardanapos de papel, galhofavam entre si, exibindo sem pudor o seu direito ao riso mesmo depois de terem olhado, ainda que de soslaio, as pinturas negras expostas no Museu do Prado. Estremeceu. Guardou os postais no bolso do casaco e chamou a mulher de avental:

- Mais uma caña, por favor.

Que significara a morte de Paula para ele? Que, nos últimos trinta anos, ela não mais sorrira, não mais o acariciara, não mais enchera o espaço com o seu espasmo epiléptico de pavor. Que deixara de ver os seus pequenos alunos, de lhes ensinar letras, sílabas, talvez caminhos para a liberdade. Que ela não mais impusera fosse a quem fosse o seu visceral repúdio da futilidade, a sua indomável intransigência ética, o seu impiedoso anseio de autenticidade. E a sua ternura? Essa desaparecera, volatilizara-se, tornara-se apenas numa vaga recordação para os que amara ou a tinham amado. Aquela total ausência de cálculo dos seus gestos, como não a deixar escapar da memória, impedindo-a de se transformar em simples quimera sem corpo, sem presença real, sem chão que continuasse a alimentar as suas profundas raízes?

Mas a morte de Paula era, para ele, ainda mais extensa. Era também uma etapa da sua própria morte, a perda de uma identidade consolidada pelo testemunho da mulher que o amara. Só ela sabia de uma experiência que pertencera apenas a ambos, que ninguém mais conhecera ou conheceria, e que com o seu desaparecimento deixara de ser concreta, palpável, indesmentível. Ele perdera uma parte irrecuperável de si mesmo, a sua verdade tornara-se, pois, não partilhável – e, portanto, inconsistente, fluida, indemonstrável, mesmo inexistente.

Poucos dias depois do enterro, começara a não conseguir recordar com precisão situações, atitudes e frases que os tinham ligado. Num primeiro momento aterrorizara-se, ao pensar que a sua memória tinha sido gravemente afectada, julgou-se atingido por alguma espécie de amnésia provocada pelo choque psicológico sofrido em consequência da morte da mulher. Depois, pouco a pouco, fora-se habituando a viver sem a totalidade dessa parte de si próprio constituída pelo que Paula trouxera à sua vida. Agora, tantos e tantos anos passados, adquirira já a certeza de que não poderia reconstituir nem uma modesta sombra de tudo o que de importante acontecera entre os dois, ou fora dito, ou apenas pensado ou sonhado.

Observava os raros transeuntes pela larga janela junto à mesa, procurando adivinhar idades, profissões, objectivos. Passava um casal. Eram dois jovens, ele abraçava-a pela cintura enquanto caminhavam, ela escutava-o, voltada para o companheiro, os lábios entreabertos, um intenso sorriso no rosto e no olhar. Tinham talvez o mesmo destino, muito tempo para viver, um projecto que só a eles dizia respeito. Mas, se ela morresse? Naturalmente ele chorá-la-ia e depois procuraria reduzi-la a um simples acidente de percurso, extirpá-la-ia de si como a um tumor maligno, recusaria segui-la até ao nada e transformá-la-ia, então e só então, em verdadeiro cadáver, isto é, num ser que nem naqueles que amou continua a habitar e pulsar, ainda que só de trinta em trinta anos, num sórdido bar de Madrid.

«Quando regressar a casa» – dissera em 1973 para consigo – «andarei muito pelas ruas de Lisboa. Voltarei aos lugares aonde íamos. Tenho a certeza de que lá recordarei melhor o seu rosto, o seu sorriso e as suas lágrimas, o seu olhar.» Porque o rosto dela começara desde logo a escapar-lhe da memória. Apenas uma semana depois da sua morte, tivera dificuldade em imaginá-lo com toda a nitidez. Tirara da carteira o bilhete de identidade de Paula, que guardara junto do seu. Mas a fotografia já era antiga, não a da mulher que fora enterrada num cemitério daquela cidade para ele inóspita, mas a de nove anos antes, a que encontrara nos inícios dos anos sessenta, a quem dissera que a amava. E que lhe respondera, olhos nos olhos, com firmeza:

- O Eugénio, amar-me? Não acredito. Não acredito em si.

Talvez nunca o tivesse acreditado. Pediu um vinho tinto de boa qualidade e mastigou lentamente o primeiro gole, aplicando a lição ensinada pelo pai. O pai que apenas em Madrid, quando ele já contava trinta e quatro anos, começara a sentir próximo de si. Revia-o no hospital, entrando pé-ante-pé, para não perturbar os outros dois doentes acamados no mesmo quarto. Tomara o primeiro avião possível e chegara no dia seguinte ao acidente. Abraçara-o com grandes precauções, para não lhe aumentar a dor provocada pela fractura das costelas. E Eugénio perguntara-lhe de chofre:

- Onde está a Paula, onde está? Que se passa com ela, ninguém me quer dizer nada...

Ele respondera-lhe, lento, sílaba a sílaba, num sussurro:

- Es-tá mal, mui-to mal.

- Muito mal?

Meneou a cabeça, num sinal de impotência:

- Sim, meu filho, está em coma profundo. Os médicos disseram-me que não têm nenhuma esperança de a salvar. Nem sequer podem tentar operá-la. Tens de te preparar para o pior.

- O pior, o pior, mesmo?

- Sim, o pior, mesmo, meu filho.

Agarrara, desesperado, a mão do pai, apertando-a com uma energia crescente e inesperada, cerrando os dentes com todas as suas forças, o corpo entregue a uma brutal convulsão. Ele conteve-o, segurando-lhe a mão com firmeza mas ao mesmo tempo com doçura. Também o pai sofria, no entanto a sua mágoa era sábia e resignada, a de um homem já experimentado pela dor mas tocado por uma incondicional compaixão pela desventura do filho, por quem sabia que nada seria possível fazer naquela ocasião senão partilhar sem hesitações um espasmo de horror.

Dias depois, no cemitério, alguém vestido de preto perguntara-lhe se queria ver o cadáver. Ele respondera que sim com a cabeça, envolvendo o pânico num dorido sorriso de cortesia. Aproximara-se devagar, muito devagar, daquele corpo prestes a ser tragado pela terra. Tremia de frio, de medo, de febre. Fixara apenas por alguns segundos o rosto dela, as feições crispadas pela revolta de quem não quer morrer, de quem vai ainda uma última vez gritar que não pode ser, que não deixa, que não permitirá tão intolerável injustiça. Era como num pesadelo: nada mais irreal para ele do que aquela morte, a morte dela, a única, além da sua ou da filha, que sempre lhe soara como impossível, inconcebível, absurda.

 

«Em tempos escrevi o princípio de um livro que nunca acabei. Começava com um enterro. Falava da solidão de um viúvo num lugar quase ermo, mas perturbado aqui e ali pela presença alcoviteira de gente a quem ele não queria ouvir nem falar. Calor tórrido e húmido, colarinho branco enegrecido pelo suor, gravata preta. A personagem sentia que a morte da mulher lhe trouxera finalmente a liberdade de ser e de estar na vida. E dividia-se entre o pavor de ter ficado só e a vertigem de poder a todo o momento fazer da sua vida o que quisesse. Depois de dactilografadas as primeiras páginas, abandonei o tema. O editor disse-me que não venderia mais do que trezentos ou quatrocentos exemplares, porque não havia público suficiente para coisas tão mórbidas. Se calhar tinha razão, mas agora isso deixou de me interessar. Preciso de escrever sobre a morte de Paula, com ou sem editor. Não há aqui uma questão de dinheiro, como quando fiz os outros livros que publiquei; talvez seja um imperativo categórico, absoluto. Pela primeira vez não vou vender nada de mim, só me ofereço e ofereço aos tais trezentos ou quatrocentos leitores a obra que não posso deixar de escrever.»

 

Madrid era um cemitério, o Prado seu símbolo. Ali Eugénio descobrira o quadro de Hans Baldung, um discípulo de Dürer e de Grünewald, intitulado As Idades e a Morte. Corpos amarelecidos, iniciando o percurso para um fim próximo ou longínquo, o recém-nascido, a jovem e a velha já quase tão esquelética como a Morte que, de ampulheta na mão, espera o momento exacto de anunciar a cada um ter chegado o tempo de dar por terminada a sua breve passagem pela Terra.

À noite certas ruas quase se despovoavam. Eugénio continuava a caminhar, agora como trinta anos antes, transportando a sua desolação. Fixava rostos desconhecidos, esperava surpreender neles um sinal de cumplicidade, um aceno de simpatia, avançava sem destino. Perguntava-se por Paula e por si. Sabia que ainda conseguia dominar a sua depressão, mas acreditava que não lhe poderia escapar, imerso como estava num mundo a dois, onde um deixara há muito e para sempre de existir.

Em 1973 bebera muito em Madrid. Copos e copos de aguardiente gallega para disfarçar o terror de estar só. Bebera para recordar Paula, se possível para a ouvir. Por vezes bastavam alguns minutos. Mas também acontecera ficar até os bares fecharem, preso ao linguajar dos outros frequentadores, desejosos de voltar tarde para casa. Quando saía, a sua atenção dirigia-se para um ponto longínquo do passado em Lisboa, uma praça deserta, um cais ou uma rua, lugares de encontro ou desencontro, alegria ou tristeza, aproximação ou ruptura. Porque houvera de tudo isso na relação entre ambos, talvez como em todas aquelas cujos intervenientes pretendem ultrapassar, nem que seja por escassos milímetros, a distância incomensurável que separa, como uma condenação sem apelo, os amantes entregues à vertigem de amar o amor.

Dissera-se: «Faz-me falta, não sei viver sem ela.» Mas dera-lhe também para descobrir o fascínio de se sentir um outro homem, de não ter horas para chegar a nenhum lado, limitações para permanecer nele, necessidade de regressar fosse aonde fosse. E achara que era bom ficar até lhe apetecer em frente do café e da aguardiente, em pequenos bares encontrados ao acaso dos seus passos pela cidade mal conhecida.

Percorrera livrarias, comprara obras em língua castelhana que sabia não ser capaz, naquele momento, de ler com a atenção requerida. O Quijote ilustrado por Gustave Doré, Patria Mia, de Ezra Pound, as Memórias de Adamov. Procurara mergulhar nas páginas dilacerantes escritas pelo russo, mas os olhos fugiam-lhe delas, imersos num tempo irrecuperável. Paula encontrava-se ali, a poucas centenas de metros dos lugares onde ele comia, bebia, dormia. Seus olhos iriam ficar para sempre cerrados e já não sofreria. Mas ele perdera já as suas mãos e o seu sorriso e, com eles, perdera-se a si próprio. Perdera-se numa cidade distante, que nada lhe narrava do seu passado e onde se sabia um estrangeiro. Via-se ao espelho e era assaltado pela curiosidade de conhecer melhor o rosto que fitava, um rosto magro, anguloso, ainda jovem mas marcado pelo desespero e ao qual sentia faltar algo de essencial, como se tivesse sido mutilado pela dor. «O inconsolável chorava o insubstituível», sintetizaria, em menos de meia dúzia de palavras, Vladimir Jankélévitch.

 











23 de Maio

 

 

«Como é que perguntava Musset? Era qualquer coisa neste sentido: ‘Porque é que escrevemos sobre as pessoas que amámos? Para as imortalizar ou para acabar de as matar dentro do nosso coração?’ Interrogação sem resposta possível para mim, mesmo que estivesse ao meu alcance ‘imortalizar’ alguém. Agora, aqui, em Madrid, nesta cama de hotel, passado o meio-dia e depois de uma sórdida noite alcoólica, como é que vou responder à questão que Musset terá colocado a Sainte-Beuve, quase sem fôlego, depois de abortada a relação com George Sand? Quem imortaliza quem, que importa tal bizantinismo? Importa, sim, se de facto conseguimos libertar-nos de uma pessoa escrevendo sobre essa mesma pessoa. É isso que importa. O resto é literatice, estafada literatice, jogo de salão, grotesca renda de bilros, nada tem a ver com a existência profunda dos lastimáveis seres humanos que todos somos.»

 

Eugénio levantou-se devagar, ficou alguns momentos sentado na cama e avançou para o duche, onde permaneceu durante um bom quarto de hora, fustigando o tronco e os braços com prolongados jactos de água morna. Depois vestiu-se, desceu até à recepção do hotel e perguntou:

- Onde é que se come bem, não muito longe daqui?

O funcionário olhou-o sem surpresa, indicou-lhe três ou quatro restaurantes e acentuou, para que não lhe restassem dúvidas, o dedo apontado a um nome e uma morada:

- Este é um dos melhores de Madrid, se quiser comer cordero asado ou cochinillo asado. Pode ir a pé, são só dez minutos.

Era perto, na Calle de los Cuchilleros. Entrou. Disse ao empregado:

- Estou só.

O homem quis colocá-lo no mais incómodo dos lugares à vista, frente a uma parede e de costas para os outros clientes que quase enchiam a sala. Falou-lhe com dureza, mas procurando disfarçar a irritação:

- Não se diz a uma pessoa que vem sozinha a um restaurante para ocupar um lugar onde ela fica sentada a olhar para uma parede. Compreende o que lhe estou a dizer?

Acabou por ser colocado não muito longe de um bando de escoceses que regressara de Sevilha após o seu clube de futebol ter jogado na final de uma taça qualquer contra uma equipa portuguesa. Pela conversa, preparavam-se para voltar a casa apenas no domingo e, entretanto, iam-se embebedando em Madrid. Gente de aparência alegre e inofensiva, na sua maioria muito jovem, encantada por se encontrar numa cidade estrangeira, conviver entre si e ingerir o maior número possível de barris de cerveja. Eugénio pediu o cordero asado, meia garrafa de Rioja e pimenta para moer. Comeu com evidente prazer a carne, provou o respectivo molho, saboreou o vinho tinto. Rematou o almoço com um café e um whisky velho, duplo, sem gelo. Olhou os jovens escoceses com simpatia e pensou: «Por bons ou maus motivos, lá vão viajando. A geração deles nem imagina o que foi a minha em Portugal. Eu, com a idade da maioria deles, nunca tive dinheiro para ir além da cidade do Porto.»

Recostou-se na cadeira, pediu um puro e aspirou, deliciado, aquele perfume que não experimentava há dez ou quinze anos, não sabia ao certo, era-lhe impossível recordar com precisão em que momento decidira começar a obedecer aos conselhos do cardiologista que o assistira desde que uma angina de peito o advertira de que as suas artérias e o seu coração já não eram os da juventude. Puxou do pequeno bloco de apontamentos que trazia num dos bolsos exteriores do casaco e escreveu:

 

«Que é isso de memória? Aquilo que nos é imposto seleccionar? Aquilo que queremos seleccionar? Aquilo que podemos seleccionar? Restam os sonhos – pior, os pesadelos. Neles, a ansiedade e a angústia estão sempre presentes – e essas não nos deixam mentir. ‘Nunca conheci quem tivesse levado porrada’? ‘Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo’? Deve ser assim mesmo. Pelo menos nos pesadelos, os meus conhecidos desfazem-me sempre, tratam a murro e pontapé o que mais amo e troçam de minha evidente fragilidade. Humilhação em linha recta, mesmo.»

 

Nas mesas mais próximas, separadas por menos de um metro, um casal norte-americano na casa dos trinta anos contrastava com um outro, espanhol, já muito perto dos setenta ou mesmo dos setenta e cinco. Os primeiros comiam olhando o vazio, mudos, como quem não está acompanhado; os outros conversavam docemente, ouvindo-se com atenção, cúmplices de um longo, antigo e idêntico percurso.

 

«Já vi, por esse mundo fora, todo o tipo de casais nos restaurantes, gente com as idades mais díspares e das mais variadas nacionalidades. Os pares que não conseguem falar entre si talvez sejam os que mais me confrangem: são esses os autênticos estranhos, aqueles que já nem de discutir são capazes. Os que se confrontam, pelo menos, ainda estão vivos... E o ódio, o verdadeiro ódio? Esse, nunca o observei tão de perto como em certas longas relações conjugais: cada palavra pronunciada por eles ou por elas é uma farpa, uma estocada, o início de um conflito, um prenúncio de tortura psicológica, uma explosão de raiva acumulada durante decénios de ressentimentos. Não, Paula, nós, felizmente, nunca vivemos nada disso. Mas, nos últimos anos do nosso casamento, concentravas toda a tua atenção na nossa filha, estavas obcecada por ela, pelo seu bem-estar, pelas suas mínimas doenças, pelo seu futuro. Havia algo de muito contraditório em ti, talvez porque exigias de mais das tuas forças, porque não querias falhar em nada no teu papel de professora, de mulher, de mãe. No entanto, por vezes já nem suportavas ouvir o choro dela no berço, chegaste a gritar, uma noite, às quatro da manhã, que a ias atirar pela janela, pediste-me para te segurar, eu agarrei-te, abracei-te, as tuas lágrimas sentia-as escorrer pelo meu ombro, o teu corpo tremia de frio e colava-se ao meu, o teu pânico entrava em mim, revolvia-me por dentro, deixando-me paralisado. E eu sentia-me só, cada vez mais só, porque a criança tinha-se transformado, em boa verdade, na tua única paixão, as paixões são assim, exclusivas, toda a gente sabe que elas não concedem qualquer espaço às pessoas que não são o seu objecto. Por isso me pergunto hoje se, quando morreste, fiquei verdadeiramente menos sozinho, porque apenas a partir de então me pude sentir acompanhado pela memória do que tinham sido os primeiros anos da nossa vida em comum. Lembras-te? Disse-te um dia, poucos meses antes do acidente, que só continuava a viver contigo por causa da nossa filha. Hoje não sei se isso era verdade, mas de facto foi essa frase cruel que te atirou o meu cansaço, a minha revolta, o meu egoísmo. Choraste. Eu gritava de despeito e de raiva, porque intuía que te estava a perder e que o teu mundo já não era do meu reino.»

 

Na rua, o calor apertava. Caminhou até à Puerta del Sol e procurou a direcção da Casa del Libro. Na estante de poesia, foi percorrendo os títulos e os nomes dos autores. Escolheu Il dolore, de Giuseppe Ungaretti, pagou e regressou ao hotel. Releu a badana que o levara a comprar a obra:

«Fizeram-me a observação que, ao haver perdido de uma maneira extremamente brutal um filho de nove anos, devo saber que a morte é a morte. Foi a coisa mais terrível da minha vida. Sei o que significa a morte, também antes o sabia; mas então, desde aquele momento, quando me foi arrancado o melhor de mim, experimento a morte em mim. Il dolore é o livro que mais amo, o livro que escrevi nos anos horríveis, com um nó na garganta. Falar dele parecer-me-ia impudico. Essa dor nunca deixará de me dilacerar.»

Começou a folhear, inquieto, as primeiras páginas, o grito de um homem mutilado pela morte do filho. Depois fechou os olhos, incapaz de se concentrar durante mais tempo num sofrimento que tinha sido de outro, que não era o seu.

 

«Sim, a morte de um filho, a morte física de um filho, não deve haver dor mais terrível. Mas há muitas maneiras de um filho nos morrer, ainda que continuando fisicamente vivo. Digamos que tais mortes são menos brutais e menos aterradoras – mas não menos autênticas. Um dia cheguei a julgar que a minha filha morreria dentro de mim, quando percebi que ela já não me amava. Se tive ou não tive uma pequena ou uma grande responsabilidade no seu desamor, acaba por ser secundário. Há, de facto, muitas maneiras de os filhos nos morrerem, ainda que continuando fisicamente vivos. Mas a dor que me provocou essa perda afectiva não é comparável à causada pela morte física, essa é mesmo a morte de todas as mortes, a morte absoluta – pelo menos para os que não são capazes de acreditar na imortalidade da alma, na ressurreição da carne ou em outra qualquer forma de sobrevivência individual. A morte física, eis a única irreversível. ‘Quando me foi arrancado o melhor de mim...’ O filho de Giuseppe Ungaretti, com nove anos ao morrer, seria porventura o melhor do homem que ele foi, como a Paula, minha mulher, teria sido o melhor do homem que eu fui?»

 

Estremeceu. O monólogo permanente dilacerava-o, ciente como estava de que as diferenças entre aquilo que sentia e pensava em 1973 e o que sentia e pensava agora determinavam uma inquietante impossibilidade de se conceber como um ser uno, sempre igual a si mesmo, coerente. Aliás, o viúvo de trinta e quatro anos sabia que teria, provavelmente, ainda muito tempo para viver a sua vida; o homem de sessenta e quatro anos em que se transformara alimentava apenas alguma esperança de terminar o seu último livro e de conquistar, então, durante escassos meses ou alguns anos, até ao fim, a serenidade ainda possível.

Poucos anos depois da morte de Paula, tinha-se tornado num assíduo leitor da Bíblia, de alguns teólogos do século XX e dos grandes místicos medievais ligados ao cristianismo. Relera Unamuno com outros olhos, elegera durante largas épocas os Pensamentos de Pascal como seu livro de cabeceira, embrenhara-se em todo o Rilke, não apenas no poeta e no ficcionista, mas sobretudo no autor da Correspondência – sempre cioso da sua solidão, do seu «universo submarino», da sua interioridade –, onde confessava não desistir do «combate» jamais concluído pela procura de Deus e preconizava que «é necessário aprender a morrer lentamente.» Recordava, comovido, O Livro de Horas: «Ó Senhor, dá a cada um a sua própria morte, /verdadeiro morrer que venha dessa vida/em que encontrou amor, sentido e dor.» E o Requiem: «Sê morta entre os mortos. Os mortos estão sempre ocupados./Mas ajuda-me de forma que isso não te distraia/como por vezes o mais longínquo me ajuda: dentro de mim.»

 

«Se me perguntassem o que andei a fazer de importante nestes últimos trinta anos, teria muita dificuldade em responder. Não me casei uma segunda vez, não tive outro filho, escrevi meia dúzia de livros que daqui a uns tempos ninguém recordará ou lerá. Vivi a euforia e o desencanto da chamada ‘Revolução’, mas isso foram apenas dezanove meses, entre 25 de Abril de 1974 e 25 de Novembro de 1975. Depois tudo se ajustou aos varais das democracias parlamentares e eu deixei de me interessar pelos políticos politiqueiros que desde então não cessaram de tecer loas ao pretenso ‘Estado de Direito’. Interessou-me, sim, ultrapassar-me no que escrevia, ir um pouco mais além na descoberta de mim mesmo e dos outros, das relações entre as pessoas, das suas grandezas e misérias. E até cheguei a pretender concentrar-me nos três únicos grandes temas, Deus, o Amor, a Morte. Mas ou não era capaz, ou não tive tempo suficiente para isso, porque a pressão de vender rapidamente o que escrevia foi mais forte do que tudo e me impediu de consagrar muitos anos a conceber o mesmo livro, enquanto fazia as traduções que, essas sim, ao contrário dos romances que assinava, me asseguravam um ordenado certo e até confortável no fim de cada mês. Agora que tudo isso acabou e me reformei, graças à minha angina de peito, já não tenho mais desculpas. Pela primeira vez na vida, sou dono do meu futuro. E tudo o que tenciono escrever se relaciona, directamente ou não, com a morte de Paula. Não mais tentarei focar temas políticos: estou farto da conversa sobre a liberdade, a igualdade, a solidariedade. Quisemos de mais e perdemos tudo ou quase tudo quando ousámos exigir o impossível. O impossível, em política, é um cemitério onde quem entra nunca mais sai. Fica lá enterrado para todo o sempre, enquanto quase todos os sectores da classe política se divertem deixando tudo na mesma, em nome do equilíbrio, do bom senso e das próximas eleições que determinarão a sua sobrevivência ou parcial extinção enquanto casta privilegiada.»

 

Desceu a Gran Via até à Plaza de España, cortou à direita, subiu uma rua muito íngreme, virou à esquerda, continuou a caminhar, espreitou duas ou três ementas de cozinha oriental e deteve-se na Calle de Ponciano, perante a tabuleta de um modesto restaurante galego, o Airiños de Miño. Entrou, passou um balcão junto do qual umas duas dezenas de homens e mulheres olhavam a televisão enquanto bebiam e conversavam, procurou uma mesa no comedor e sentou-se. Não tinha fome, apenas pretendia satisfazer o paladar com alguma coisa saborosa e uma garrafa de ribeiro. O empregado trouxe-lhe percebes e o desejado vinho fresco. Bebeu um copo, quase com sofreguidão, relembrando com prazer a ligeira acidez que o tornava insubstituível no acompanhamento de certas tapas. Depois deteve-se a observar os frequentadores que começavam a entrar na sala, preparados para iniciar o fim-de-semana. Como um pouco por todo o mundo, numerosos casais, por vezes reunidos em pequenos grupos, assinalavam a noite de sexta-feira com uma ida ao restaurante, na expectativa de um sábado e um domingo de lazer. Eugénio era o único cliente solitário. Deu-lhe para pensar, já entrado nas aguardientes gallegas com que terminara a refeição:

 

«Sofro de congoja, essa palavra de origem catalã que o grande e valente basco Don Miguel de Unamuno, bendito seja ele e mais o seu ‘homem de carne e osso’, fez entrar de vez no vocabulário filosófico castelhano. Angústia é pouco, termo mais domável ou aperaltado, desde que foi surripiado a Kierkegaard e passou a frequentar com suspeita assiduidade, e de pantufas, os apartamentos dos grandes boulevards parisienses. A congoixa catalã é uma maldição que se instala mesmo nas nossas entranhas, visceral, impossível de digerir por qualquer órgão humano e de aniquilar pelo coração, vomita os ansiolíticos dos psiquiatras, manifesta-se irredutível a qualquer abordagem dos profissionais do pensamento – que, aliás, são exímios na arte de o reduzir a silogismos mas incapazes de o viver com a intensidade de uma doença incurável e dolorosa. Doença que nos acompanha sempre, desde a infância, pela vida fora, detendo-se aqui e ali, seja nos seres que amamos, seja nas longas e estúpidas e fastidiosas tarefas do nosso quotidiano, seja no temor da ausência ou no pânico da morte de Deus, seja na vertigem do nada ou na ânsia de imortalidade. Os castelhanos, esses arrogantes ‘senhores do castelo’ ibérico, são incorrigíveis na sua pretensão de domesticar galegos, bascos, catalães. Até as palavras lhes arrebanharam, até a congoixa fizeram sua e agora tratam-na por tu, depois de lhe tirarem o ‘i’ e de lhe substituírem o ‘x’ por um ‘j’, como se a conhecessem desde que nasceu e sempre lhes tivesse pertencido.»

 

Levantou-se. Cambaleava, mas ninguém pareceu notar a sua saída, porque os homens e as mulheres ali presentes, cada vez mais barulhentos, se encontravam aparentemente apenas interessados no que bebiam, comiam ou discutiam quase aos gritos. Chegado à rua, desceu na direcção da Plaza de España e começou a subir a Gran Via, ainda muito povoada pelos grupos de jovens noctívagos do fim-de-semana. Parou, encostou-se à parede de um prédio e ficou-se a olhá-los, entre a perplexidade e o espanto. Já a caminho do hotel, murmurou:

 

«Deve haver muitas pessoas felizes por aqui, ou pelo menos muitas pessoas que se julgam felizes, a diferença é demasiado subtil, se é que de facto existe alguma diferença. Pouco importa, o que importa mesmo talvez seja arredar o sofrimento das suas vidas, ainda que estejam enganadas acerca do que são e do que as espera. Que Deus lhes valha, se está vivo e não dorme! Como dizia o David Mourão-Ferreira, irrespondível nas lúdicas voltinhas da sua lógica: ‘Se há um Deus/que te aprova/esse Deus/não me assiste. Um de nós/ é a prova/ de que Deus/não existe.’»

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 24 de Maio

 

 

Tomou o metropolitano na direcção de Fuencarral, passou as estações da Plaza de Castilla e Chamartín, desceu em Begoña. Lá estava o Hospital La Paz, onde Paula agonizara e morrera, e onde ele, Eugénio, tinha sido internado por alguns dias depois do acidente. Talvez por ser sábado, o movimento de pessoas era intenso, ampliado pelo aumento do número das visitas aos doentes internados. Havia ali algo que lhe fazia lembrar ao mesmo tempo um imenso armazém de detritos destinados à incineração e um terrífico campo de concentração onde os condenados apenas aguardassem o momento de ser executados. Percorreu durante uma boa meia hora os espaços vazios entre os vários blocos de cimento, parou, aqui e ali, para observar pessoas e coisas, tentou sem êxito reconhecer os lugares que trinta anos antes fora obrigado a cruzar, dias e dias, para se informar do estado de saúde de Paula e a olhar, através de um vidro, imóvel, entubada e de olhos fechados, na unidade de cuidados intensivos. A memória não o socorria, apenas lhe dizia que tinha passado por ali ou por quaisquer outros edifícios muito semelhantes, como num antigo e persistente pesadelo. No entanto, fora mesmo no Hospital La Paz que, sem retorno possível, tudo ruíra à sua volta, deixando-o sem rumo nem esperança.

Com a morte na alma, desceu a pé o interminável Paseo de la Castellana, quilómetros de grandes edifícios, até encontrar a Plaza de Cólon. Não saberia dizer quanto tempo demorara, imerso num mundo de calor e de fantasmas, olhando para tudo sem nada ver, as pernas e os pés pesando como grilhetas que seria necessário arrastar até à eternidade. Aturdido, sentou-se num banco de jardim do Paseo de Recoletos, fechou os olhos e adormeceu quase de seguida, como alguém que acaba de ser submetido a uma prova de resistência e sente que o seu dia deve terminar ali, que nada mais pode exigir das suas forças.

Despertaram-no risos de crianças. Três ou quatro meninos corriam em volta do banco onde se encontrava, soltando gargalhadas e quase roçando as suas pernas. Esboçou um sorriso contrafeito para os miúdos, levantou-se e voltou a caminhar na direcção da Plaza de Cibeles.

 

«Não consegui acompanhar a minha filha desde o nascimento até à idade adulta. Ela acabou por ficar ligada apenas à mãe e à irmã da Paula, que passaram a cuidar dela após o acidente. E eu fui vivendo como um homem só e egoísta, quase me limitando a pagar mensalidades para o seu sustento e educação, até que acabou o curso e praticamente desapareceu do meu horizonte. Decerto que tive culpas em tudo isso, mas não todas. Se calhar dei-lhe pouco de mim e ela não soube receber esse pouco que lhe dei, porque o universo onde vivia era muito diferente do meu. Mas, durante muito tempo, amei-a à distância, embora já suspeitasse de que ela não me amava. E, quando adquiri a convicção de que já nada a aproximava de mim, despedi-me em definitivo pelo telefone, depois de algumas coléricas e azedas trocas de palavras. Isso significa que vou acabar sozinho, na melhor das hipóteses em casa, com um ataque cardíaco, mas mais provavelmente numa cama de hospital ou num desses sinistros asilos de velhos a que se dá agora a pomposa designação de ‘lares da terceira idade’ ou, até, de ‘casas de repouso’, mas que não passam de lucrativas antecâmaras da morte de onde o amor está sempre ausente. Bom, basta de lamúrias, de jeremiadas, vamos mas é almoçar enquanto é tempo e o melhor possível...»

 

Apanhou um táxi, indicou a direcção ao motorista e pensou na próxima ementa. «Vou outra vez comer cordero asado, está visto. Não é um prato muito pesado, tem óptimo sabor se lhe acrescentar um pouco de sal.» Chegado à Calle de Preciados, entrou no restaurante, escolheu um lugar na sala do piso inferior e, mesmo sem olhar para a lista, indicou ao empregado o que pretendia almoçar. Pediu um aperitivo – sempre o mesmo xerez seco, bem fresco, que adquirira o hábito de beber em Madrid–, e olhou em redor. Numa das mesas, um casal, sem dúvida da classe média alta, comia com o filho. Havia algo de estranho nos gestos de todos, a permanente solicitude do pai e da mãe, a forma de estar do rapazinho. Era uma criança deficiente mental, mongolóide, com a facies, os esgares e a rouquidão tão característicos da doença. Gritava vezes sem conta «mamã, papá, mamã, papá», agitava as pequenas mãos, balançava como um pêndulo o tronco para a frente e para trás, evidenciava um incontido afecto em relação aos progenitores, numa inequívoca empatia. Observou com discrição o quadro, de coração apertado, sem conseguir dominar a emoção.

 

«Isto foi-me poupado, ter um filho deficiente mental. Vendo bem, muita coisa me foi poupada: livrei-me da Guerra Colonial sem ser forçado a emigrar, não fui torturado pela polícia política, não tive, até agora pelo menos, nenhuma doença grave além da angina de peito há não sei quantos anos. Mas ser pai de um filho mongolóide, como se tornará possível viver todos os dias com isso, com essa maldição? Está fora de causa a capacidade de o amar, mas o nosso sentido de culpa por o termos deixado nascer, a nossa incapacidade de o proteger no futuro, caso ele viva até uma idade mais avançada do que é habitual nestes casos, a nossa impossibilidade de o transformar numa pessoa considerada ‘normal’? E, no entanto, aquela meiguice que dele irradia para o pai e a mãe talvez seja dos sentimentos mais puros, mais desinteressados, mais genuínos, que pode aproximar qualquer ser humano de outro ser humano. Bem vistas as coisas, a sociedade é sempre imoral ao classificar certas crianças como ‘anormais’: basta que não lhe dêem a expectativa de ser úteis, isto é, de a servir com o seu trabalho depois de terminada a adolescência ou a juventude, para lançar sobre elas o anátema e apenas cuidar dos que têm pais com meios para pagar a instituições capazes de lhes proporcionar uma assistência digna desse nome. A afectividade só interessa aos poderosos na medida em que pode ser canalizada para fins muito concretos, como por exemplo quando há uma guerra, altura em que é necessário invocar algo de irracional com a finalidade de arranjar ‘heróis’ dispostos a morrer por uma causa cujo verdadeiro sentido, na maioria dos casos, lhes escapa. Gostaria de saber da existência de Algo ou Alguém a quem agradecer não me ter nascido um filho deficiente mental, mas não posso ou não sei fazer tal coisa. Como seria tal atitude concebível, depois de Auschwitz e de todas as outras tragédias individuais e colectivas que conhecemos? De resto, já há muito tempo que David Hume e Voltaire arrumaram a questão e disseram tudo o que há a dizer sobre a inconcebível hipótese de se verificar qualquer intervenção divina nos ‘insignificantes’ e ‘mesquinhos’ assuntos que amarguram a existência dos humanos...»

 

Fechou o almoço com um whisky duplo, enquanto, muito perto de si, vinda de uma mesa ocupada por três executivos de pasta e gravata, a palavra ingresos, a cada minuto martelada por um deles, lhe feria os ouvidos. Os bons restaurantes, sobretudo à hora do almoço, estavam cheios de tal gente de gestos estudados e sorriso fixo nos lábios que comia carne ou peixe grelhados, bebia apenas água mineral e tinha a alma povoada por hipotéticas promessas de chorudos ingresos. Mas ao sábado? Até ao sábado aquela fauna não parava de negociar, de competir, de procurar ser cada vez mais rica?

 

«Nunca se falou à mesa da refeição tanto como agora de lucros e despesas, de ganhos e perdas, de investimentos, de produtividade, de racionalização dos custos. Para o homem comum ocidental isso tudo traduz-se por uma única palavra, ‘desemprego’, muitas vezes depois de dezenas de anos de trabalho árduo e mal pago. Passa então a ser tratado como um pária, um peso morto que já perdeu o direito a um lugar ao sol entre os seus concidadãos, um indesejável encargo para a segurança social. Um dia alguém acabará de vez com esse ‘anacronismo’ do Estado-Providência. Aqui e em todos os países ricos já se foi a época em que os velhos eram uma ínfima minoria e portanto não saíam caros e podiam ser respeitados sem grandes custos orçamentais. No tempo em que a idade de reforma em Espanha foi fixada nos sessenta e cinco anos, a esperança média de vida rondava, aqui, os cinquenta e cinco anos! Saía tão barato aos poderes constituídos apaparicar os idosos, fazer alarde de bons sentimentos, compreensão, amor ao próximo! Era mesmo ao preço da chuva! Mas, agora, tornou-se necessário sustentá-los até cerca dos oitenta anos, com dinheiro, medicamentos, ‘lares’, tudo – e cada vez mais gente, jovem ou em plena maturidade, das classes abastadas, grita alto e bom som que não está disposta a financiar essa ‘caterva de inúteis’ com os seus queridos impostos. ‘Que tivessem poupado em vez de gastarem na taberna ou em coisas que nunca deviam ter comprado, como se fossem gente a nadar em dinheiro!’ Com estas ou outras palavras de idêntico calibre, é este o cerne do discurso neoliberalóide dos chacais em imparável ascensão, em plena era da extinção dos últimos leopardos.»

 

Levantou-se para sair, lançando um último olhar ao menino mongolóide. As mãozitas da criança, indefesas, agarravam agora o braço do pai, com uma indisfarçável ternura. Olhou para a mesa onde se encontravam os executivos, meneou a cabeça e pensou:

 

«Se estivesse mesmo bêbedo ia lá perguntar-lhes o que acham de tudo isto, daquela criança e dos desempregados cuja vida é decidida todos os dias em almoços de patrões e administradores. Se estivesse mesmo bêbedo ou tivesse coragem e não soubesse que tudo o que fizesse seria inútil. De resto, o que importaria mesmo é que eu possuísse o poder de transplantar o que há de sublime nos gestos daquela criança para as cabeças desta gente que já escolheu para a grande maioria dos europeus o pior dos futuros possíveis. Um futuro em que decerto eu não estarei presente mas que criará um novo tipo de sociedade esclavagista, onde uma impiedade de sofisticados contabilistas dominará sem qualquer réplica eficaz todas as relações entre as pessoas, incluindo as do poder com os velhos, os desempregados e as crianças deficientes mentais. Não, não quereria viver nesse futuro, mesmo que me fosse dado lá chegar. Antes atravessar este tempo com um filho mongolóide por quem me sentisse amado. Antes continuar a habitar este mundo execrável, injusto, absurdo, mas onde ainda existe, por vezes, uma ténue esperança de utopia. Antes morrer agora.»

 

Hesitou: iria beber mais um copo? E por que não? Era sábado, os bodegóns junto à Plaza Mayor começavam a encher-se de uma animada multidão organizada em pequenos grupos de jovens, de homens e mulheres maduros, mesmo de pessoas idosas. Gente na sua maioria sem grandes posses, divertida, barulhenta.

 

«Sempre é mais agradável ver esta fauna que parece gostar de estar viva do que os executivos do restaurante, que não paravam de falar de ‘ingresos’. Ao menos aqui, embora as pessoas não sejam anjos, são pessoas. Ainda nem todas entraram com os dois pés no reino do deve e do haver, embora não possam deixar de se preocupar com isso. Mas a sua vida não é uma constante contabilidade, querem gozá-la e não comungam durante a celebração eucarística da oferta e da procura.»

 

Na barra, enquanto ambos bebiam, um homem muito idoso dirigiu-lhe a palavra:

- É estrangeiro?

- Sim, sou português.

- De Lisboa?

- Sempre vivi lá. E o senhor?

- Sou daqui, nunca saí daqui, nem mesmo quando era criança, durante a Guerra Civil.

- Foi terrível, não?

- Lembro-me de muito pouco, mas nunca me esquecerei dos bombardeamentos alemães a Madrid. Toda a gente só fala de Guernica, mas a capital também sofreu muito nessa época. A verdade é que já poucos se lembram disso – ou que poucos se querem lembrar do que se passou.

- Os seus pais eram republicanos?

- Não, o meu pai era por José António – mas nunca foi por Franco. O caudillo mostrou bem ser o maior inimigo de José António, traiu-o e traiu os falangistas, não pensava noutra coisa senão em ser ele o único a mandar, doesse a quem doesse. E acabou por conseguir aquilo que queria, porque ninguém teve cojones, entre os nacionalistas, para lhe fazer frente. Quanto aos comunistas e aos anarquistas, Franco matou todos quantos pôde matar. Ao menos agora já não sucedem barbaridades dessas, temos a democracia, mas não morro de amores por ela. Estou até bem farto da conversa fiada com que todas as noites nos enchem os ouvidos nos noticiários da televisão.

- Porquê?

- Porque somos o país da Europa onde há neste momento mais desempregados, e os señoritos que nos governam não são capazes de compreender que Espanha não é apenas a pátria de señoritos satisfechos como eles, é sobretudo o asilo de muita gente que vive mal, com muitas dificuldades, como eu. Trabalham para os ricos, não trabalham para nós, o povo. Votei uma vez – e basta. Nunca mais me apanham, nunca mais me darei ao incómodo de participar em eleições. São todos iguais, os políticos.

Eugénio pagou, despediu-se do seu interlocutor e decidiu ir a outro bodegón. Não se sentia capaz de prosseguir a conversa. A política fatigava-o como nenhum outro assunto, agora que os europeus pareciam, na sua esmagadora maioria, acomodados às democracias parlamentares implantadas nos seus países. Só um ou outro acontecimento internacional, como as ocupações do Afeganistão e do Iraque, lhe despertara nos últimos tempos a indignação, mas de uma forma controlada, como se as coisas se estivessem a passar num longínquo planeta que deixara de lhe dizer respeito e no qual lhe seria impossível contribuir para modificar fosse o que fosse de importante.

 

«Correu muita água sob as pontes desde a minha juventude, já não tenho forças, nem tempo, nem paciência para lutar. O que dantes me enfurecia, agora apenas me provoca um melancólico esgar de repulsa pelos senhores deste mundo, onde um arrogante suserano americano se faz obedecer sem qualquer aparente dificuldade por todos os seus subservientes vassalos europeus e não europeus. A queda da União Soviética não significou apenas a fragmentação do “socialismo real” e o desaparecimento de uma alternativa possível – ainda que indiscutivelmente muito imperfeita –, à ditadura mundial do capitalismo. Foi sobretudo o símbolo da entrega a um único país, os Estados Unidos da América, do aterrador poder imperial de governar os povos de todo o mundo, com tudo o que isso poderá significar de perda irremediável das suas identidades ao longo dos séculos. Não, já não vejo nada à minha volta senão mortes: mortes de pessoas queridas e de projectos sociais, mortes físicas e mortes ideológicas, mortes interiores e mortes exteriores. Feito o diagnóstico, resta-me aceitar a única conclusão lógica: cheguei a um beco sem saída, encerrei-me de vez no meu inferno pessoal e abandonei toda a esperança. Em Madrid, como em Lisboa ou em outro qualquer lugar do mundo, não existe salvação para mim.»

 

 

 

                                               


 

 

 

 

 

 

25 de Maio

 

 

«Haverá um mesmo desprezo pela literatura em Santo Agostinho e Julien Green? É lícito pensar que, para estes dois intelectuais cristãos separados por quinze séculos, o importante foi sempre a relação de pessoa a pessoa com Deus – e não os textos pelos quais cada um deles se tornou célebre. Mais pensamento menos pensamento, mais livro menos livro, o decisivo fica sempre por dizer: Deus não fala e a prece que se lhe dirige é irredutível a conceitos, frases, raciocínios. As palavras utilizadas por Santo Agostinho nas Confissões (vacuidade, futilidade, vazio) ao referir-se à cultura grega e romana, nomeadamente a Homero e Virgílio, parecem denunciar a fundamental perda de tempo pela qual se traduz qualquer actividade criativa que não vise o sagrado. Em última análise, dir-se-ia que todo o esforço intelectual que não tenha Deus, a imortalidade da alma e a ressurreição da carne como alvo final se transforma em supérflua tarefa lúdica, 'divertissement' na sobranceira acepção pascaliana, pretensiosa e ridícula leviandade  inconciliável com o sentimento trágico da vida. ‘A única certeza é a Fé’. As ‘verdades’ do senso comum e da ciência podem sempre ser objecto de dúvida metódica. Só a Fé escapa ao relativismo: para o crente, é a certeza das certezas, a vivência das vivências, o encontro definitivo com o absoluto. Nenhum facto ou silogismo a poderá pôr em causa.’ Tão bem e tão fundo quanto este ‘secreto’ Wittgenstein que nenhum catedrático parece interessado em ensinar, minha avó Francisca, a mãe de meu pai, deu-me conta da impossibilidade de abalar a certeza do crente. É algo de inatingível a partir do exterior – apenas poderemos observar, boquiabertos, como resiste sem um estremecimento aos mais dolorosos acidentes ou incidentes, a todas as perguntas incómodas, a quaisquer complexos raciocínios arquitectados pela nossa incapacidade de acreditar. Minha avó cria com a mesma naturalidade com que respirava – e não era pensável, sequer, conduzi-la a interrogar-se sobre o fundamento das suas convicções. Viveu e morreu sem necessidade de fazer a desesperada ‘aposta’ de Pascal. No seu espírito não havia lugar para a dúvida, porque o seu reino não era o da razão que pergunta pelo sentido das coisas, mas o da sensibilidade que vive a certeza de o ter encontrado – e de uma vez por todas.»

 

Levantou-se da cadeira onde escrevia, no quarto do hotel, e deitou-se na cama. A insónia incitara-o a tomar apontamentos acerca de tudo o que lhe vinha à ideia, por vezes sem nexo imediato com as preocupações conscientes dos últimos dias. Repetia para si, febril, algumas frases que em tempos tinha transcrito do Journal de Julien Green:

 

 «O pessimismo de Job é monumental. Nunca ninguém soltou tais rugidos contra a Providência.» «Deus não existe, dizia Mestre Eckhart, Deus tal como o imaginam os homens. Mas existe Deus tal como o desejamos no fundo do coração.» «A palavra do Cristo – Ego sum Ressurrectio et Vita – é uma palavra de juvença. O resto é literatura.»

 

Voltou a sentar-se e continuou a escrever:

 

«A ideia de Providência é talvez a mais repugnante de todas aquelas que a religião cristã institucionalizada pretende transmitir-nos. Voltaire resumiu com incontestável eloquência o que se lhe oferecia dizer sobre ela após o terramoto de 1755 em Lisboa, que muitos padres da Companhia de Jesus consideraram como ‘um castigo de Deus’: ‘La Providence en a dans le cul’. Quanto ao deísmo, não é forçoso que ele se transforme num caminho para o ateísmo, antes se poderá revelar, pelo menos em determinadas circunstâncias, como o último golpe de rins que permite evitá-lo. Cada um deseja Deus à sua maneira, eu não posso desejá-lo senão como me ensinaram a concebê-lo na infância: benévolo, terno, paternal. Céus, aqui será conveniente introduzir alguma coisa do que Schopenhauer debitou sobre a chamada ‘necessidade metafísica’ e da forma como o clero a foi criando e alimentando, ao longo dos séculos, em sucessivas gerações de imberbes místicos e teólogos profissionais. Será conveniente recorrer a Auschwitz para justificar a pertinência do deísmo – ou, como Hans Jonas, para sustentar, não a omnipotência, mas a impotência de Deus? Não me bastará evocar aquela criança deficiente mental que observei no restaurante, uma única pessoa torturada pelo cancro, um único mendigo aniquilado pela fome? O Livro de Job não será mais do que suficiente para ilustrar a miserável história individual e colectiva de cada um e de todos os homens? Naquela impiedosa premissa maior do mais estafado dos silogismos – ‘Todos os homens são mortais’ – não estará contida uma verdade mais aberrante do que todas as que nos são sugeridas nos tratados de teologia cristã já escritos ou por escrever? Que Deus infinitamente bom ‘fabricaria’ homens para os condenar à suprema humilhação da morte? Um Job radical terá de interpelar, não apenas o grande responsável pela morte dos seus próprios filhos, mas o ‘inventor’ da morte de todos os seres humanos. ‘As velhas questões de Epicuro continuam sem encontrar resposta. Deus quer prevenir o mal, mas não pode? Então é impotente. Pode, mas não quer? Então é malévolo. Pode e quer? Então, de onde vem o mal?’ (David Hume).»

 

Adormeceu. Encontrava-se de pé, isolado, num lugar deserto e húmido, fixando uma extensa planície de terra castanha e estéril, sem uma única árvore, um único ser vivo à vista. De súbito, Paula caminhava ao seu encontro, detinha-se muito perto de si, mas ele não conseguia distinguir com nitidez as suas feições, cobertas por um misterioso véu de neblina. Estendia-lhe uma criança de colo, a filha de ambos. Dizia-lhe, com uma voz distante, fatigada e triste:

- Toma tu conta dela, é tua e minha, é o que resta de nós.

Ele perguntava, as lágrimas escorrendo-lhe pelas faces:

- Achas que será melhor assim, que ela se sentirá bem comigo?

Paula nada lhe respondia, dava um passo atrás, parecia apressada e querer ir-se embora, ter terminado a sua missão.

Eugénio ainda a chamava, num longo grito de medo:

- Por favor, não partas, há tanto tempo que não vejo o teu rosto, já passou tanto, tanto tempo... Não partas ainda, deixa-me falar contigo, contar-te quanto sofri, quanto desesperei, quanto senti a tua ausência. Ensina-me a ir aonde estás. Não me abandones agora, agora não, eu vim para estar mais perto de ti, fala-me, fala-me, em nome de tudo o que vivemos juntos. Fala-me de nós, de ti, de mim. Diz-me o que quiseres, acusa-me, condena-me, expulsa-me, mas fala-me, nem que seja pela última vez. Fala-me e conta-me o que fui para ti, se ainda me amavas quando morreste, explica-me por que te desiludi e te fiz sofrer, conta-me tudo o que sabes, tudo, não omitas nada do que sentiste ou ainda sentes. Não vês que preciso de saber, que talvez esteja à beira do fim e tenho a certeza de que não me resta muito tempo para compreender o que se passou entre nós, que estou exausto, só, completamente só com a minha memória, o meu remorso de ter continuado vivo? Oh, por uma última vez, ajuda-me! Ajuda-me e, depois, então, parte. Parte de vez, se assim o desejas, ou fica comigo, se isso ainda é ou já é possível. Mas liberta-me, liberta-me do meu passado!  

Paula já não estava ali. Agora ele olhava a criança e interrogava-a:

- Queres ficar comigo, gostavas de ficar comigo?

A filha não lhe respondia, transformara-se subitamente numa mulher adulta, hostil e silenciosa, de olhar duro e rosto fechado, que o fitava com estranheza e ódio. Nada lhe retorquia, voltava-lhe as costas e afastava-se, hirta, encolhendo os ombros num trejeito de indiferença ou de desprezo.

Quando acordou, com uma ligeira mas persistente dor que se estendia por todo o tórax, alastrava pelos ombros e pelos braços e só terminava nas palmas das mãos, pensou em voz alta:

 

«Sou uma espécie de Job. Um Job sem mulher que o acompanhe nem amigos com quem dialogue sobre Deus e a condição humana, a quem a única filha não ama, mas de qualquer maneira um homem posto à prova, como o outro, o da Bíblia, pelo mais atroz sofrimento psíquico. Um Job coberto pela lepra das recordações dolorosas e da injustiça do seu fim iminente e de todas as outras vidas humanas. Um Job com uma angina de peito, que recomeçou a sentir dores e que anda a fugir de uma nova intervenção cirúrgica há vários anos, aterrorizado com a ideia de morrer sem ninguém ao lado, numa cama de hospital.»

 

Foi nesse momento que lhe ocorreu um título possível para o livro que projectara escrever: Um Homem Desolado. Seriam as palavras justas para servir de pano de fundo à ansiedade, ao horror e à angústia que tratara por tu em tantos momentos da sua vida e capazes de traduzir os sentimentos que experimentara na íntima Via Crucis da infância, da adolescência e da maturidade. Uma infância de temores e tremores, uma adolescência sem pai nem mãe por quem se tivesse sentido amado, uma vida adulta distante da alegria ou da serenidade – enfim, o seu pequeno inferno pessoal, nunca suportado com a resignação exigida pelos costumes da família a que pertencia por nascimento e cujos valores repudiara.

Repetiu: Um Homem Desolado. E disse para si que, ao contrário do outro, o Job da Bíblia, jamais se conformaria com o seu destino, fosse ele ou não ditado pela vontade do deus judaico-cristão ou dos deuses gregos e romanos. Que, ao contrário do outro, o da Bíblia, se sentiria sempre vítima de um dano irreparável, de um grosseiro e imperdoável erro da «justiça» divina. Que, ao contrário do outro, o da Bíblia, perdera a fé da infância que o poderia consolar de todas as penas sofridas até àquele momento. E que jamais poderia aceitar Deus e o mundo tal como eles se lhe apresentavam. Um Deus morto ou ausente, um mundo absurdo.

 

«Filósofos e teólogos passaram séculos e séculos a tentar justificar o mal, visando harmonizá-lo com a existência ou a presença de Deus. Coisa ridícula, sem sentido. Basta ver como Leibniz meteu os pés pelas mãos para aceitar este caricato ‘melhor dos mundos possíveis’, basta ver como Kant, com um piparote, reduziu o Criador a um académico e definhado ‘postulado da razão prática’, transformando o tomismo numa monumental e perversa ilusão de óptica. Não, o caminho não era certamente por aí, apesar de todos os eminentes funcionários do silogismo que, ao serviço do Vaticano, ignoraram com arrogância Santo Agostinho para instalar um São Tomás de pedra e cal no único lugar à direita do Papa. Os Maritain, os Gilson, os Raeymaeker, nenhum deles poderá sequer obscurecer uma só página de Kierkegaard, de Unamuno, de Gabriel Marcel. Ou de Santa Teresa de Ávila e de São João da Cruz. Pelo lado da mística ainda talvez conseguíssemos ultrapassar este horrível vazio que nos cerca e tudo invade, tudo, até a nossa miserável vida psíquica. Mas não é místico quem quer.»

 

Sentiu um intenso desejo de permanecer muito tempo ali, sozinho, naquele quarto de hotel à beira da Gran Via, talvez acompanhado por sucessivas garrafas de whisky que iria esvaziando sem pressas enquanto o seu pensamento se moveria no interior do círculo de um passado que, agora, lhe parecia cada vez mais difícil de superar ou de integrar nos seus últimos anos, meses ou dias de vida. Mas, quase ao mesmo tempo, como que atingido por um relâmpago, apercebeu-se de que a sua morte poderia significar para ele, não uma intolerável tragédia, como até ali tinha temido, mas a libertação, a suprema libertação – pela via do não-pensamento, do vazio, do Nada –, de uma dolorosa e quase insuportável memória pessoal. Agora parecia-lhe que a memória, a sua tão acarinhada memória, tantas vezes resvalando sem escolhos para uma complacente autopiedade, talvez não fosse mais do que um imenso fardo que carregara durante anos e anos, impedindo-o, sobretudo desde o acidente que pusera fim à presença física de Paula, de viver a vida que tinha o direito de viver. O coração acelerou-se-lhe, acometeu-o uma súbita náusea, sentiu que ia vomitar. Pois então fora isso a sua existência durante os últimos trinta anos, um erro crasso de avaliação, um paralisante desespero, uma inconfessada acumulação de estéreis vícios de perspectiva?

 

«Aos trinta e quatro anos, tudo estava ainda nas minhas mãos. Podia ter saído de mim, podia ter cuidado da minha filha, podia ter encontrado uma mulher que amasse e que me amasse, em vez de fugir por sistema a que isso se tornasse concebível. Transformei-me num intratável bicho-do-mato, escondi-me de todos os que conheciam a Paula, recusei encontrar mais pessoas do que aquelas que me eram impostas pela minha vida profissional. Vivi como quem não quer viver, apenas à espera da morte, ao mesmo tempo que me revoltava cada vez mais contra um ser que não sabia se existia e que na infância me ensinaram a chamar Deus. Resta-me a meia dúzia de livros que entretanto escrevi, mas nesses nunca tive a coragem de abordar de frente nem sequer uma pequena parte daquilo que me perturbava. Terei deixado, aqui e ali, sobretudo nas entrelinhas, um ou outro sinal de amor, um ou outro sinal de generosidade, um ou outro sinal de ternura. Mas jamais tentei escrever o único livro que era imperativo escrever, aquele que falasse sem tergiversações de mim e dos outros, do mundo e de Deus, da morte e da imortalidade. Não, esse livro não o escrevi e agora sei que nunca o escreverei, para além de tudo o mais porque me falta já ânimo para deixar que ele amadureça dentro do meu coração e passá-lo ao papel. Habituei-me a olhar em redor e inventar situações e intrigas e diálogos mais ou menos bem urdidos, capazes de ultrapassar os dois mil exemplares de venda e de me assegurar sofríveis direitos de autor. Até me traduziram um livro para castelhano no início do pós-franquismo, outro para russo em plena União Soviética. Decerto havia neles algum conteúdo político capaz de agradar a certa gente de esquerda, mas o essencial do que estava ao meu alcance escrever, isso nunca me atrevi a escrever. De resto, mesmo que eu tivesse sido um Robert Musil ou um Hermann Broch, em Portugal nunca seria apreciado por mais do que umas escassas centenas de pessoas, ainda que oferecesse um exemplar a cada um dos meus amigos e conhecidos. Precisava de dinheiro todos os meses: fui capaz de escapar àquilo que passaram a chamar ‘literatura light’, mas nunca tentei, sequer, correr o risco de ser considerado um escritor que não facilita aos seus leitores o trabalho de o ler, talvez porque aquilo que de mais íntimo e arriscado tinha a dizer e nunca disse não poderia ser sussurrado de passagem, entre duas beijocas, pelo musculado ‘atleta sexual’ de um qualquer romance concebido com a finalidade de me dar a mim algum dinheiro para comer e lucros não negligenciáveis ao editor, à distribuidora e aos livreiros.»

 

Olhou para o relógio: passava das oito da noite. Estivera o dia inteiro no quarto, bebendo whisky, pensando, dormindo, sonhando, tomando notas para a obra que, decerto, nunca seria publicada. A dor no tórax persistia, ainda que tivesse abrandado um pouco depois de ter deixado dissolver debaixo da língua dois dos comprimidos de nitroglicerina que transportava sempre consigo no bolso interior do casaco em tempos utilizado para guardar o maço de cigarros. Leu na posologia que acompanhava o pequeno frasco: «Há largos anos que a nitroglicerina é considerada o fármaco de eleição para debelar acessos de angina pectoris». E, mais abaixo, uma insólita recomendação para não associar o medicamento com Viagra. Nessa altura, no silêncio sepulcral do quarto, deixou escapar uma estridente gargalhada:

 

«Viagra, é boa, porquê o Viagra? A uma hora destas, neste estado, quem se lembraria de tomar Viagra? Ai, se a minha vida fosse um romance de cordel, aposto que, dentro de momentos, o ‘herói’ engoliria sem pestanejar uma providencial dose dupla de Viagra, sairia para a Gran Via e, à falta de melhor sorte, acabaria por morrer extasiado, de madrugada, com o pénis bem erecto mergulhado numa qualquer prostituta espanhola encontrada nas imediações da Plaza Mayor.»

 

Depois, com um sorriso amargo, ainda murmurou:

 

«Sexo sem amor, eis um bom tema de meditação. Quase tão bom para ocupar as almas como o amor sem sexo, o amor ao próximo, o amor a Deus ou a Cristo. Mas disso já ninguém fala senão uma envergonhada e quase inaudível espécie em vias de extinção, a tal a que pertenceram Kierkegaard, Unamuno, Gabriel Marcel... São agora gente de outro mundo, impossível de integrar nos centros comerciais e nos estádios que tão exemplarmente substituíram, na cabeça dos indivíduos e das famílias ibéricas, o Antigo e o Novo Testamento, o românico e o gótico das catedrais da Idade Média.»  

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

26 de Maio

 

 

O jovem médico inclinou-se, solícito, para a cama de Eugénio:

- Onde estou?

- Em Madrid, no Hospital La Paz.

- Outra vez? Porquê?

- Teve um problema cardíaco no seu hotel, perdeu a consciência e trouxeram-no para aqui. Sente-se cansado? Acha que pode responder sem grandes dificuldades às minhas perguntas?

- Posso. Sinto-me bem, mesmo muito bem. Como há muito tempo não me sentia. Deram-me o quê? Cocaína, morfina, Demerol?

- Que doenças tem tido?

- A única que lhe pode interessar talvez seja a angina pectoris.

- Foi alguma vez operado?

- Vivo com dois bypasses desde 1991. Um cardiologista disse-me, nessa altura, que eu tinha sofrido um enfarte do miocárdio. Mas houve outros médicos da mesma especialidade que me confessaram nunca terem conseguido chegar a uma conclusão unânime acerca do que realmente se passara comigo.

- E não surgiram mais problemas, desde então?

- Durante muitos anos, não. Depois, uma meia dúzia de vezes, comecei a sentir dores ligeiras no tórax e nos ombros. Nessas alturas tomei um ou dois comprimidos de nitroglicerina. Mas nunca com Viagra…

- Nunca com Viagra?

- Estou a brincar, doutor. A verdade é que li algures que não se deve misturar nitroglicerina com Viagra.

- E não misturou?

- Claro que não. Nunca tomei Viagra.

- Porquê?

- Não preciso, a minha vida sexual extinguiu-se praticamente há trinta anos.

- Trinta anos?

- Desde que a minha mulher morreu, aqui mesmo, no Hospital La Paz.

- Como é possível a sua mulher ter morrido aqui, se o senhor é estrangeiro?

- Pois morreu aqui mesmo, depois de um acidente de viação a poucos quilómetros de Guadalajara e de muitos dias, mesmo muitos dias, em coma profundo.

- Morreu em que data?

- Em Abril de 1973. Mais ou menos no mesmo dia em que Picasso deixou de existir.

- Tem a certeza do que está a dizer? Não está confuso?

- Não estou confuso nem maluco, só tenho um problema cardiovascular crónico. Claro que estou certo do que estou a dizer. De que mais poderia eu ter a certeza? A morte dela foi, de algum modo, a Guernica da minha vida interior. Lembra-se de Guernica? O nome ainda lhe diz alguma coisa?

- Eu nem sequer tinha nascido quando Guernica foi bombardeada.

- Eu também não, nasci em 1939. Mas parece-me que passei grande parte da minha vida a lutar, de uma forma ou de outra, contra todos os responsáveis, reais ou potenciais, passados ou presentes, por Guernica. Percebe o que quero dizer? 

- Para ser franco, não atinjo muito bem o que quer dizer.

- Todos nos tornámos de alguma forma responsáveis pela tragédia de Guernica, não apenas os franquistas e os nazis. Todos, todos mesmo, até o senhor e eu.

- O senhor e eu?

- Todos. É verdade que nós ainda cá não estávamos em 1937, quando os nazis desfizeram Guernica e reduziram toda aquela desgraçada gente a carne carbonizada ou a ainda menos do que isso. Mas tornamo-nos responsáveis por tudo o que aconteceu se ficarmos calados ou falarmos da chacina como se dissertássemos acerca de um tema obrigatório proposto aos alunos de História Contemporânea de um qualquer curso para formar meticulosos ratos de biblioteca. Guernica nunca poderá ser objecto do tipo de discurso que fazemos quando descrevemos a vida das abelhas. Compreende, doutor?

- Bom, voltemos à sua história clínica.

- Está tudo dito. Angina pectoris, talvez enfarte, bypasses. Depois, nitroglicerina nos momentos de crise.

- É possível que tenhamos de o operar, se verificarmos que se está a passar neste momento algo preocupante com as suas artérias.

- Não quero ser operado. Só quero mesmo é regressar a Portugal.

- Por agora isso está fora de questão. Será necessário mantê-lo aqui durante algum tempo antes de lhe darmos alta.

- Quero ir morrer a Lisboa. De resto, a minha passagem de avião está marcada para amanhã mesmo.

- Tem família?

- Família? Não, o meu pai e a minha mãe já morreram, sou viúvo, tenho uma filha mas estamos de relações cortadas e não nos vemos há muito tempo. Resta-me morrer.

- Mas o senhor quer morrer?

- Nasce-se para morrer, com o destino marcado, não acha, doutor? Todos nós, logo que fomos gerados e vimos pela primeira vez a luz do dia, estávamos condenados à morte pelo nosso omnipresente Deus Pai Todo-Poderoso. Conhece bem a Bíblia, doutor? Já leu o livro de Job?

- Não, não, confesso que não li. Em boa verdade, conheço mal a Bíblia, nunca fui além de alguns textos dos Evangelhos que era obrigatório conhecer no colégio que frequentei antes de entrar para a universidade.

- Talvez tenha feito bem. O nosso irmão Jesus, até porque acabou crucificado, como nós todos vamos acabar, é bem mais próximo e doce do que o impiedoso e colérico Iahweh do Antigo Testamento. E, depois, há todo o problema da imortalidade da alma e da ressurreição da carne. Quem se fica pela Bíblia judaica ou pela cirurgia cardiotoráxica dificilmente chegará tão longe no caminho da esperança.

- É crente?

- Boa pergunta, doutor. Boa pergunta a que já deixei de saber responder. Há trinta anos dir-lhe-ia convictamente que não, hoje a resposta seria mais complexa, mesmo muito mais complexa. Se calhar, nem sequer eu teria tempo e paciência para a escutar. E o senhor, acredita em Deus?

- Sou agnóstico.

- Tem a certeza?

- Absoluta.

- Perdoe-me, mas os racionalistas que têm certezas absolutas acerca de Deus causam-me arrepios de frio. Como é possível a alguém que se circunscreve a um pensamento racional ter a certeza absoluta de que Deus existe, como é possível ter a certeza absoluta de que Deus não existe, como é possível ter a certeza absoluta de que se é incapaz de chegar a uma conclusão acerca da existência de Deus? Como pode a razão subsistir sem sérios riscos de ancilose assumindo certezas que nunca põe em dúvida? Como pode ela permanecer imóvel, julgando-se senhora de uma verdade fixa, rígida, irrefutável, renunciando a indagar mais e mais, ignorando que todas as perguntas exigem uma resposta, que todas as respostas exigem uma nova pergunta?

- Acalme-se, está muito excitado, temos de controlar a sua tensão arterial. Agora vai repousar e procurar dormir. Amanhã trataremos de lhe fazer uma angiografia coronária, para avaliarmos o estado em que estão as suas artérias.

Uma enfermeira surgiu quase de imediato, deu-lhe uma injecção e retirou-se sem palavras, com rigidez militar. Eugénio ficou-se a olhar, cada vez mais sonolento, o tecto do quarto onde se encontrava isolado, sem nunca ter visto outros doentes. Tomou consciência de que a conversa com o médico o distraíra por alguns minutos, mas estava longe de ter apaziguado a sua angústia.

 

«Só me resta a memória. Se morrer agora ou se morrer nos próximos dias, sobretudo aqui, neste hospital, morrerei no lugar exacto onde, há trinta anos, a Paula morreu e eu devia ter morrido. Hoje mal posso acreditar que fui aquele homem que nunca teria aprovado Kant se já conhecesse a frase em que ele afirma que ‘é absolutamente necessário chegar ao convencimento da existência de Deus, mas não é tão necessário conseguir demonstrá-la.’ Defender a fé em Deus contra os ‘latidos da razão’, ‘eliminar o saber para deixar lugar à fé’, talvez sejam mesmo as únicas lições válidas que aprendi durante as minhas desastradas incursões de desassossegado autodidacta no terreno da metafísica. Se a liberdade humana, a imortalidade da alma e a existência de Deus não passam de assépticos postulados ou exigências da razão prática, isso, em boa verdade, em nada afecta a minha necessidade de crer, tal como em nada contribuiu para alterar o meu irreversível alheamento de qualquer forma de religião institucional. A tragédia talvez resida no facto de saber que jamais recuperarei a fé da minha infância, aquela que um dia me fez rezar, tinha eu oito ou nove anos, junto da cama onde minha mãe dormia, para que ela não morresse com uma gripe que quase a levou, ou quando tinha dores de dentes que considerava insuportáveis. Essa é uma fé tão cega quanto irrecuperável para mim, solitário cão velho e doente a ganir à beira do espaço reservado ao seu próprio túmulo. Deus Todo-Poderoso, Deus absolutamente bom e tanto sofrimento humano ao mesmo tempo, não, não, isso não é concebível, é um insulto à inteligência, é revoltante e é absurdo. Voltaire – não obstante Kant o ter considerado ‘superficial’ – fez de uma vez por todas entrar Portugal na história da teodiceia, quando inseriu o terramoto de 1755 no debate dos ‘sábios’ e se fundamentou nesse incómodo ‘pormenor’ para tornar indiscutível que os homens, as mulheres e as crianças da época, pelo menos em Lisboa, não se encontravam no melhor dos mundos possíveis, como pretenderia Leibniz. É claro que, um dia, talvez as pessoas possam reduzir de forma durável, pela acção política, o mal que o homem inflige ao homem, E é também evidente que os cientistas vão continuar a trabalhar para erradicar certas doenças da face da Terra e que a dor física ou moral que esses flagelos têm provocado poderá ser cada vez mais reduzida. Até talvez venha a ser possível prever os terramotos e neutralizar os seus terríveis efeitos sobre a espécie humana. Mas a velhice e a morte, quem acabará com elas? Quem nos poderá consolar quando perdemos os que amamos, quem nos poderá consolar quando adquirimos a certeza de que cada novo ser humano que nasce se encontra desde logo condenado por Deus – mas que misericordioso Deus! – a morrer, quem nos poderá consolar quando encaramos a ideia da nossa própria morte? Morremos sempre que alguém querido nos morre e, à medida que o tempo passa, vamos vivendo, cada vez com mais intensidade, a morte que nos há-de calhar. A Bíblia diz que Job, depois de ter sido vítima dos grandes sofrimentos físicos e morais que Deus consentiu que lhe fossem impostos, conseguiu amá-Lo por nada, por razão nenhuma, sem qualquer justificação racional. Será essa a lição? Procurar para além da razão ou à margem da razão essa desrazão para crer a que chamamos fé? Qual foi o mistério que conduziu Wittgenstein – depois de Hume, mas usando outras palavras –, a pensar que ‘Deus não se manifesta no mundo’? Não estava ele muito mais perto de Kierkegaard do que dos empertigados ‘sábios’ do Círculo de Viena? Qual foi o mistério que levou Wittgenstein a escrever que ‘a oração é a reflexão sobre o sentido da vida’? Qual foi o mistério que incitou Wittgenstein a sugerir que ‘crer significa descobrir que a vida tem um sentido’? Ou não há aqui mistério nenhum – e ele foi apenas mais um, entre milhões e milhões de obscuros e atormentados e impotentes adultos como eu, em busca do Deus perdido e nunca reencontrado da sua infância?»

À tarde, o jovem médico voltou a falar com Eugénio. Aproximou-se da cama, leu com grande atenção o relatório das informações clínicas que lhe diziam respeito e, em voz pausada e firme, insistiu:

- Vamos mesmo fazer-lhe uma angiografia. Precisamos de ver as suas artérias.

- Já fiz uma há muito tempo, semanas antes de me implantarem os bypasses. Agora não vou repetir a experiência. Só quero regressar a Portugal.

- Não o podemos deixar sair sem um exame às coronárias.

- Claro que podem. Assino um termo de responsabilidade, tudo o que for necessário, e saio.

- Isso pode equivaler a um autêntico suicídio.

- Talvez, doutor, mas eu prefiro considerar que é apenas uma forma de desistir, perto do fim, da minha maratona pessoal, porque descobri há dias que não tenho qualquer vocação para corredor de fundo e acho que não vale a pena tentar correr mais tempo. Tive um amigo alcoólico a quem o médico disse que, se continuasse a beber, teria meia dúzia de meses de vida. Sabe o que ele lhe respondeu?

- Não faço a mínima ideia.

- Respondeu-lhe que cada um se suicida como entende e que ninguém tem nada com isso. É o que penso.

- Sou médico, não posso aceitar essa forma de encarar o alcoolismo ou qualquer outra doença que é susceptível de ser tratada e curada.

- É médico e é muito jovem. Não sabe o que é carregar durante dezenas de anos a mesma cruz.

- Que cruz?

- A cruz da memória, a cruz da ausência de quem nos morreu. Freud escreveu sobre isso, num ensaio a que chamou Luto e Melancolia. Um dia, quando já nem se lembrar de que eu existi e passei por aqui, talvez o senhor o leia. E compreenderá que, por vezes, a vida nos envolve em teias que não temos a capacidade de quebrar senão abandonando-a de uma vez para sempre, tão serenos e discretos quanto possível. Se perdemos a capacidade de sonhar, de amar, de viver no presente, já não estamos vivos senão de uma forma virtual. Há que partir, de preferência com a maior discrição. Sabe o que dizia Rilke? Qualquer coisa como isto: «Quem fala de vitórias? Sair airosamente é tudo.» 

- Há que lutar.

- Já lutei mais do que devia ter lutado e, ao contrário do que possa pensar, julgo que a vida não me ofereceu apenas o pior do que tinha para dar a um ser tão frágil como eu. Tive dias muito bons e muito belos, momentos em que amei ou julguei amar, momentos em que fui amado ou julguei ser amado. Conheci a amizade, li dezenas de livros que me fizeram antever mundos bem mais desejáveis do que este ou que me ajudaram a encarar o que me foi proporcionado de uma forma menos pessimista. Viajei um pouco por toda a Europa e até por África, pela Ásia e pela América Latina. Mas está na altura de ter a lucidez de compreender que chegou a minha hora de partir. Na ocasião apropriada, esforçar-me-ei para ser fiel à lição que Nietzsche nos deixou a todos nós, pelo menos àqueles para quem a existência é mais do que uma forma de ganhar dinheiro e poder.

- Que lição?

- Ele escreveu algures: «É necessário deixar a vida como Ulisses deixou Nausicaa, mais com reconhecimento do que com amor.» No pouco tempo que me resta, tentarei recordar aquilo que recebi de bom durante os anos que vivi.

- Não desista, peço-lhe que não desista. Nunca se sabe o que o futuro reserva a cada um de nós.

- Talvez isso faça algum sentido para si, mas para mim não faz nenhum. Pelo menos agora, que sou um velho. Um velho solitário amarrado ao passado e à dor, farto da rotina quotidiana. Um velho escritor que queria escrever o seu último livro mas que, de repente, percebeu que isso deixou de ter qualquer espécie de importância e que já não tem vontade de o escrever, porque tal tarefa implicaria que ele revolvesse sem descanso, durante meses ou anos, as feridas nunca cicatrizadas do seu luto e da sua melancolia. Um velho à beira do fim. 

- Não sei como ajudá-lo senão tratando das suas artérias e, depois, encaminhando-o para ser assistido por alguém especializado em casos como o seu. Há muitos colegas meus, mesmo aqui dentro, que o podem ajudar.

- Não, doutor, psiquiatras, psicólogos, psicanalistas, esses devotados sacerdotes laicos do conformismo e da resignação, isso não, acho que não mereço tão exígua dose de respeito humano. Eles não poderiam senão tentar extinguir, com as suas sofisticadas aspirinas, a minha indignação, a minha legítima e indomável indignação, perante muito do que me aconteceu a mim e aos nossos semelhantes em geral. Sabe, a vida de uma pessoa não é um desporto em que ela seja obrigada a aceitar com um sorriso nos lábios a derrota de tudo o que poderia constituir uma razão para ela existir, como se participasse num interminável jogo com regras pré-estabelecidas ou num campeonato a que outro campeonato se seguiria e em que o vencido de ontem poderia ambicionar ser o vencedor de amanhã. Só tive ou só tenho uma vida e ela está a chegar ao fim, percebe? Já não me existe mulher que ame e a quem amar, já não me existe verdadeiro filho ou verdadeiro amigo, já não me existe qualquer esperança de ver realizados os ideais políticos por que, em tempos, me bati. Agora quero dizer-vos adeus a todos, espanhóis, portugueses, cidadãos de todo o mundo e cidadãos do mundo, porque vivi o suficiente para saber que não vale a pena agarrar-me à vida como uma cria esfomeada às tetas da mãe que o amamenta. Será que o doutor entende o que lhe estou a tentar dizer, será que alguém me poderá entender, não apenas com a inteligência, mas com o coração, com as tripas?

O jovem médico olhou-o tristemente e afastou-se sem palavras, com o semblante carregado. Eugénio ficou-se a observá-lo, pensativo, esperou que ele saísse, aguardou alguns minutos e levantou-se sem esforço da cama. Dirigiu-se a um pequeno armário colocado junto à janela do quarto, retirou dele a roupa e os sapatos que lhe pertenciam, vestiu-se e saiu para o corredor. Ninguém à vista. Procurou o elevador, premiu um botão, desceu até ao rés-do-chão e encontrou com facilidade a porta de saída. Minutos depois estava em pleno Paseo de la Castellana, recordando uma frase de Job ao dirigir-se pela última vez a Iahweh: «Os meus ouvidos tinham ouvido falar de ti, mas agora vêem-te os meus próprios olhos.» Ouvidos da razão, olhos da fé? Mas a dor de estar à espera da morte, como a aceitar, como a suportar, como viver com ela? 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 27 de Maio

 

 

Despedia-se para sempre da cidade aonde viera, feitas as contas, reafirmar que nunca mais teria a possibilidade de viver no presente. Não sabia se voltara com a intenção de pôr um termo definitivo ao seu luto ou se apenas tentara uma vez mais enterrar o ser evocado por aquele espaço, por aquelas ruas desertas de esperança, por aquele antiquíssimo, labiríntico e ameaçador inferno pessoal. E compreendia agora que as cidades, todas as cidades mesmo, até a mítica Alexandria de Constantin Cavafy, de E. M. Forster e de Lawrence Durrell, apenas pulsam dentro de nós porque alimentamos com o que nelas vivemos o seu encanto ou o seu horror, esculpindo-as caso a caso com a mais luminosa ou a mais nocturna visão das pessoas e das coisas. Que o amor, o ódio ou a indiferença que nos suscitam provêm do mais profundo que somos, fomos, intuímos. Que em vão procuraria reconciliar-se com Madrid, porque jamais poderia aceitar tudo o que a cidade passara a significar e sempre continuaria a representar para si. O fim de um tempo em que a morte era uma coisa vaga, abstracta, estranha, adiável, longínqua, sem carne humana apodrecida, nauseabunda, devorada até aos ossos pela terra. O fim de um tempo centrado em almofadados sobressaltos colhidos em poemas, em vagas reflexões, em discursos académicos. O fim de um tempo de insensata, egotista e injustificável suficiência do seu mundo interior.

Voltava para Lisboa, afinal o espaço familiar onde habitara durante mais de seis dezenas de anos, pegava na mala carregada de livros comprados em Madrid – sabe-se lá em que medida úteis ou inúteis, esses gritos abafados e tantas vezes pouco entendidos ou sentidos de poetas horrorizados, de filósofos conturbados, de teólogos heterodoxos –, reocupava sem pressas nem alegria o pequeno apartamento de viúvo deserto de pessoas, de recordações, de afectos. Arrumava os objectos pessoais e os volumes por ler e talvez ainda para ler, sentia-se invadido por uma intensa e dolorosa apatia, estendia-se vestido, hirto, na cama de corpo e meio que comprara quando decidira que não poderia continuar a viver na casa onde habitara com Paula e entre os móveis que lhe recordavam um passado a dois. E, de súbito, pela primeira vez desde há trinta anos, chorava. Chorava lentamente, sem qualquer ruído, os olhos fechados, deixando escorrer as lágrimas pelas faces contraídas por um incontrolável desespero.

Chorava e pressentia o futuro. Durante algumas semanas, meses ou anos leria finalmente livros sem ser obrigado a traduzi-los, sublinharia uma ou outra frase, tomaria notas para um texto que renunciaria a publicar, beberia álcool e mais álcool, até ao fim. Compreendia que a sua vida talvez devesse terminar naquele momento preciso em que, regressado de Madrid, se apercebia de que já nada de significativo tinha a fazer, fosse onde fosse, fosse com quem fosse, fosse para que fosse. Se estivesse ao seu alcance recuperar a fé da infância, ou mesmo aquela, ingénua, artificial e incutida por um qualquer clero, ensino ou ambiente cultural que o velho Schopenhauer, o jovem Nietzsche ou o Kierkegaard da maturidade erigiram como ponto de referência, aliás com resultados tão divergentes, talvez tudo mudasse para si. E vinha-lhe à ideia uma frase que, já não sabia bem quando, tinha marcado desde há muito a sua perspectiva de encarar a ruptura entre uma ainda possível crença ferozmente solipsista e a actividade gregária dos institucionais promotores de missas, preces e procissões: «A Igreja é exactamente aquilo contra que pregou Jesus e contra que ensinou a lutar os seus discípulos

Perdida toda a esperança de reencontrar Paula no tempo, no espaço ou mesmo na memória, debatia-se com o seu deserto interior. Já não podia crer e, no entanto, não sabia abdicar de desejar crer. À beira do abismo, quase paralisado, sentia-se como uma criança aterrorizada que já nem sequer consegue soltar um grito de socorro. Olhava o vácuo e nada via, exausto, sem mais forças para lutar num mundo onde não descortinava qualquer razão válida para prolongar a sua presença.

Queria fugir do labirinto e não pressentia, sequer, ainda que longínqua, a sombra de Ariadne, único horizonte que o poderia fazer escapar a uma agonia sem regresso possível. O corpo de Paula fora há trinta anos sepultado em Madrid, já não era nada senão um inconcebível detrito do que fora, uma ténue recordação para os que a tinham conhecido ou, mesmo, como ele, Eugénio, amado.

Recordava o último Tolstoi, o da Confissão e o das páginas do Diário escritas nos derradeiros vinte anos de vida. O místico sedento de Deus que gritara, no auge da sua tão mundana glória literária, que «a arte é a mentira» e que «a verdade é a morte» – mas que, não obstante, se mostrara incapaz de resistir com êxito à pouco mais do que fútil tentação de continuar a escrever a sua obra de ficcionista. Apercebia-se agora de quanto tinha sido ridícula, e inútil, e pomposa, a ideia de conceber um livro-testamento que o redimisse de todas as concessões, de todas as cobardias, de todas as fugas que tinham caracterizado a sua existência como autor de romances onde jamais ousara expor-se com frontalidade, preto no branco, ao olhar crítico e porventura impiedoso dos seus contemporâneos. Dizia-se:

 

«Foste um artista de circo, um ridículo artista de circo quase sempre mais preocupado com agradar a quem te lesse do que com transmitir a tua forma de encarar e de pensar a condição humana. Não falhaste apenas como autor, isso talvez não fosse importante senão para a tua vaidade, falhaste também, e sobretudo, como pessoa digna de ser respeitada e amada. Pavoneaste-te em busca de público e de aplausos e não soubeste ser fiel ao que de mais autêntico existia em ti, o sentimento trágico da vida. Não mereceste os que te respeitaram e amaram.»

 

Dias antes, quando partira para Madrid, quase conseguira ocultar a seus próprios olhos o pânico que o assaltara por prever que a sua vida estava a chegar ao fim sem que tivesse realizado nada que pudesse justificá-la, uma relação de amor ou de amizade, uma dádiva de si, um livro honesto, verdadeiro, autêntico. Agora, porém, deixava de lhe ser possível fugir durante mais tempo aos fantasmas que o assaltavam, à nulidade dos seus gestos, a inconsistência das suas crenças e descrenças, à incomensurável solidão a que se sentia condenado, segundo temia, por sua culpa, por sua única e exclusiva culpa. Desistia de atribuir responsabilidades pelo descalabro em que se convertera o seu quotidiano fosse a quem fosse – às mulheres que amara ou julgara amar, à filha por quem fora abandonado ou se sentira abandonado, aos amigos de quem se desligara por iniciativa própria ou que dele se tinham desligado.

Veio-lhe à ideia continuar assim, deitado naquela cama de corpo e meio, sem nunca mais sair de casa, dias e dias, no maior silêncio, até que a morte lhe chegasse. Na obscuridade do quarto, já sem lágrimas, abriu uma pequena gaveta em que guardava os medicamentos que lhe haviam sido receitados pelo cardiologista e retirou maquinalmente dois comprimidos de Xanax. Engoliu-os de uma vez, mesmo sem água, e voltou a deitar-se. De súbito, como que tomado por uma vertigem, apercebeu-se de que a solução estava ali, ao alcance da mão, sem que tivesse de realizar qualquer gesto teatral. Aquele vasodilatador e anti-hipertensor que tomava há anos todos os dias, aqueles medicamentos que combatiam o excesso de colesterol e de ácido úrico, que razão havia para continuar a ingeri-los? E por que motivo se privaria de tabaco e de gin tónico se não queria viver mais e tinha saudades de tabaco e de gin tónico?

Levantou-se da cama.

 

«Não, acabou-se a comédia, vou deixar de fazer batota comigo próprio. Viverei como me der na gana o tempo que me resta, não tenho responsabilidades perante ninguém, não tenho contas a prestar seja a quem for. Será mais suave assim, não haverá tiro na cabeça, nem defenestração, nem violência de qualquer espécie. Há que assumir o desejo de morrer mais depressa, no fundo escolher uma espécie de aniquilamento ‘doce e fácil’ da memória do que fui e da consciência do que sou.»

 

Aquela já velha frase de O Mito de Sísifo sobre o suicídio, que lera e relera na juventude e que nunca mais esquecera, adquiria agora, a seus olhos, todo o sentido, não porque a considerasse aplicável à generalidade dos humanos, mas porque, em boa verdade, a sentia apontada a si como um dedo acusatório, mas libertador, intimando-o a responder se sim ou se não, ele, Eugénio Ribeiro, aos sessenta e quatro anos, achava que a sua vida merecia ser vivida, escolhia ou não extinguir-se, regressar ao Nada, deixar de pensar, de sentir e de sofrer.

 

«Sou uma espécie de doente terminal do espírito, as drogas que me proporciono para combater o luto apenas arrastam e ampliam cada vez mais o sem sentido da minha vida, a espera por um dia seguinte, tão absurdo quanto o anterior, uma agonia que, longe de ser suportada com heroísmo, é apenas consentida por uma vergonhosa cobardia. Não quero continuar a ser um parasita do que fui no passado, quero voltar para sempre à ausência de espaço e de tempo, à não-existência, ao não-ser, ao vazio absoluto, ao Nada. Quero sair de uma vez por todas deste inferno onde dei por mim e sufoco de solidão.»

 

Vinham-lhe à memória palavras de Thomas Bernhard:

 

 «Já não tenho medo. Não tenho medo/do que há-de vir. Extingui a minha fome, / bebi o meu tormento até à última gota, /a minha morte torna-me feliz. (…) Espero/ que o Senhor me espere.» (…) «Porque tenho eu de ver o Inferno? Não há outro caminho para Deus?»

 

Dor e tédio, tédio e dor, eis o que lhe causava o mundo apodrecido onde sentia ter mergulhado e ao qual até então desesperara de escapar por vontade própria. Agora, esse ansiado regresso ao vazio, que poderia, com um único gesto, tornar iminente, sentia-o simplesmente como o fim de um insuportável pesadelo, como a consumação do mais íntimo dos seus desejos, como a única verdadeira, porque irreversível, libertação do espírito. Anotou num bloco de apontamentos:

 

«Há em mim e penso que em muitos de nós, gente de poucas certezas e múltiplas dúvidas, um grão de areia de Pascal e outro de Voltaire. Não sei qual dos grãos de areia é mais pesado, sei que coexistem no quotidiano da nossa agenda de assuntos sem solução viável. É bem conhecido que Voltaire nunca se cansou de ler e comentar Pascal. Apesar de morto e bem morto quando ele nasceu, o outro nunca deixava de o questionar, de o inquietar, de o abalar. Sentia-se, a um tempo, fascinado pela eloquência do grande polemista que assinara, contra os jesuítas, ‘As Provinciais’, e indignado com a demissão cívica, nos ‘Pensamentos’, do místico em busca de absoluto que vivia obcecado por encontrar o ‘Deus de Abraão, Deus de Isaac, Deus de Jacob, não dos filósofos e dos sábios’, ao mesmo tempo que se dava ao luxo de ignorar os milhões de pessoas que morriam de fome em França nos meados do século XVII – como Bossuet teve a coragem de denunciar no célebre sermão lançado como uma bofetada à cara da Corte de Luís XIV. No entanto, é escusado confessar quem me diz mais neste momento: a verdade é que passei a ter uma grande dificuldade em prestar atenção a assuntos que não digam respeito à minha forma de vislumbrar a fé. Até ‘As Provinciais’ me parecem hoje excessivamente voltadas para fora, uma inútil perda de energia, um exercício de estilo um tanto histriónico e mundano. Só os ‘Pensamentos’, o livro sobre a condição humana publicado apenas depois da sua morte, como se fosse secreta vontade do seu autor agonizar dobrado sobre si próprio e em si próprio procurar Deus, longe de todos os olhares indiscretos provenientes da praça pública, me tocam fundo. Aí a angústia tem tudo a ver com a iminência da morte, a vanidade de qualquer espécie de gloríola, a pergunta pelo Pai e pela imortalidade da alma. Queiram ou não queiram aqueles que persistem em afirmar que Pascal apenas pretendia convencer da excelência do cristianismo os grandes racionalistas que foram os ‘libertinos’… Existe uma porta estreita que conduz do eurocentrismo e do egocentrismo ao ecumenismo e à compreensão dos outros enquanto outros. Eu diria que Pascal não tentou nunca transpô-la. Só foi capaz de pensar no interior do cristianismo e do seu próprio “eu”, era-lhe impossível colocar-se na pele de um judeu ou de qualquer outro não-cristão, considerando-os a todos incapazes de obter a salvação, por não acreditarem em Jesus. Após uma leitura muito pessoal das Escrituras, de Epicteto e de Montaigne, será conduzido a concluir que ciência e vaidade andam frequentemente de mãos dadas, que não gostava de indivíduos de carne e osso mas somente das suas qualidades, que o verdadeiro amor, esse, o dirige todo a um reino que se encontra bem dentro de si – Deus. Confrontado com o optimismo do estóico Epicteto e com o cepticismo do cristão Montaigne, descobriu já, ao contrário de Descartes e como muito mais tarde Wittgenstein também virá, por si, a descobrir, que é o amor, a fé – e não a ciência – que pode conduzir o espírito humano à certeza. Dirá mesmo que a geometria, à qual consagrara tanto do seu tempo e do seu génio, é ‘inútil’. Afirmará: 'A Fé é diferente da prova: uma é humana, a outra é um dom de Deus.' Quer esquecer o mundo, quer mesmo esquecer tudo menos Deus – e, segundo pensava, quando mais depressa morresse mais depressa se aproximaria dele. ‘O coração tem as suas razões, que a razão desconhece: sabe-se isso em mil coisas’? Sim decerto que sim. Mas, por vezes, põe a nu as piores razões, que a razão muito bem conhece.»

 

Deteve-se e respirou fundo. Sentira-se de súbito tomado por uma grande agitação, uma dolorosa imagem atravessara-lhe a memória como um relâmpago. Anos antes, vira agonizar um velho moribundo, de madrugada, num hospital onde fora internado durante breves dias, na sequência de mais uma crise cardíaca. Sentado na cama, as duas mãos apoiadas no colchão e firmadas atrás do tronco, o doente contorcia-se para respirar, depois de ter arrancado a algália que o afligia e com a qual permanecera durante largas semanas. Os olhos saltavam-lhe das órbitas, o rosto era um dilacerante esgar de pavor e desespero. Que sentira? Compaixão, um ímpeto de acudir ao seu companheiro de destino, revolta por lhe estar a ser infligido um tão grande sofrimento? Não, sentira medo, medo, apenas um terrível medo da violenta morte do outro e de que o corpo dele, num estertor de inveja ou de vingança, viesse atingi-lo como um míssil lançado sabe-se lá por que estranha vontade de destruir tudo à sua volta no momento em que se apercebia de que já nada lhe restava senão a visão dos que ia abandonar, vivos, sem qualquer possibilidade de retorno. Depois, com um pavoroso rugido, o homem deixara-se cair para trás, o corpo hirto, para sempre hirto, as palmas das mãos voltadas para o tecto, como que esboçando um derradeiro sinal de impotência na sua inútil e final batalha pela sobrevivência. Enfermeiras, chamadas pelas campainhas dos que entretanto tinham acordado, acorreram, levaram o cadáver, recomendaram a todos que procurassem dormir, porque ainda era muito cedo, só cinco da manhã. Eugénio não conseguira pregar olho até lhe virem trazer o pequeno-almoço, perturbado pela sua estranha reacção ao tormento do velho. Tomara consciência de que não se sentira solidário com aquele pobre, frágil e aterrorizado ser agonizante, apenas temera ser tocado ou molestado fisicamente por ele ou pela sua morte, sem qualquer justificação que pudesse assumir. Envergonhava-se do que o seu coração sentira, ao mesmo tempo que era assaltado pela dúvida em relação à ideia que construíra de si próprio, que era a de um homem fraternal para com os outros homens, não apenas por palavras, mas também e sobretudo por actos. Dias depois, quando abandonara o hospital, quase esquecera já o episódio. Mas, em certos momentos, como agora, ao ser confrontado com o seu próprio fim, tudo lhe regressava à memória, tão nítido como uma infamante mancha que jamais conseguiria expulsar da pele.

 

«Não fossem as razões da minha razão, e caso tivesse sempre ouvido apenas o meu coração, se calhar, em muitos outros momentos da minha vida, teria sido tão passivo e desumano como fui daquela vez, no hospital. Será mesmo verdade que o homem é instintivamente o lobo do homem? Nesse caso, tornar-se-ia menos perigoso confiar na razão do que no coração. Seria mesmo concebível que o coração pouco tivesse a ver com o facto de se querer uma sociedade mais justa, pois o voluntarismo da razão poderia impor esse generoso objectivo ao coração, forçando-o a aceitar algo que iria chocar contra o seu oculto, inconfessado e mesmo nada fraterno solipsismo. Aliás, nunca será de mais recordar que o humanismo de Espinosa é inseparável da necessidade de superar, em sentido hegeliano – isto é, a um tempo suprimir e conservar – o instinto, os afectos e a imaginação, integrando-os numa razão triunfante e soberana, mas enriquecida pelo diálogo com a não-razão. Apesar do seu por vezes insuportável sectarismo, Lukács não devia estar de todo equivocado ao denunciar as perigosas consequências do irracionalismo. Haja em vista Nietzsche, por exemplo, com a sua colérica e temerária crítica do conceito de igualdade entre os homens e da moral cristã – ‘a moral dos escravos’, como ele dizia –, a que tanto ficaram a dever, queiram ou não queiram hoje os seus apologistas e detractores, primeiro a democracia parlamentar e a Revolução Francesa, depois a pretensa “ditadura do proletariado” e a Revolução Soviética. Bendita seja a racional “moral dos escravos”, que tão longe poderá levar, ainda hoje e no futuro, os indivíduos e os povos a libertar-se de todas as espécies de escravatura, das mais antigas e brutais existentes desde a Antiguidade às mais modernas e sofisticadas do actual ultraliberalismo.»

 

Voltou a pegar na caneta e concluiu:

 

«Para Pascal, esse ‘misantropo sublime’, tudo é jogo, divertissement no seu sentido mais pejorativo, vanidade, tudo mesmo a luta pelo poder, a ciência, a guerra, porque os homens de tudo são capazes para se impedirem de pensar na morte, na sua como na dos outros. E para ele, como, depois, para Unamuno, talvez o único problema existencial e filosófico verdadeiramente sério fosse mesmo a fome de imortalidade.»  

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

30 de Maio

 

 

O telefone tocou. Surpreendido, Eugénio ouviu uma voz feminina, vagamente conhecida. Era rápida, segura de si, um tanto estridente:

- Olá, até que enfim, estou farta de lhe telefonar sem ninguém me atender. Que se passa consigo?

- Susana?

- Claro que sou a Susana, quem queria que você que eu fosse? Alguma tímida e oculta admiradora?

- Desconfio que não tenho admiradoras de qualquer espécie, nem sequer ocultas. Aliás, nunca fiz nada por isso.

- Ora, ora, sempre é um dos poucos escritores portugueses que vai vendendo os livros que escreve e sabe muito bem que tem um fiel público feminino.

- Não quer dizer que seja admirado por esse público feminino que você diz que eu tenho. Acho, sim, que talvez haja umas centenas de mulheres solitárias, sobretudo divorciadas, viúvas ou solteironas, que me lêem à noite na cama, com o mesmo espírito de quem toma um comprimido para dormir. De dia pensam decerto noutras coisas, como por exemplo ganhar cada vez mais dinheiro, tramar o colega ou a colega que trabalha ao lado no emprego, subir na vida utilizando a escada do conhecimento de pessoas consideradas influentes. Na mais cândida ou romântica das hipóteses, planearão passar um fim-de-semana prolongado, se possível numa ilha deserta, com o homem dos seus sonhos.

- Deu em cínico, agora?

- Talvez só em velho. Tenho boa idade para isso.

- Quer que eu lhe jure que parece muito mais novo do que é?

- Não, queria que me jurasse uma coisa muito diferente, mais reconfortante, que tenho pouco mais de trinta anos e uma infinita esperança de vida. Isso, sim, seria muito amável da sua parte.

- Quando eu o conheci você parecia de facto ter pouco mais de trinta anos, foi no lançamento de um livro seu, precisamente em 1987. Atropelei meio mundo mas fui a primeira pessoa a pedir-lhe um autógrafo. Será que já se esqueceu?

- Pode ter a certeza de que não me esqueci.

- E lembra-se do que eu lhe disse, do que eu fiz?

- Bom, tenho uma ideia. Não foram assim tantas as mulheres que se aproximaram de mim nos últimos decénios.

- Que se aproximaram, diz você?

- Sim, que se aproximaram ou de quem me aproximei, as consequências não foram muito diferentes. Se bem me lembro, você manifestou um grande interesse em me conhecer melhor – e isso lisonjeou-me.

- Não tenha medo das palavras. Atirei-me a si como se eu fosse uma espanhola ninfomaníaca à beira da menopausa e você uma espécie de Júlio Iglésias.

- Não exagere. Aliás, eu nunca soube tocar os chamados «corações sensíveis».

- Ainda bem. Está livre? Quer jantar comigo? Bem sei que já não tenho vinte e quatro anos, como quando me viu pela primeira vez. Fiz quarenta o ano passado. Mas adoraria conversar consigo, se você estiver bem-disposto.

- Tenho mau feitio e não estou bem-disposto. Passei uns dias em Madrid e sinto-me muito cansado, cansado como não me sentia há muito tempo.

- Pela segunda e última vez, será que posso convidá-lo para jantar? Atreve-se a dar-me uma tampa, a mim, que devorei todos os seus livros?

Eugénio hesitou durante alguns segundos e, depois, respondeu, arrastando a voz:

- Terei muito gosto, muito gosto mesmo, em jantar consigo.

- Conheço um restaurante italiano bem simpático, o ambiente é agradável e poderemos conversar à vontade, sem ser ouvidos pelos ocupantes das mesas mais próximas. Agrada-lhe a ideia?

- Acho uma óptima ideia.

Tomou um duche prolongado, barbeou-se, vestiu um fato azul e uma camisa de linho comprada em Roma, nas imediações da Piazza di Spagna, durante uma já longínqua e solitária viagem de férias. Depois olhou o relógio, saiu de casa e tomou um táxi que o levou até à porta do restaurante italiano escolhido por Susana, em pleno Bairro Alto. Entrou, sentou-se e pediu um whisky, «fraco, com duas pedras de gelo e muita, muita água com picos». Faltavam alguns minutos para a hora combinada, mas não teve tempo de acabar sozinho a bebida. Logo a seguir, Susana entrava, apressada, olhava em volta, aproximava-se sorridente da sua mesa. Eugénio levantou-se e beijaram-se na face, como dois velhos amigos.

- Bebe alguma coisa, acompanha-me no whisky?

- Não, obrigada, é melhor não abusar, por causa dos ansiolíticos.

- Também precisa disso?

- Não sei viver sem eles. Dois casamentos falhados são uma boa justificação, não lhe parece?

- Já esteve casada duas vezes?

- Exacto. E, em qualquer dos casos, tudo acabou sem honra nem glória para ambas as partes.

- Sem honra nem glória?

- Isso mesmo. Acabou em divórcios litigiosos, depois de prolongadas discussões domésticas e infinitas recriminações mútuas. O trivial. Só faltaram as cenas de ciúmes e as estaladas.

- Vá lá, pelo menos não teve de suportar isso. Julgo que passamos grande parte das nossas vidas a tentar demonstrar às pessoas que amamos ou julgamos amar que somos aquilo que não somos ou que não somos aquilo que somos. Parece-me que a maioria dos divórcios é provocada por essa espécie de permanente má-fé.

- Ninguém gosta de trazer os seus defeitos e as suas mazelas para a luz do dia, sobretudo quando pretende seduzir alguém ou manter o seduzido ou a seduzida sob o efeito da sedução. É muito difícil falar sempre verdade, não acha?

- Pois, é mesmo muito difícil falar sempre verdade. Mas há que lutar por isso – ou então desistir de viver a dois. Acho mais honesto. Que vamos comer?

Ela conduziu-o pela ementa e escolheu os pratos, ele decretou que beberiam uma garrafa de Frascati bem fresco, considerando que acompanharia às mil maravilhas o carpaccio de salmão e o esparguete com amêijoas que iriam encomendar.

Susana comia depressa, com evidente prazer. Ele saboreava, concentrado, a comida e o vinho.

- Está a escrever algum livro?

- Estive a tentar, nos últimos tempos – mas acho que vou desistir. Sabe, há uma altura da vida em que temos de fazer o balanço final do que fomos e em que compreendemos que não devemos ser demasiado ambiciosos em relação às nossas perspectivas futuras. Aliás, talvez já tenha publicado tudo o que podia publicar e confesso que não estou muito orgulhoso da minha obra.

- Eu gosto dos seus livros, sempre gostei dos seus livros.

- Eu não. Sabe porquê? Porque nunca me encontro lá todo, porque houve sempre uma parte dos meus temas preferidos ou das minhas obsessões que, por não ser comercial, nenhum editor se arriscou a publicar na íntegra, com medo da reacção negativa dos leitores. Quem quer ouvir personagens já longe da adolescência a discorrer acerca da velhice, da doença, da morte, de Deus ou da imortalidade da alma, mesmo que tudo se passe num quarto de hotel de cinco estrelas, entre admiráveis proezas eróticas e prolongados gemidos de prazer?

- Não se esqueça de que eu fui, em tempos, uma aplicada estudante de literaturas modernas. Julgo que muita gente se interessa por esses temas, mesmo que eles não sejam envolvidos por insinuações ou concretizações sexuais.

- Muita gente, diz você? Mas quantas pessoas em Portugal?

- Não faço a mínima ideia.

- Eu digo-lhe, trezentas ou quatrocentas pessoas. E, se misturasse os tais temas com as minhas concepções políticas – porque eu defendo concepções políticas que não estão na moda e não abdico delas, seria mesmo a última coisa de que abdicaria –, então seria a catástrofe financeira completa.

- Tornou-se muito pessimista.

- Sou de esquerda, sempre fui de esquerda e espero ter a coragem de morrer sem trair o meu passado. O que está na berra não é nada disso, é prescindir da esperança, da utopia e da generosidade para dar lugar a uma coisa híbrida a que alguns chamam neoconservadorismo ou neoliberalismo e eu prefiro chamar «realismo capitalista». O capitalismo não cultiva o optimismo nem o pessimismo, considera-se o único e exclusivo detentor da verdade política absoluta, que seria uma espécie de «centrão», um cinzento e injusto meio-termo que denomina «pragmatismo». Fora dele só haveria lugar para dinossáuricos sonhadores, fanáticos da igualdade, doentios lunáticos. E terroristas, que é agora a palavra mais utilizada em política internacional, sobretudo desde o ataque às Twin Towers. É claro que, quando se ousa falar em terrorismo de Estado e apontar o dedo aos seus principais responsáveis, a coisa fia mais fino, não vão os Estados Unidos ou Israel, autoproclamados campeões dos direitos humanos e das guerras justas ditas «preventivas», sentir-se atingidos na sua eminente dignidade democrática. Quem se atreve a falar claramente dos prisioneiros de Guantánamo ou da ocupação israelita da Cisjordânia e da Faixa de Gaza?

- Você ainda acredita na vitória da esquerda?

- Claro que sim. Mesmo depois do estalinismo, mesmo depois da queda do Muro de Berlim, mesmo depois do fim da União Soviética. É possível criar sociedades menos desumanas do que estas onde os europeus e os norte-americanos vivem e que consideram o nec plus ultra da criatividade política. Creio que é possível, tenho a certeza de que é possível – e acho sobretudo que é necessário, urgente, inadiável. 

- Isso parece quase uma questão de fé.

- Talvez seja também uma questão de fé. E por que não? Há os que crêem em Deus só porque desejam que ele exista, por que diabo não há-de haver os que crêem no socialismo pela simples razão de que anseiam por o ver posto em prática?

- Não posso acompanhá-lo nas suas expectativas. Já arrumei há muito tempo – e de vez – os problemas de Deus e do socialismo.

- Invejo-a. Como conseguiu chegar aí?

- Deixei de pensar em tais fantasias, não acredito nem em Deus nem no socialismo. 

- E vive em paz, nunca tem dúvidas, ficou tranquila?

- Sou uma mulher muito prática, vivo completamente tranquila, embora talvez você possa achar que isso, em parte, se deve à ajuda dos ansiolíticos que fui tomando ao mesmo tempo que decidia se Deus existia ou não existia, se o socialismo era possível ou não era possível – e até se o amor valia a pena. Não contesto as suas opções, mas a verdade é que deixei de me preocupar com Deus e com o socialismo. Prefiro ir vivendo a minha pacata vida com o mínimo de angústias. Só convivo mal com a velha questão do amor – por vezes ainda me ofereço o luxo de sonhar.

- Não quero ser indelicado, mas acho que você assimilou a falsa indiferença da casta dirigente onde, queira ou não queira, ocupa de pleno direito o seu lugar cativo. Nem sequer pretende mudar tudo para que tudo fique na mesma. Contenta-se com não modificar nada e, assim, continuará a gozar dos seus privilégios – pois o acto de preguiça mental que é pôr as questões políticas e metafísicas entre parêntesis também constitui, de certo modo, um privilégio. E não me parece que haja ansiolíticos capazes de arrumar de vez os problemas de Deus e do socialismo. Se assim fosse, há muito tempo que eu teria deixado de ser atormentado por eles. Aliás, nem os ansiolíticos nem o álcool me ajudaram nunca a encontrar um caminho que me transmitisse qualquer espécie de tranquilidade na minha relação comigo próprio ou com os deserdados, com este mundo ou com o outro.

Eugénio pediu uma segunda garrafa de Frascati, Susana não protestou, mas franziu a testa, num quase imperceptível sinal de preocupação. Depois, baixando ligeiramente a voz, com um estudada suavidade, interrogou-o:

- Será que poderemos ser amigos, apesar das nossas divergências em matéria de Deus e de socialismo?

Ele sorriu. Encontrava-se naquele momento exacto em que as pessoas que estão habituadas a beber sabem que devem parar, para as ideias não ficarem menos claras, a voz não se arrastar numa monotonia de sons e não aborrecerem os seus interlocutores.

- É evidente que podemos ser amigos. Simpatizo muito consigo, não cultivo nenhuma espécie de integrismo ou fundamentalismo, como queira, muito menos no relacionamento entre as pessoas. Só nunca fui capaz de ter um amigo salazarista, isso ultrapassa todos os parâmetros da minha tolerância.

- Esteja descansado, eu nunca fui salazarista, aliás não tenho idade para isso. Não se esqueça de que ainda não tinha feito doze anos quando se deu o 25 de Abril.

- Existem salazaristas mais ou menos com a sua idade. Não o são por terem sido adultos durante a ditadura, talvez o sejam precisamente porque eram apenas crianças ou adolescentes em 1974. Ser salazarista, hoje, não é uma questão de idade, talvez seja mais um problema de reacção pela negativa à classe política que é a ponta visível do icebergue dos interesses económicos, sociais e políticos que gerem as nossas vidas.

- Há-de convir que essa «classe política» não nos transmite uma imagem muito lisonjeira de si própria. Até me parece que enoja muita gente.

- A mim também me enoja, mas não passei a ser salazarista por causa disso. Aliás, não considero a classe política insuflada pela democracia parlamentar como um mal necessário, nem mesmo o menor dos males em matéria de governação. De resto, presumo que os homens do futuro serão capazes de encontrar um caminho que conduza à neutralização da grande maioria dos políticos profissionais desonestos.

- É comunista?

- Comunista é uma palavra muito forte para alguém tão individualista, complicado e solitário como eu. Sou apenas um homem de esquerda que não gosta de ditaduras de qualquer espécie – e é tudo.

- Você tem alguma coisa de anarquista.

- Espero bem que sim. Aprovo muito do que Max Stirner, Proudhon, Bakunine e Kropotkine escreveram. Mas a esquerda não pode viver sem Marx, penso que talvez e acima de tudo sem o jovem que nos deixou os Manuscritos de 1844, embora isso não signifique que tenha de adoptar qualquer espécie de cartilha revolucionária. Basta-lhe estar atenta ao passado e ao mundo contemporâneo, nunca deixando de reflectir sobre eles. Isto se, de facto, quiser mesmo transformar a sociedade em que vivemos.

- E o Fidel? Que pensa dele?

- Penso que foi a grande esperança da minha geração. Quando eu tinha vinte anos, lá por 1959, surgiu como uma pedra muito branca num escuro pântano de vergonha, de corrupção e de miséria. Creio que procurou transformar esse bordel norte-americano que era a Cuba dos anos cinquenta num oásis latino-americano de dignidade, de honestidade e de justiça social. Em parte falhou, utilizou métodos inaceitáveis, terá mesmo cometido crimes hediondos. A realidade castrista é agora, para muitos homens de bem, um autêntico pesadelo. Mas não pode ser comparada com o que foi a antiga Cuba de Fulgêncio Batista. Isso parece-me indiscutível e nem a mais despudorada propaganda dos Estados Unidos ousa negá-lo. Pura e simplesmente, faz de conta que nunca existiu a execrável Cuba do Batista antes de Fidel ter surgido e tomado o Poder.

- Acha que a História o absolverá, como ele próprio chegou a prever?

- Atenção, essas palavras foram pronunciadas por Fidel durante a ditadura de Fulgêncio Batista, em pleno tribunal, antes de ser condenado por ter tentado assaltar, com os seus guerrilheiros, o quartel de Moncada. Têm a ver apenas com a legitimidade de derrubar o déspota, não com o futuro regime castrista. Até São Tomás de Aquino, como é bem sabido, teria aprovado a deposição violenta do tirano. Aliás, a frase a que se refere é a seguinte: «Condenem-me, não importa, a História me absolverá.» São palavras proféticas dirigidas por um honrado e corajoso prisioneiro político aos seus algozes, não lhes reconhecendo estatura moral para o julgar.

- Mas não lhe parece que essa mesma História condenará muito do que ele fez desde que tomou o Poder? O silenciamento dos oposicionistas, os fuzilamentos, a repressão dos intelectuais dissidentes, para só falar nos exemplos de que os jornais e os políticos de direita estão sempre a falar?   

- Presumo que sim. Mas decerto que não o condenará sem o explicar.

- Explicar não é justificar.

- Certo. E absolver ou condenar Fidel não é possível senão depois de enumerar o que em Cuba sucedeu de bom e de mau nas últimas dezenas de anos. Não sei dizer de outra maneira, talvez isto lhe pareça um exercício de retórica ou uma vulgar cassette sindicalista, mas o que o regime de Castro fez pelos cubanos em matéria de alfabetização e educação, saúde ou habitação, não tem mesmo nenhum paralelo em qualquer país da América Latina. Claro que ele não é um santo, pura e simplesmente porque em política nunca se encontram santos – talvez com uma única excepção, a do Mahatma Gandhi. Mas estou certo de que entre o verdadeiro Fidel e a imagem que os anticastristas de Miami ou as sucessivas administrações norte-americanas, desde o general Eisenhower, deram do seu regime, há diferenças abissais.

- E quem é ele, afinal?

- Um homem acossado, encurralado. Um revolucionário que as circunstâncias geográficas, históricas e políticas conduziram a um beco sem saída. E estas há que procurá-las muito bem, não apenas no interior de Cuba – conviria a muita gente e seria demasiado linear, não acha? –, mas sobretudo na prepotência de Washington. Nem sequer o Kennedy, com a grotesca invasão da Baía dos Porcos – que era nada mais, nada menos do que uma tentativa de mergulhar Cuba na guerra civil –, e o criminoso bloqueio económico que impôs à ilha, para a asfixiar, escapou à histeria dominante no seu tempo.

- Sempre achei o Kennedy uma figura simpática. Não me lembrava de que tinha sido responsável por tudo isso.

- O Kennedy e a CIA, com o beneplácito dos chamados «grandes países democráticos» da NATO e de todas as ditaduras apoiadas pelos Estados Unidos. Aliás, não se esqueça do que sucedeu à antiga Rússia a partir da Revolução Bolchevique: aqui, no Ocidente, houve muitos marxistas que, depois, quase puseram Lenine num altar, ao mesmo tempo que condenavam Estaline às penas infernais. Os historiadores vieram demonstrar que isso nada tinha a ver com a verdade dos factos ocorridos nos primeiros anos do regime socialista: tal como viria a suceder com Cuba, o país foi desde logo votado ao ostracismo, impelido, do exterior, à guerra civil, e, em consequência, obrigado a evoluir quase de imediato para uma implacável ditadura. Daí haver muitos a pensar hoje – e eu incluo-me nesse número – que o primeiro estalinista não foi de facto o «diabólico» Estaline, mas o «beato» Lenine. E parece-me que existem boas razões para isso.

- Você é um perigoso aliciador de mulheres indefesas para o seu explosivo território ideológico.

- E você uma paciente e benévola ouvinte. Espero que me desculpe este comício político em que transformei um jantar que poderia ter sido um pouco mais íntimo e romântico, apesar de não terem posto uma velinha acesa na nossa mesa…  

Susana sorriu, como única resposta. Levantaram-se para sair, desceram sem pressas até à Praça Luís de Camões. Perto da entrada para o parque de estacionamento, ela perguntou-lhe:

- Vamos tomar um copo a qualquer sítio?

- Obrigado, não. Estou muito cansado, a viagem a Madrid arrasou-me. Irei outro dia, terei muito gosto.

- Não seja tão formal. Eu levo-o a casa.

Conduzia rapidamente, mas com segurança. Quando chegaram junto ao prédio onde Eugénio habitava, numa rua muito íngreme da Penha de França, ela parou o carro, voltou o rosto para ele, olhando-o bem de frente na semi-obscuridade, acariciou-lhe levemente o rosto com a mão, sem qualquer constrangimento, como se esse tivesse sido desde sempre um gesto familiar entre ambos, e murmurou:

- Vou fazer-lhe uma confissão. Gosto muito de si. Tinha saudades de o ver e de o ouvir. Queria que fôssemos amigos. Já nenhum de nós tem muito tempo a perder, não é verdade?

Ele deixou-se envolver pela doçura dela:

- Sou só eu quem não tem mesmo nenhum tempo a perder. Você é uma jovem senhora, viverá ainda, felizmente, muitos e bons anos. Um dia destes telefono-lhe e combinamos encontrar-nos outra vez.

- Um dia destes?

- Sim, claro, quando lhe apetecer…

- Pode ser amanhã?

Ele soltou uma ruidosa e espontânea gargalhada – a única da noite, a única desde há muito tempo –, retribuiu-lhe a rápida carícia no rosto e respondeu-lhe, sem qualquer hesitação, como se já antes tivesse pensado na resposta a dar:

- Claro que pode ser amanhã.

 

 

 

 

 

 






12 de Agosto

 

 

Eugénio levantou-se da cama, espreguiçou-se, aproximou-se da janela do quarto, observou durante alguns segundos o mar e o céu e disse para Susana:

- Está um dia óptimo para você nadar e tomar banhos de sol. Verá o calor infernal que fará à hora do almoço. Só espero que os incêndios não arrasem este ano toda a Península Ibérica.

- Não me diga que vai ficar aqui o tempo todo metido no quarto, agarrado ao computador, a escrever para a posteridade.

- Vou ler e trabalhar um pouco, aproveitar bem este civilizado e delicioso ar condicionado e, depois, tomar um whisky com muita água e gelo no bar do hotel. Garanto-lhe que não me vou aborrecer.

- E abandona-me assim, deixa-me ir sozinha para a praia?

- Já a tinha avisado de que sou alérgico ao sol. Não quero passar estes dias a coçar-me como um rafeiro cheio de pulgas.  

Era a primeira viagem que faziam e a escolha do local fora de Susana. Eugénio preferiria ter ido passar alguns dias numa grande cidade europeia, talvez Roma ou Paris, mas cedera sem grandes dificuldades ao desejo manifestado por ela de ficar durante uma semana num amplo hotel próximo de Ayamonte, junto a Isla Cristina. Consolara-se com a ideia de comer em alguns bons restaurantes da região de Huelva e de fazer uma rigorosa dieta de peixe fresco e mariscos.

Logo que Susana saiu para a praia, embrenhou-se na leitura de um livrinho que adquirira na véspera no pequeno centro comercial existente nas imediações do hotel. Tratava-se dos Relatos de um Peregrino Russo e o seu anónimo autor situara a obra na segunda metade do século XIX, pouco depois da Guerra da Crimeia e antes da abolição da servidão no império dos czares. «No interior do homem existe uma oração misteriosa que nem ele mesmo sabe como se produz, mas que conduz cada um a orar segundo sabe e pode», leu. Ficou-se a meditar na possibilidade de levar a cabo a «secreta oração interior do coração» – ensinada pelo Evangelho de São João como um estádio superior à oração vocal e à oração mental –, no competitivo e frenético mundo do século XXI, onde os eremitas, os solitários e os anacoretas não poderiam deixar de surgir aos olhos de quase todos como incómodos alienígenas, senão como semi-loucos.

À hora do almoço, quando Susana regressou da praia, encontrou-o adormecido na cama, o livro fechado sobre o peito. Acordou-o, jovial, com um aberto sorriso:

- Assim é que se trabalha, seu mandrião?

- O cérebro nunca pára, mesmo quando parece adormecido.

- O meu, sim, às vezes fica completamente vazio, sobretudo quando nado ou me estendo na areia, com o corpo a ser aquecido pelo sol. Nunca passou por isso?

- Claro que sim, mas já lá vai muito tempo, quando era miúdo. Agora nunca paro de pensar em coisas sérias.

- Aqui, junto à praia, comigo, com este sol e tantos mariscos?

- Exacto. Aqui mesmo, rodeado de lagostins por todos os lados.

- Isso não será um tanto doentio?

- Talvez seja, mas por que raio é que este mundo não nos há-de provocar uma profunda, contínua e irreversível inquietação? Acha que a condição humana contém alguma milagrosa componente que nos ajude a sair em definitivo da depressão?

- Sim, pelo menos o amor. Eu amo-o, portanto não estou inquieta.

- Você fala como quem dissesse: «Penso, logo existo.» Mas não há, que eu saiba, nenhum silogismo que possa resolver qualquer problema de inadaptação ao mundo.

- Se você me amasse como eu o amo, teria apreendido o espírito – não a letra – do que lhe disse. A única questão está em que você não me ama como eu o amo.

- «A letra mata, o espírito vivifica.» Mas não tem o direito de dizer que não a amo.

- Tenho. Acho que não ama a mulher que eu sou. Na melhor das hipóteses, talvez amasse a mulher que eu poderia ser, caso você fosse uma espécie de Pigmalião que, em vez de ensinar a sua Galateia a falar um inglês digno de Oxford, lhe desse lições de metafísica e marxismo.

- Não sei se tem presente que a versão de Bernard Shaw acaba mal, mesmo muito mal. Elisa Doolittle, depois de conseguir deixar de falar cockney e de assumir a ridícula pretensão de se tornar uma reputada mestra de fonética, manda o professor Higgins às urtigas e casa-se com o jovem, dedicado e fogoso Freddy. 

- Não tenho qualquer propensão para desempenhar o papel de Elisa. Você é que parece querer transformar-se num intratável misantropo, com medo de viver com a mulher que o ama.

- Meu Deus, já não tenho idade para voltar a viver acompanhado.

- Não diga disparates. Estou convencida de que nunca se habitou a estar sozinho. Só não teve força de vontade para reconstruir a sua vida.

- O voluntarismo, nesse campo, ter-me-ia certamente conduzido a fazer grandes asneiras. Seja como for, agora é tarde de mais para mudar de rumo.

- Só é tarde para almoçarmos, se continuarmos aqui a discutir o sexo dos anjos. Que tal se fôssemos atacar os lagostins?

- Boa ideia!

Saíram do hotel e percorreram as escassas centenas de metros que os separavam da marisqueira, mão na mão, descontraídos. Susana possuía uma insuperável arte de transfigurar qualquer indício de discórdia num incidente insignificante, varrendo-o do campo dos assuntos em litígio. Ele admirava a habilidade com que ela enfrentava, desde há meses, as dificuldades de relacionamento que iam surgindo entre os dois, reinstalando de imediato o bem-estar ameaçado pelo choque de temperamentos.

Tal como Eugénio previra, fazia, de facto, um calor infernal. Pediram cerveja, que beberam sofregamente e em boa quantidade, acompanhando uma dúzia de pequenos lagostins acabados de cozer. Depois, Susana inclinou-se para ele, docemente, e perguntou-lhe de chofre, com um intenso brilho nos olhos:

- E a seguir?

- A seguir?

- Sim, a seguir o que vai ser a nossa vida? Quer ver-me de vez em quando, passar umas pequenas férias comigo todos os anos, encarar a hipótese de vivermos juntos, eventualmente casados?

- Não acha que é extemporâneo falarmos disso?

- Não, acho que é a altura própria. Desde o fim de Maio que nos vemos praticamente todos os dias, conhecemos razoavelmente as manias um do outro, eu amo-o, você procura a minha companhia e parece apreciá-la. De que estamos à espera?

- Por que não havemos de manter as coisas como estão? Não se sente bem assim?

- Você não quer abdicar da sua solidão acompanhada, é isso?

- Ouça, tenho de ser muito claro. Entre gostar de estar consigo – no restaurante, na rua, na cama, seja onde for –, e vivermos na mesma casa há uma diferença abissal que me é difícil, mesmo quase impossível, ultrapassar. Não se esqueça que eu estive sozinho nos últimos trinta anos, criei os meus hábitos, as minhas obsessões, os meus vícios. Sou um bicho-do-mato muito difícil de aturar.

- E não tem paciência para aturar ninguém?

- Não se trata de ter paciência para aturar alguém, muito menos a si. O que se passa é que eu muitas vezes não consigo sair de mim e voltar-me para fora, imerso como estou nos meus próprios problemas. Preciso de ler, pensar, escrever. E, até, de beber em excesso. Se não me transformei ainda num alcoólico, para lá caminho. Além disso, sou um monstrozinho de egotismo.

- Não vou desistir tão depressa de o fazer sair da depressão com que está habituado a conviver.

- A Susana não é nenhuma abnegada enfermeira, parecida com aquela que o Hemingway inventou n’O Adeus às Armas, para nos fazer pensar que nós, homens, poderíamos ser adorados como se fôssemos deuses. E o que você considera a minha depressão é apenas inadaptação à vida, indignação, revolta. Esses não são, a meu ver, sintomas doentios, muito pelo contrário. São formas saudáveis de gritar que não a tudo o que sentimos que deveria desaparecer da face da Terra, que é inaceitável que continue a ser como tem sido, que consideramos imperioso modificar. A antítese do conformismo individual, social, político. A verdade é que vivemos num mundo asfixiante. Será que ainda tem alguma dúvida a esse respeito?

- Um mundo asfixiante que sempre nos vai dando belas semanas de férias, óptimos lagostins e, até, algumas inesquecíveis tardes e noites de amor. Não exijo tanto da vida como você exige. Quase sempre me contento com o que ela faz o favor de me oferecer.

- Quase sempre?

- Sim, quase sempre. Chorei a morte de meu pai, chorei os meus divórcios, chorei, mesmo, a impossibilidade de encontrar alguém com quem tivesse o desejo de viver e de me casar outra vez. Quanto ao resto, nasci numa família abastada e nunca fui forçada a enfrentar problemas económicos, entrei e saí dos empregos quando me apeteceu, sou saudável, arrumei de vez as minhas dúvidas políticas e metafísicas – que aliás nunca foram muito incómodas nem muito dolorosas. Na prática, tenho tudo o que quero.

- Considera-se uma mulher feliz, portanto. Sem angústias metafísicas, sem ideias negras sobre o seu passado e o seu futuro, sem se preocupar com o que milhões e milhões de pessoas, por esse mundo fora, agora mesmo, estão a sofrer devido à exploração do seu trabalho, à doença, à miséria?

- Que podemos fazer contra isso?

- Há quem tenha feito alguma coisa, há quem esteja a fazer alguma coisa.

- Não sou santa nem heroína.

- E eu não sou santo nem herói, mas não sou capaz de viver sem pensar nisso e sem escrever sobre isso. É a minha humilde forma de manifestar, tão ruidosamente quanto mo permitem, a revolta contra este mundo onde nasci, cresci e tenho sofrido. Não sou capaz de não sentir como uma insuportável dor de dentes que vou morrer sem saber se Deus existe ou se a minha alma é imortal.

- Isso não o impede de gostar de lagostins – e de os ir comendo com gosto quando tem ocasião para isso.

- É verdade, tem toda a razão. Gosto de comer lagostins, de beber bons vinhos, de viajar, de uma infinidade de coisas que muitos poderão considerar pouco apropriadas em alguém que pretende ajudar a salvar o mundo e anseia por salvar-se a si próprio. Mas não sou um hipócrita. Vivo torturado por um mal profundo, antigo, obsessivo. Um mal sem cura, mesmo sem cura, será que percebe?

- Não, não sei se percebo.

Eugénio sentiu-se invadido por uma súbita lassidão. Susana, a mulher que minutos antes lhe assegurara que o amava, parecia não acreditar no que se passava consigo. Com um sorriso forçado e amargo, ainda lhe retorquiu:

- Não é novidade para ninguém, muito menos para mim, que não sou nem nunca fui um homem perfeito. Mas pode ter a certeza de que não dramatizo nada que não tenha sentido na carne e que nunca estive de má-fé na vida ou na minha relação com os outros.

Chamou o empregado e pagou a conta. Levantaram-se e caminharam até ao hotel, sem trocarem uma única palavra. Quando entraram no quarto, Susana tomou a iniciativa de retomar o diálogo:

- Desculpe, não queria magoá-lo.

- Mas magoou.   

- Não era essa a intenção, foi apenas uma reacção estúpida.

- Talvez não tão estúpida quanto você pensa. De facto, se eu fosse um modelo de coerência, se calhar tinha morrido algures em África, na Ásia ou na América Latina a lutar, na guerrilha, de armas na mão, contra tropas coloniais ou de um qualquer déspota local. Ou, neste momento, estaria numa gruta, meditando sobre Deus, a condição humana e a imortalidade da alma. Eu sei que não sou um modelo de coerência, mas também sei que sou um homem honesto. Foi o que você, à sua maneira, acabou de pôr em dúvida. Como seria possível eu viver com alguém que não respeita aquilo que de mais profundo e autêntico existe em mim?

Encostou a testa ao vidro da janela, olhou sem nada ver o mar e as piscinas do hotel, voltou-se para Susana e disse-lhe pausadamente:

- Há bocado, hesitei quando falámos acerca do que seria o nosso futuro. Agora já não tenho razões para ter dúvidas, tornou-se evidente que existe um abismo entre nós. Não se trata apenas de as nossas opiniões serem diferentes sobre este ou aquele problema, o que se passa é que realmente habitamos duas galáxias porventura incapazes de conviver sem agressões mútuas, directas ou veladas, mais ou menos rudes ou mais ou menos «civilizadas». Esse não seria um ponto de partida aceitável para qualquer relação afectiva estável, muito menos para uma vida em comum.

- Está a despedir-se de mim?

- Nestas últimas semanas pensei que tal não seria possível nos tempos mais próximos, atrevi-me mesmo a sonhar que esta seria a última ligação da minha vida e que ela iria durar até ao meu fim.

- E agora?

- Agora parece-me que nenhum de nós é o bom ou o mau desta história, que apenas somos duas pessoas muito diferentes que, com o correr do tempo, acabariam por não ser capazes de se respeitar uma à outra. E sinto-me outra vez cansado, terrivelmente cansado, como quando, em Maio, voltei de Madrid.

- Cansado de mim?

- Não, Susana, cansado de olhar o mundo sem descortinar um único sinal de esperança, cansado de revolver o passado e de só encontrar feridas que nunca irão sarar, cansado de assistir ao nascimento e à morte do amor ou das suas infinitas caricaturas.

- Tem muita pena de si, nenhuma de mim.

- Está enganada. Também tenho pena da Susana. Pena porque lutou em vão para conquistar algo que julgou importante para si e para mim, pena porque limitou o seu horizonte ao amar um homem velho, pena porque, afinal, é um ser tão solitário como eu, apesar de todos os amigos que imagina ter, mas que nunca estarão presentes na hora da verdade, quando você precisar mesmo que alguém lhe estenda uma mão fraterna, sem quaisquer condições e sem nenhum cálculo.

- Que sabe você dos meus amigos, além do que lhe tenho contado?

- Sei que você é uma mulher rica, Susana. Nunca terá a certeza de quantos amigos tem se não empobrecer ou se não estiver muito doente ou à beira da morte. Não lhe desejo que alguma vez seja forçada a enfrentar qualquer dessas situações, mas deve tomar muito cuidado com as pessoas que se dizem suas amigas.

- Não se preocupe, não sou assim tão ingénua… Sei cuidar de mim.

- Uma última coisa: não julgue que não estou bem consciente do que lhe devo. Você foi generosa, tentou ajudar-me a escapar do beco sem saída onde me encontrava e me encontro. Se não conseguiu isso, a culpa não foi, certamente, sua. Foi toda minha e do meu passado.

- Já não podemos voltar atrás?

- Não, Susana, nenhum de nós mereceria ser tão pouco exigente para consigo próprio. Não se pode jogar, muito menos fazer batota, com o amor.

- Não é mesmo capaz de aproveitar o que tenho para lhe dar?

- Julgo que não, seria um oportunismo da minha parte, a partir do momento em que julguei compreender que a ruptura entre nós era apenas com uma questão de tempo. Acho que estou condenado a viver amargurado a vida que me resta, tentando equilibrar-me na minha já velha e frágil corda bamba. Um dia hei-de cair, mas cairei sozinho, não arrastarei ninguém na queda. Será melhor para mim e para os outros.

- Espero que nunca se esqueça de que eu o amo e de que nunca deixarei de o amar.

- Espero que nunca se esqueça de que eu sou um homem sem esperança. Um homem desolado.

  

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

28 de Novembro

 

 

«Desde fins de Setembro que o Francisco vem quase todas as semanas cá a casa, com o seu palmo e meio de tamanho e sabedoria. A avó, que mora no andar ao lado e decerto não possui grandes recursos, pediu para falar comigo. Contou-me toda a história. Mãe e pai mortos, ela pela sida, ele de overdose. Desgraças cada vez mais banais nesta aprazível sociedade onde vivemos. Pretendia a senhora, a quem o tribunal entregou a guarda do menor, que o auxiliasse de vez em quando na matemática e na língua portuguesa, porque ele faz-lhe muitas perguntas e ela não é capaz de o esclarecer. O menino, que frequenta aquilo que agora se denomina o segundo ano – e que quando eu andava em tais lides se chamava segunda classe, reservando-se a outra designação para os liceus e as faculdades –, começou por olhar-me com alguma timidez. No entanto, quando o convidei a tratar-me por Eugénio e à medida que os dias foram correndo, passou a estar mais à vontade, exprimindo-se com uma vivacidade que me parece prometedora em termos de inteligência e sensibilidade. Chama ‘quê’ àquilo que eu chamo ‘cê’, ‘fe’ ao ‘éfe’, ‘se’ ao ‘ésse’, etc. Depois de me esclarecer que foi assim que o ensinaram na escola, já adoptei a nova terminologia, cada vez com menos esforço. E tudo corre bem, ele vai, certamente, aprender sem grandes percalços o que precisa de aprender e eu fico satisfeito por lhe proporcionar alguns progressos na aprendizagem.

Dei comigo a pensar que este poderia ser o filho que as circunstâncias nunca me permitiram acompanhar passo a passo, vendo-o crescer, amparando-o, estimulando o seu desenvolvimento intelectual. E envolveu-me uma dolorosa mas serena nostalgia do que nunca tive nem já terei tempo para ter.

Ontem o Francisco esteve mais uma vez cá, com os seus cadernos e livros. Ajudei-o a fazer os trabalhos de casa. Depois, à saída, voltou os seus meigos olhos quase negros para mim e anunciou-me, orgulhoso:

- Amanhã faço sete anos.

Felicitei-o, fiz-lhe uma festa na cabecita e prometi a mim próprio ir comprar-lhe alguma coisa que lhe agradasse. Mas lembrei-me de lhe perguntar:

- Que presente gostarias de ter?

Ele abriu o rosto, sorridente, a resposta na ponta da língua:

- O livro da catequese. Custa dois euros e quarenta, é caro, a minha avó disse que já gastou muito dinheiro e que ainda não mo pode comprar este mês…

Dirigi-me hoje de manhã à Igreja de Arroios – aonde ele vai à catequese depois das aulas, uma vez por semana –, e lá comprei o livro indicado, que lhe ofereci à tarde, embrulhado a rigor, com um beijo na testa. Recebeu-o com ruidosa alegria e agradeceu-me:

- Obrigado, Eugénio. É mesmo este. Queria perguntar-lhe uma coisa…

- Que queres saber?

- Queria saber como é o Inferno.

Fiz uma pausa, respirei fundo. Disse-lhe para se sentar a folhear o livro, que eu ia à cozinha beber um copo de água. E, quando voltei, interroguei-o, a medo, tacteando, qual elefante em loja de louças, as areias movediças da mitologia oficiosa:

- Quem te falou no Inferno?

- Foi a irmã Filomena.

- E que te disse ela?

- Que os maus vão para o Inferno. Eu gosto muito de Jesus, não quero ir para o Inferno.

- Gostas muito de Jesus? Porquê?

- Porque Jesus é muito bom e gosta muito de nós.

- Então não vais para o Inferno. Quem gosta de Jesus não vai de certeza para o Inferno. E parece-me que os meninos que gostam uns dos outros e das suas avós também não vão para o Inferno.

Julgava ter-me desenvencilhado airosamente da situação, mas Francisco voltou à carga:

- Mas como é o Inferno?

- Não sei, há muitas coisas que eu não sei bem, Francisco. Mas parece-me que o Inferno é só não gostar das outras pessoas, ou as outras pessoas não gostarem de nós.

- O Eugénio já é um senhor velho?

- Sim, sou um senhor velho. Tenho sessenta e quatro anos.

- E quando é que vai para o Céu?

- Isso não sei, ninguém sabe. Nem sei mesmo se vou para o Céu.

- Eu queria morrer já.

- O quê? Que estás a dizer?

- Queria ir já para o Céu, para estar sempre perto de Jesus.

- Acho que se fores bom aqui, na Terra, estarás tão perto de Jesus como se estivesses no Céu. Não tenhas pressa de te ir embora, há muitas coisas boas na Terra.

- A irmã Filomena disse-me que nunca estamos sós e que, quando queremos, podemos sempre falar com Jesus, com Maria e com o nosso Anjo da Guarda. Eles não nos respondem, mas ouvem como muita atenção tudo o que lhes dizemos.

- E tu falas com eles?

- Às vezes falo com Jesus, quando me deito, antes de adormecer.

- E que lhe dizes tu?

- Que queria ver a minha mãe. Se eu fosse para o Céu agora via Jesus e a minha mãe, não é verdade, Eugénio?

Olhei-o, perplexo, sem saber como lhe responder. Que direito teria eu de roubar um sonho de ternura a este miúdo, um sonho sem mácula e sabe-se lá se com um peso decisivo na sua vida de criança feliz? Acabei por lhe dizer:

- Eu acho que a tua mãe está viva na tua cabeça e no teu coração. Podes falar com ela todas as noites, como disseste que falas com Jesus.

Quando o Francisco saiu, deixou-me perante toda a minha infância. Essa infância de que, por mais Schopenhauer que eu continue a ler, sei que jamais poderei libertar-me. Fui à estante, retirei o livro por mim sublinhado aos vinte anos e reli-o aqui e ali, procurando as frases decisivas sobre a religião das crianças. ‘Não têm faltado pessoas que se esforçaram por tirar a sua subsistência da necessidade metafísica e a exploraram quanto puderam; em todos os povos se encontraram personagens que fizeram dela um monopólio e a consolidaram: são os padres. Mas, para assegurarem completamente o seu tráfico, era-lhes necessário alcançar o direito de insinuar cedo aos homens os seus dogmas metafísicos, antes de a reflexão ter saído das suas trevas, isto é, na primeira infância, porque então qualquer dogma, uma vez bem enraizado, perdura para sempre, qualquer que seja a sua insensatez. Se os padres tivessem de esperar, para fazerem a sua obra, que o juízo estivesse já amadurecido, veriam desmoronar-se todos os seus privilégios.’

Tudo isto é verdade, claro, mas o cerne do problema, para mim, é outro. Por mais que um clero queira controlar a fé individual que sustenta a religião institucionalizada e por maior êxito que tenha ao desempenhar essa tarefa eminentemente social e política – Charles Maurras sabia bem do que falava e explorou o filão com cínica mestria – restará, incólume, aquilo em que cremos ou não cremos, aquilo de que estamos certos ou de que duvidamos, aquilo que desejamos que seja verdade ou que não desejamos que seja verdade. E esse ‘núcleo duro’ que aspira ou não aspira ao absoluto, que experimenta ou não experimenta a necessidade de conceber Deus, que encara ou não encara a morte física como o fim de tudo, esse é verdadeiramente inextirpável, pertence-nos como nos pertencem o nosso passado e a nossa sensibilidade e a nossa inteligência, é e será sempre parte inalienável da pessoa que somos.»

 

Eugénio levantou-se da cadeira, serviu-se generosamente de whisky e pegou no telefone, depois de hesitar durante breves momentos. Marcou um número e esperou uns bons dez segundos antes de ouvir a voz de Susana, um pouco ofegante:

- Estou?

- Sou eu.

- Eugénio? A esta hora?

- Desculpe, eu sei que é tarde. Já estava deitada?

- Não, não, acabei de chegar, estava a abrir a porta quando o telefone começou a tocar.

- Sente-se bem? Passa-se alguma coisa de grave?

- Preciso da sua ajuda. É muito importante para mim.

- Que aconteceu? Fale, estou a ficar assustada.

- Não, não é caso para tanto. Pode encontrar-se comigo amanhã?

- Claro que posso. Até hoje, se quiser.

- Não a incomodava muito se fosse agora a sua casa?

- Não, de modo nenhum. Pode vir logo que quiser.

- Obrigado. Dentro de meia hora, o máximo, estarei aí.

Tomou um táxi, indicou a morada ao motorista e o seu rosto, até então crispado pela preocupação, foi-se distendendo. Sabia que estava a recorrer à pessoa exacta para o ajudar a resolver o problema que o obcecava há já várias semanas.

Susana abriu-lhe a porta, mal ele tocou à campainha. Recebeu-o com um sorriso triste, mas gentil, abraçando-o e pousando por alguns momentos o rosto no seu ombro:

- Há quantos meses não o via…

- Passaram muitos meses. Tive muitas saudades de si, pode estar certa. Mas não foi por causa disso que lhe telefonei.

- Vá, sente-se. Conte-me o que se passa.

- Olhe, Susana, é ao mesmo tempo muito simples e muito complicado. Conhece um bom advogado em quem confie?

- Conheço vários, a começar pelo meu irmão…

- O seu irmão? Tinha-me esquecido de que é advogado. Aliás nunca o vi, mas isso não tem qualquer importância. Agora, escute-me com atenção.

- Está metido nalgum sarilho?

- Não, não, não se aflija. O problema é o seguinte: recebi algum dinheiro, aliás muito para aquilo a que estou habituado, depois de ter vendido a casa que pertenceu a minha mãe que, como sabe, morreu o ano passado. Quero depositar toda essa quantia em nome de um menino de sete anos, que vive sozinho com uma avó de poucos recursos e não tem pai nem mãe. Acha que o seu irmão pode aconselhar-me e resolver a parte jurídica da questão?

- Estou certa de que sim. Mas agora explique-me tudo melhor. Quem é o menino? É seu filho?

- Céus, infelizmente não. Chama-se Francisco, mora ao lado de mim, já sabe ler e está no segundo ano. De vez em quando ajudo-o a fazer os trabalhos de casa. Gosta de mim, é mesmo muito terno comigo, eu gosto dele como se fosse meu filho e tenho neste momento condições para lhe assegurar um futuro melhor do que aquele que lhe seria destinado se dependesse apenas da avó ou se tivesse o azar de ela morrer cedo. Está a compreender?

- Sim, acho que compreendo, mas porque é que não o vai ajudando regularmente, sem complicações jurídicas?

- Porque tenho sessenta e quatro anos e daqui até ele ser um adulto ainda falta muito tempo. Não posso fazer-lhe correr o risco de eu morrer enquanto ele é menor.

- E se você precisar do dinheiro?

- Estou certo de que não vou precisar.

- Como pode estar seguro de uma coisa dessas?

- Ficarei com dinheiro suficiente, não preciso de mais. Tenho a minha reforma como tradutor. Além disso, os direitos de autor, de vez em quando, dão-me uma ajuda para «arredondar» o orçamento. Garanto-lhe que não haverá motivos para preocupações.

- Tem a certeza?

- Absoluta.

- Bom, amanhã mesmo falo com o meu irmão e depois ele entra em contacto consigo. Acho que lhe resolverá o assunto tal como você deseja que seja resolvido, da melhor maneira possível para o miúdo. E, agora, posso perguntar-lhe o que tem feito? Já acabou o seu novo livro?

- Não, não, longe disso. Vou lendo, tomando notas, escrevendo de vez em quando. Mas estou a léguas do fim. Aliás, isso deixou de ser muito importante para mim.

- Tem saído de Lisboa, viajado?

- Não, mal saio de casa. Mas vou no Natal para Paris.

- Para Paris? Sozinho?!

- Com quem queria que fosse?

- Se não quisesse ir comigo, com alguém que também o amasse e a quem você pudesse amar mais do que me amou a mim. Paris é uma cidade que só faz sentido a dois que são capazes de se amar.

- Ouça, sou muito seu amigo, pode ficar certa de que sou mesmo muito seu amigo. Sei que lhe devo uma explicação e vou dizer-lhe, com toda a honestidade, o que dificilmente poderia dizer a outra pessoa. É simples, tão simples quanto aterrorizador: alguma coisa secou para sempre, há muitos, muitos anos, dentro de mim. Não sei bem quando, não sei bem porquê, tornei-me incapaz de amar. Ou passei a ter medo de amar, medo da perda e do luto, o efeito é o mesmo para as minhas potenciais vítimas. Nem sei se sou eu o culpado ou se fui apenas o alvo de uma estúpida conjugação de circunstâncias, desde a infância e a juventude até à maturidade. Quando procuro a razão profunda de toda essa aberração, só deparo com um mar de dúvidas, um infinito mar de dúvidas. De qualquer forma, a minha vida está a chegar ao fim. E há problemas que só o termo da vida de cada um de nós pode resolver de uma vez para sempre.

- Mas que vai fazer na sua viagem?

- É difícil explicar-lhe. Por muito estranho que isso lhe pareça, nunca deixei de pensar que, se tivesse ido para a Sorbonne aos vinte anos e vivido em Paris, a minha existência teria sido muito menos vazia. Reservei um quarto num pequeno hotel da Rue des Écoles, em pleno Quartier Latin, onde gostaria de ter habitado há quarenta anos. Vou «flanar» um pouco por aquelas ruas medievais e, como se fossem um pouco minhas, dizer-lhes ao mesmo tempo «bom-dia» e «adeus». E não quero regressar a Portugal. Nunca mais. 

- Você fala como se a sua vida fosse já terminar.

- É isso mesmo que eu sinto. Não me está a ver, agora, cheio de colesterol, de triglicéridos e de ácido úrico, partir, como o jovem Kerouac, para percorrer os Estados Unidos – que pesadelo! –, ou outro país qualquer, não é verdade? Mas ainda posso beber umas dúzias de cognacs em Paris e fumar dois ou três dos meus tabacos preferidos pelo querido cachimbo de espuma e âmbar que pertenceu a meu pai e abandonei, escondido numa gaveta, há dez ou quinze anos. O único assunto que me falta resolver é o problema do Francisco. Depois, já nada me prenderá a nada.

- Nada, nada mesmo?

- É o que sinto. Vim aqui por um motivo egoísta, para pedir à única grande amiga que tenho para me fazer um enorme favor – e é tudo.

- Eugénio, tenho tanta pena de que nós não tenhamos conseguido construir um espaço à sua medida…

- Eu também, Susana. Creia que tenho toda a pena do mundo, que é toda a pena pelo passado que tive, pelo presente que tenho e pelo futuro que não terei. Mas há factos contra os quais já não sei lutar, ou já não tenho forças para lutar. A falta de sentido da minha vida, por exemplo. Nada me faz sentido. Há tanto tempo que nada me faz sentido…

- Há qualquer coisa de teatral no que me está a dizer. Não é imaginação minha, há mesmo, não há?

- Sim, Susana. No que lhe estou a dizer há qualquer coisa de teatral, mas eu já lhe tinha confessado, há muitos meses, talvez também de uma forma teatral, que me tornei irrecuperável. Vai tratar do que lhe pedi, não vai?

- Claro que vou, isso está fora de questão.

- Obrigado. Obrigado pelo que vai fazer e, sobretudo, obrigado pelo que já tentou fazer por mim. De todo o meu coração. Continua a achar-me muito teatral?

- Não, não acho. Acho que estou a ouvir o homem por quem eu sempre desejei ser amada. E não me fica a dever mesmo nada.

- Engana-se, Susana. Acabo de lhe ficar a dever mesmo tudo o que ainda pode dever a alguém um homem liquidado.

- Um homem liquidado?

- Un uomo finito, «terrivelmente só e distante dos outros», abandonado por todos os deuses – ou pelo Deus Único, o da Bíblia, o meu, o que me ensinaram a amar na infância, o que interiorizei no mais profundo da minha angústia, o do Antigo e o do Novo Testamento. Eu, nada certo de quaisquer certezas, firme em todas as dúvidas, talvez não mais do que um mísero e inaudível «judeu errante do saber», pois qualquer frase que possa pensar, pronunciar ou escrever já se encontra, sem remissão ou revisão possível, fora de moda em todos os torneios ideológicos deste vasto mundo de fúteis jogos florais onde vivemos. Mas, acima de tudo, já só tenho saudades do que nunca vivi. Sou um ser isolado, desamparado, devastado, consternado, arrasado, desolado. Sim, é isso mesmo que me sinto: o cão de Goya.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 10 de Dezembro

 

 

Eugénio Ribeiro esperou que a criança saísse a caminho da escola. Acompanhou da janela, com o olhar, as pernitas frágeis e esguias de Francisco subindo a correr a rua muito íngreme. Esperou alguns minutos e bateu à porta da avó:

- Posso falar consigo, minha senhora?

- Com certeza, senhor Eugénio, faça o favor de entrar. Desculpe, ainda não arrumei a casa, o meu menino deixou tudo em desordem. Quer sentar-se aqui, na sala de jantar, por favor?

- Eu não me demoro. Desculpe ter vindo a esta hora, mas tinha urgência em falar consigo.

- Passou-se alguma coisa com o meu neto? Ele não se portou bem em sua casa?

- Nada disso, minha senhora, muito pelo contrário. Lembra-se de eu lhe ter pedido, há dias, o Bilhete de Identidade do Francisco?

- Lembro-me muito bem.

- Pois tenho de confessar que lhe dei uma desculpa apenas meio verdadeira, porque eu não pretendia apenas inscrevê-lo nas aulas de natação, como disse. Neste envelope tem todos os documentos de que tratei, sem sua autorização, mas que julgo muito importantes para o futuro do Francisco.

- Não compreendo, senhor Eugénio…

- Bom, vai passar a receber para o seu neto uma quantia mensal, que lhe será entregue, no escritório do meu advogado, para o ajudar em tudo aquilo de que ele necessitar, seja em matéria de estudos, de vestuário ou, até, de saúde. Caso lhe suceda alguma coisa a si – lamento, mas tive de pensar também nessa hipótese –, encontrámos o processo de garantir que o dinheiro será unicamente usado em benefício do Francisco, mesmo que ainda não tenha atingido a maioridade. Mais tarde, quando já for homem, o que ainda restar passará a pertencer-lhe e usará o que lhe deixo como muito bem entender.

- Mas, senhor Eugénio, por que faz isso?

- Esse dinheiro é meu e não me faz falta. Não quero dá-lo a mais ninguém e presumo que poderá vir a ser muito útil ao Francisco.

- Mas o senhor Eugénio vai-se embora?

- Vou para o estrangeiro e julgo que não voltarei a Portugal. Dentro do envelope está uma carta fechada para o Francisco, que gostaria que ele lesse quando fizer dezoito anos. Aliás, há uma cópia dessa mesma carta, também fechada, em poder do meu advogado. Aí explico ao seu neto tudo o que ele terá interesse em saber a meu respeito e peço-lhe perdão pelo que não vou conseguir fazer em pessoa por ele nos próximos anos. Mas pode ter a certeza de que, para mim, ele é e será, até eu morrer, como meu filho.

A avó de Francisco chorava, procurando palavras de agradecimento. Depois, num sussurro, murmurou:

- Olhe, senhor Eugénio, que Deus o abençoe!

- Obrigado. Não lhe fale de nada antes de eu me ir embora. Depois, peço-lhe o favor de lhe dizer que, esteja eu onde estiver, nunca o esquecerei. Nunca. E que ele foi o filho que eu nunca tive e que sempre desejei ter. Promete-me que fará isso?

- Prometo, senhor Eugénio. Prometo tudo o que quiser.

- Gostava que ele ficasse com os meus livros, que são o que mais estimo de todas as coisas que possuo. Já estão encaixotados e amanhã mesmo virão buscá-los para serem guardados por uma amiga minha que tem muito espaço onde os conservar. O meu advogado, que é irmão dessa senhora, sabe de tudo e entregá-los-á ao Francisco logo que ele quiser e puder arrumá-los no lugar onde viva. Diga-lhe que eu ficaria muito contente se conservasse a minha oferta.

Eugénio saiu, apertando entre as suas as mãos da pobre senhora, que não conseguia conter as lágrimas. Depois, já em casa, releu uma parte do texto da carta que tinha deixado para ser entregue a Francisco:

 

«Senti-me em falta, como se estivesse a fugir de ti ou a cometer um crime. Sabia que não te devia abandonar, tive a sensação de que te fiz o que os teus pais te fizeram, ainda que por outros motivos. Se não me faltasse coragem teria ficado a cuidar de ti, até poder, para não te causar qualquer desgosto. Mas não encontrei mais forças para suportar a minha memória, a minha angústia, o meu quotidiano. Quanto à tristeza que porventura vieste a sentir devido ao meu afastamento, não me parece que houvesse razões para que fosse muito profunda. Afinal de contas só há alguns meses entrara no teu mundo de criança e tu começaras a habituar-te à minha presença. Os laços que porventura te prendiam a mim eram ainda, felizmente, muito frágeis. Foi melhor, por isso mesmo, que eu partisse o mais depressa possível. Cheguei – ou tu chegaste – demasiado tarde. Que mágoa para mim, saber que não poderia cuidar de ti até atingires a maioridade! Sucede, porém, que a tua avó te acompanhava com uma constância e uma persistência que eu não me encontrava apto a garantir-te, para além do facto de, por mim, não possuir qualquer direito de a substituir no seu papel de tua tutora. Estou certo de que ela continuou a cuidar de ti com o carinho de sempre. Mesmo que lhe tenha sucedido o pior até tu seres adulto, tiveste a possibilidade de frequentar um bom colégio interno até atingires uma idade suficiente para decidir do teu futuro. O meu advogado previu todas as hipóteses – mesmo a da sua própria morte prematura – para que as instruções que lhe dei fossem postas em prática.

Imagino-te com os teus dezoito anos. Caminhas não sei para onde, talvez para a universidade. Teus olhos continuam tão negros como os que tinhas na infância, por vezes choras mas também és capaz de rir às gargalhadas, ocultas o teu sofrimento mas sentes-te com forças para enfrentar o mundo. Orgulho-me de ti, és e serás sempre o meu filho muito amado, corajoso porque capaz de vencer o medo, leal mesmo depois de teres sido traído, transparente para todos os que merecerem a tua confiança. Perguntas-me por que razão tenho a certeza da tua transparência? Eu respondo-te: não te posso conceber diferente do menino que conheci e amei. Cercado por gente que compete sem escrúpulos para disputar sabe-se lá que ridículos troféus, afastas-te com desprezo do jogo que eles jogam, apenas empenhado em cumprir o teu destino, que será um destino de homem de bem.

Meu filho, meu filho escolhido, sê melhor do que eu. Quase nunca estive onde deveria estar, quase sempre odiei mais do que deveria odiar, quase sempre amei menos do que deveria amar. Fui primeiro razoavelmente digno de ser um pai ficcional e depois irremediavelmente indigno de o ser, porque comecei por ansiar pela tua presença e acabei por optar pela minha ausência. Mas amei o que foste e o que serás. Fala comigo à noite, quando te deitares, caso te sobre afecto para acreditar que isso é possível e necessário. Quem sabe se te poderei ouvir, lá onde estarei, dissolvido em terra, em estrume, em espírito? Em espírito, só em espírito, mesmo, quem sabe se farás com que eu não morra completamente senão quando tu deixares de existir, porque poderás recordar um gesto meu, uma palavra minha, esta longa carta?

Arthur Schopenhauer, que foi um dos poucos filósofos que li na juventude e reli na velhice, escreveu que ‘a religião é a metafísica dos pobres’. Não creio que assim seja. Se pudesse contrapor-lhe alguma coisa, diria, antes, que a religião é a mais perene das metafísicas, a metafísica das crianças – subentendendo que em cada homem, mesmo no fim da sua vida, sempre poderemos encontrar uma centelha do menino que foi. Não sei se conservaste a recordação de uma pergunta que me fizeste, pouco antes de completares sete anos, sobre a diferença entre as fadas dos contos que já então tinhas lido e o Anjo da Guarda de que te falavam na catequese. Não te quis dizer brutalmente que elas não existiam, mas procurei deixar claro que entre o teu Anjo da Guarda e uma fada havia uma distância abissal, porque só a ele poderias recorrer quando tivesses dúvidas sobre a escolha entre o bem e o mal, entre o que deverias fazer e o que não deverias fazer em circunstâncias muito concretas da tua vida. Na altura em que leres esta carta talvez nada disto assuma qualquer importância para ti e terás porventura encontrado o teu caminho sem recurso a tais ‘infantilidades’. Eu, por mim, lembro-me bem de que nunca mais me dirigi ao meu Anjo da Guarda desde os doze ou treze anos, quando comecei a pensar que não tinha a certeza de que ele ouvisse o que lhe dizia. E fui paulatinamente substituindo o meu Anjo da Guarda por aquilo a que passei a chamar, com alguma pompa kantiana, o «imperativo categórico» ou a minha consciência moral e cívica. Como depois viria a compreender, essa consciência conservou muito do cristianismo – mesmo e talvez sobretudo depois de eu ter aderido ao marxismo.»

 

Sentiu-se de repente muito cansado, mesmo sem forças para se levantar da cadeira onde se encontrava sentado. Pensou: «Há quanto tempo não tomo os remédios? Duas semanas, três? Isso deve estar a produzir o seu efeito. Vou beber um whisky e saio. Não quero morrer aqui, neste estúpido beco sem saída onde vegeto

Calcou lentamente o tabaco no cachimbo, pegou-lhe fogo com um longo fósforo de cozinha, aspirou, concentrado, o seu aroma subtilmente doce, deixando-se envolver por uma nuvem de fumo perfumado. Depois saiu, fez sinal a um táxi, indicou-lhe como destino o Príncipe Real. Já na Rua da Escola Politécnica, desceu do carro e foi procurando os espaços que lhe eram familiares desde pouco depois dos vinte anos, «cafés» transfigurados, fachadas de prédios irreconhecíveis, vestígios de modestos restaurantes desaparecidos. Lugares cuja recordação agora amava, mas que antes lhe tinham parecido insignificantes e sem qualquer encanto. No Príncipe Real, ao olhar demoradamente o jardim, lembrou-se de que ali estudara dezenas e dezenas de vezes, a partir da Primavera, logo de manhãzinha e antes de iniciadas as aulas, com um seu companheiro de carteira no liceu, o António Augusto. Um colega da mesma turma, que encontrara na rua meses antes, atirara-lhe de chofre, indiferente, sem vestígio de emoção, respondendo a uma pergunta sua:

- O António Augusto? Esse já morreu. Disseram-me que sofria do coração. Ao que parece era coisa grave.

«Esse», dissera o outro. «Esse» morto, pronto, conversa acabada. Nada mais a dizer. Morreu, morreu mesmo. Passemos a outro assunto. «Que tal um almoço de confraternização na outra banda, para o mês que vem, com antigos colegas do liceu?» Irritado, respondera-lhe que não tinha tempo nem paciência para tais coisas e que todos os seus amigos dessa época ou estavam mortos ou já não tinham nada a ver consigo. E despedira-se sem mais explicações.

 

«A Rua da Escola Politécnica foi o meu Boulevard Saint-Michel, Fernando Pessoa o meu André Breton, Humberto Delgado o meu De Gaulle. Só ganhei uma vez, foi com Fernando Pessoa. Não foi mau, podia ter perdido as três vezes. Mas aonde raio se meteu o André Malraux do Humberto Delgado, ou será que só os vencedores têm o direito de ser acompanhados por um grande homem de cultura?»

 

Desceu até à Igreja de São Roque e entrou na Cervejaria Trindade, onde na juventude «devorara», por bravata, numa tarde, entre meia dúzia de «imperiais», as Memórias Alcoólicas de Jack London. Percorrera nas últimas semanas, com a sensação de que o fazia pela última vez, lugares que amara na infância, na adolescência, já adulto. Avistara silhuetas de mulheres à venda na sórdida noite do Bairro Alto, ex-amigos, agora figuras públicas, que transitavam cada vez mais céleres sabe-se lá para onde, gente de rosto vagamente conhecido mas que não conseguia identificar. E perguntava-se: «Meu Deus, quem me restará ainda no meio de tantos mortos e semi-vivos?»

Escolheu uma mesa junto à entrada, pediu um bife e uma «imperial», pegou no jornal que trouxera para folhear ao jantar, preparando-se para ler os títulos. Uma mão tocou-lhe no ombro, chamando-lhe a atenção para o seu imponente proprietário, um homem alto e pesado, de uns sessenta anos, voz grossa:

- Eugénio Ribeiro?

- Sim, sou eu.

- Chamo-me Pedro Ramalho, não se lembra de mim?

Era um crítico literário, homem de esquerda e antigo prisioneiro político que, em tempos, tinha escrito um texto entusiástico sobre um dos seus livros. Levantou-se para o cumprimentar e convidou-o a fazer-lhe companhia. O outro acedeu:

- Obrigado, vou só tomar um café, acabei mesmo agora de jantar na sala lá do fundo.

- Diga-me, continua na crítica literária?

- Bom, nem por isso. Sabe, os jornais diários e os semanários já não estão virados para aí. Em matéria do que chamam cultura, só lhes interessam os espectáculos, a literatura é apenas a parente pobre a quem, de vez em quando, lá se dá umas migalhinhas do precioso espaço destinado ao cinema e à música ligeira. Ou me recusam os textos ou me pagam quantias irrisórias – o que também é uma forma de me convidarem a não os incomodar mais. Sabe quanto recebi pela minha última crítica?

- Não faço a mais pequena ideia.

- Sessenta e dois euros e meio.

- Não é possível!

- Pois é como lhe digo. O equivalente a doze mil e quinhentos escudos por quase uma semana inteira de trabalho, entre a leitura do romance, as consultas de obras de referência compradas com o meu dinheiro e a redacção do texto.

- É um insulto, isso!

- Diz muito bem, é um verdadeiro insulto. Sabe, o que interessa agora aos gestores e aos directores dos jornais é, além das periódicas profissões de fé anticomunistas, o noticiário popularucho. A única coisa que os preocupa é vender cada vez mais papel impresso e aumentar o número de páginas de publicidade. Passam o tempo a dizer que não há alternativa ao capitalismo, seja ele selvagem ou pretensamente civilizado, enquanto vão devassando a intimidade das pessoas sem qualquer limite, nem mesmo o da pornografia. A esmagadora maioria caiu nisso, sobretudo desde que os actuais governantes começaram a desgovernar-nos e a partir da altura em que rebentou o escândalo da pedofilia. Até esse jornal que aí tem deixou de ser um respeitoso e acinzentado defensor da ordem estabelecida para se transformar num tablóide mexeriqueiro e ordinário. Mexeriqueiro e ordinário em tudo, até no primarismo da propaganda situacionista que faz questão de veicular todos os dias. Li-o durante as férias, no Verão: era lixo, lixo e mais lixo. Um nojo.

- Não sou grande leitor de jornais portugueses – quando se passa alguma coisa de importante no mundo prefiro ler o El País ou o Le Monde –, mas parece-me que, pelo menos no domínio da cultura, são cada vez menos sérios e informados. Quanto à política, estamos conversados: vivam os Estados Unidos, Israel, o actual governo, seja ele qual for. O resto não passa de «actividades subversivas», como se dizia antes do 25 de Abril. Mas fale-me de si. A que se dedica actualmente, além da crítica literária? 

- Sou tradutor. O senhor também traduziu muito, não traduziu?

- Ai de mim se tivesse sido apenas escritor. Ganhei muito mais como tradutor do que como escritor. Até tive um ordenado certo que, hoje, me dá direito a uma razoável reforma. Aliás, na generalidade dos casos, quem ganha verdadeiro dinheiro com as obras literárias são os editores, as distribuidoras e os livreiros – os escritores, pelo menos os que não vendem dezenas de milhares de exemplares, recebem apenas umas caridosas esmolinhas que muitas vezes nem sequer chegam para comer uma sopa todos os dias.

- Sabe, tenho a tentação de escrever um livro autobiográfico, onde conte tudo o que mais me marcou. Fiquei órfão muito cedo, passei fome, tive de me desenrascar e estudar à noite já muito perto de me tornar adulto, fui preso pela PIDE e estive uma data de anos em Peniche. Enfim, não me foi fácil, mesmo nada fácil, sobreviver. E conheci e convivi com muita gente boa, profundamente honesta – operários, camponeses, intelectuais –, que me ensinou, pelo seu exemplo, que a traição aos nossos ideais é um dos mais repugnantes crimes que podemos cometer. Não há espécie que me envergonhe e me desgoste mais como ser humano do que a dos vira-casacas, os oportunistas que começaram na esquerda e se «converteram» ao centro ou à direita, como se isso fosse a coisa mais natural do mundo. Mas não sei a quem tudo isso possa interessar, senão a alguns homens e mulheres da nossa idade. Os outros, se calhar, nunca viram nem querem ver nada diferente do que estão a viver hoje – a única coisa que lhes interessa é conquistar os seus lugares ao sol, doa a quem doer.

- Acho que tem a estrita obrigação de escrever. No seu caso é um dever cívico deixar dito o que viveu. E eu estou convencido que vem aí uma nova geração que estará muito mais perto de nós, os velhos que agora têm mais de sessenta anos e são considerados como uma espécie de estúpidos dinossauros, do que dos garotos arrogantes, vazios de generosidade e sem sonhos colectivos que nos têm vindo a governar. Essa gente que só pensa no seu bem-estar pessoal e nos seus interesses individuais não pode durar muito a mandar neste país. Outros virão a seguir – pode demorar cinco, dez, vinte anos, mas virão, estou seguro de que virão mesmo –, para pôr à prova e renovar as nossas velhas e queridas utopias. Decerto a maior parte da nossa geração já cá não estará para assistir ao que vai suceder, mas algo há-de mudar no sentido que nós desejaríamos. Escreva, peço-lhe que escreva. Os homens como o senhor não têm o direito de ficar calados.  

Despediram-se com um longo abraço. Eugénio apanhou um táxi no Largo Trindade Coelho e regressou a casa.

 

«Pretendi incutir-lhe um ânimo que já perdi. Mas a verdade é que os sobreviventes como o Pedro Ramalho são cada vez mais raros e seria um crime que não comunicassem ao século XXI o que foram obrigados a enfrentar durante o salazarismo. Ad futuram memoriam et probationem, ad perpetuam rei memoriam. Para memória e prova futuras, para perpétua memória dos factos.»

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 18 de Dezembro

 

 

Eugénio acabara de arrumar a mala e preparava-se para ler no jornal o noticiário sobre a prisão de Saddam Hussein. Vira já várias vezes, pela televisão, a imagem do ditador humilhado por alguém que poderia ser um veterinário e lhe escarafunchava a cavidade bocal com uma espátula de madeira. O tirano transformara-se, sem transição, num animal monstruoso exposto aos basbaques numa feira de gado, ou num sem-abrigo embrutecido apanhado em flagrante delito de violação dos bons costumes. A imagem, apresentada com aparente regozijo por sorridentes jornalistas dos canais de televisão, correra o mundo.

 

«Olho por olho, dente por dente. Isto é, ninguém é melhor do que ninguém ou ninguém é pior do que ninguém, pelo menos na galáxia da propaganda política. Quando chega a altura própria, são todos iguais. O ‘civilizado’ e todo-poderoso império norte-americano – já esquecido do apoio político e militar que forneceu ao Iraque e ao seu regime durante a guerra contra o Irão, da chacina dos curdos, da repressão dos xiitas – arroga-se agora o direito de pregar moral e de promover a condenação à morte do simbólico chefe dos «bárbaros» muçulmanos. Sempre recusará julgar-se a si próprio e aos seus impolutos líderes, que não se cansam de debitar do alto da cátedra banalidades sobre os direitos humanos, mesmo depois de matarem tanta gente indefesa no Afeganistão ou no Iraque e de terem criado o campo de concentração de Guantánamo para os pseudo-responsáveis pelo 11 de Setembro. Ai dos vencidos!»

 

Francisco bateu à porta e entrou, afogueado pela corrida que fizera depois de brincar na rua com os amigos. Eugénio recebeu-o com um largo sorriso e indicou-lhe a cadeira onde ele se costumava sentar, junto ao computador.

- Tens muitos trabalhos para casa, hoje?

- Só umas contas. E são «canjolas»!

- «Canjolas»?

- São canja, Eugénio, são mesmo canja.

- Está bem. Vai-as fazendo e depois mostra-mas.

A criança concentrou-se na sua tarefa, debruçada sobre o caderno aonde ia escrevendo os números, ao mesmo tempo que os lia em surdina e calculava o resultado de somas e subtracções. Eugénio observava-a com o coração apertado, abalado pela ideia de que aquela seria a última vez que cumpririam aquela doce rotina.

 

«Não estarei cá para o ajudar a enfrentar este estúpido mundo em que vivemos. É um ser sensível, alegre, comunicativo. Será que conseguirá manter-se assim por muito tempo, confrontado como vai ser com a competição desenfreada entre as pessoas, em que vale tudo, mesmo tudo, para ‘vencer na vida’, até a hipocrisia, a deslealdade, a calúnia, desde que se esmague os ‘adversários’ na luta pelo ‘êxito’? Será que tive o mérito, nas nossas breves conversas, de lhe ensinar a respeitar os outros, novos e velhos, saudáveis e doentes, brancos e negros? Será que ele tem uma noção, ainda que frágil, dos seus verdadeiros direitos e deveres? E no amor, na amizade, na solidariedade, bastará a sensibilidade para o ajudar a encontrar o caminho certo?»

 

- Veja, Eugénio, já está. Eu não dizia? Foi mesmo «canjolas».

Analisou com atenção o trabalho da criança, sem lhe encontrar erros.

- Olha, tens de ter muito cuidado com as letras e os números. Se os escreveres devagar ficam mais bem desenhados e bonitos. Mas fizeste tudo certo, estás um autêntico sábio.

Francisco manteve-se calado durante alguns momentos. Depois fitou-o com os seus grandes olhos negros e lançou-lhe:

- O Eugénio vai-se embora?

- Quem te disse isso?

- Foi a minha avó. É verdade, não é?

A um tempo contrariado pela inconfidência e aliviado por já não ter a perspectiva do remorso de não se despedir de Francisco, retorquiu-lhe:

- Sim, Francisco, é verdade. Vou-me embora. Mas quero dizer-te que nunca me esquecerei de ti. Terás sempre um lugar no meu coração.

- Não pode telefonar-me, de lá para onde vai?

- Não sei se posso. Acho que não vou poder.

- É muito longe, o sítio para onde vai?

- Sim, Francisco, é mesmo muito longe.

- Eu queria que não se fosse embora. Queria mesmo muito.

O rosto da criança, de súbito, transfigurou-se, como que envolto por uma pesada nuvem escura. Eugénio percebeu que Francisco ia começar a chorar, puxou-o para si e falou-lhe com voz lenta e suave, procurando disfarçar a emoção, enquanto o acariciava:

- Ouve, meu filho, eu sou um senhor muito triste, velho e só. Já não sei falar com ninguém, nem mesmo contigo, porque há qualquer coisa dentro de mim que não me deixa ver nada a não ser o que sinto. Tu és alegre, só tens sete anos, a tua avó e os teus amigos gostam muito de ti. A tua vida será muito feliz. Conhecerás pessoas, viajarás, trabalharás no que mais gostares. E serás bom, tenho a certeza de que serás um homem muito bom.

- Mas eu queria que o Eugénio não se fosse embora. Eu gosto muito do Eugénio, o Eugénio é o meu melhor amigo.

O adulto retirou as mãos dos ombros do menino e voltou-se de costas, para que ele não visse as lágrimas que lhe deslizavam pelas faces. Era uma das raras vezes na sua vida em que não conseguia descortinar o que deveria fazer. Como explicar àquele miúdo de sete anos, sem o magoar, que precisava de desaparecer, que preferia deixar de viver, mesmo apesar da existência dos laços fundos que o prendiam a ele, o ser que tanto amava e que passara a considerar como seu filho?

 - Vou contar-te uma pequena história. Era uma vez um senhor que gostava muito de duas pessoas, só gostava mesmo muito de duas pessoas. Um dia, uma dessas pessoas morreu. Passados muitos anos, descobriu que a outra pessoa, a que não tinha morrido, afinal não gostava tanto dele quanto tinha pensado. Então o senhor ficou muito doente, mesmo muito doente, tão doente que já nem conseguia sorrir. Foi nessa altura que conheceu um menino de quem gostou muito, mesmo muito, tanto que deixou de estar tão triste como antes e às vezes era capaz de voltar a sorrir. Quando falava com ele, ria-se, brincava e chegava a não se lembrar de tudo o que lhe tinha acontecido e o tinha feito sentir-se doente. Mas, noutros momentos, talvez sobretudo à noite, quando se deitava e tinha muitos pesadelos, só se recordava outra vez das duas pessoas de quem tinha gostado muito e que nunca mais poderia voltar a ver.

Eugénio fez uma pausa, procurando as palavras. A criança escutara-o sem pestanejar, concentrada no que ele dizia. Não, não podia ferir aquele ser frágil, que o amava e que confiava nele talvez como em mais ninguém. E também não tinha o direito de lhe mentir.

Francisco quebrou o silêncio para lhe perguntar:

- Mas essas pessoas estavam no Céu?

- Não sei. Talvez uma delas estivesse. A outra só estava num lugar aonde o senhor não queria ir.

- Porquê?

- Porque achava que essa pessoa de quem gostava muito já não gostava dele.

- E depois?

- Depois o senhor pensou que, como estava muito triste e sentia uma grande vontade de chorar, apesar de gostar muito do menino com quem ria e brincava, talvez fosse melhor partir para muito longe e morrer.

- E ir para o Céu?

- O senhor não sabia se Jesus o deixaria entrar no Céu.

- Então porque é que queria morrer?

- Talvez só porque já tinha vivido muitos anos e percebia que nunca mais deixaria de se sentir triste.

- É por isso que o Eugénio se vai embora?

- Sim, meu filho, é por isso que eu me vou embora.

- E quando eu for velho e morrer vejo a minha mãe e o Eugénio no Céu?

- Se o teu Jesus quiser.

- O meu Jesus quer, ele gosta muito de todos nós.

O homem pegou na criança ao colo e abraçou-a com uma imensa ternura. Depois pousou-a no chão, fez-lhe uma última festa e acompanhou-a até à porta, que fechou sem ruído. Durante alguns minutos, deixou que as lágrimas lhe escorressem pelas faces, enquanto uma inesperada serenidade se apoderava de si. Lavou a cara com água fria, enxugou-a, estendeu-se na cama e pensou: «Há um telefonema que não posso deixar de fazer ainda hoje. Mas será, sem dúvida, muito mais fácil do que este diálogo.»

Adormeceu e teve um sonho sem trevas, sem angústia, sem medos. Estava sentado na sala de uma casa, a escrever, ouvia a voz do menino, que brincava não muito longe de si, mas não o via. Talvez ele se encontrasse num pequeno jardim adstrito à residência. Mas havia uma presença difícil de identificar naquela casa, uma suave presença, sem dúvida uma presença feminina sem rosto nem idade. Sentia que uma mulher por quem era amado velava por si, povoando toda a habitação, acompanhando-o e impregnando com a sua serenidade tudo o que escrevia. De súbito, a criança entrava na sala onde ele trabalhava, saltava-lhe para o colo, queria ler o texto que ocupava o ecrã do computador. Ia soletrando palavras, palavras e mais palavras, sem por vezes compreender o seu significado. Explicava-lhe o que ela dizia não compreender, apontando com o dedo o termo obscuro, era escutado com uma imensa atenção e tratava-o por filho. No entanto sabia que não era seu pai pelo sangue, mas que, em espírito, o era. E compreendia de súbito que estava no lugar certo, com os seres humanos certos, na hora certa – sabia agora, com toda a certeza, que a sua vida, prestes a terminar, tinha adquirido finalmente um sentido.

Abriu os olhos, olhou em redor, sorriu num esgar de tristeza.

 

 «Sonhos, sonhos, sonhos. Tantos sonhos que tive, mesmo acordado. Tudo se volatilizou, nada deteve o inimaginável choque com a vida dos outros, a brutalidade do real tudo foi espezinhando à sua volta, tudo, mesmo os afectos dos que alguma vez eu quis acompanhar e amar.»

 

Levantou-se, pegou no telefone e marcou o número de Susana.

- Sou eu. Não sabia se a ia encontrar a esta hora.

- Estava à espera que me telefonasse. Sempre parte amanhã?        

- Sim, amanhã, muito cedo.

- Não quer que o vá levar ao aeroporto?

- Não, que ideia! Há montes de táxis livres às sete horas, mesmo que esteja a chover.

- Sempre vai para o tal hotel de que me falou, na Rue des Écoles?

- Sim, está reservado, até já tenho o voucher.

- Já que você insiste em não comprar um telemóvel, quer ao menos dar-me o número de telefone do hotel?

- Com certeza. Espere só um momento.

Levantou-se, foi buscar o voucher e leu pausadamente os oito algarismos.

- Bom, pelo menos fico a saber para onde posso falar consigo. Pela última vez: não posso oferecer-lhe um telemóvel?

- Não, está proibida. Cada vez que essa coisa diabólica começasse a tocar apanharia um susto, como se fosse receber a notícia da morte de alguém que estimasse. Não percebo nada de telemóveis, nem de computadores, nem sequer sei distinguir um hardware de um software. Mas quase todos os dias tenho necessidade de voltar a escutar os longos monólogos interiores do Unamuno, do Kierkegaard, até do Kant. Será que alguma vez poderá admitir que existe um miligrama de verdadeiro conhecimento no interior da minha neurose?

- Neurose?

- Sim, neurose. Essa que me faz ser, dia sim, dia não, um poeta angustiado e um devorador de lagostins, essa que me manda suicidar e me incita a acariciar o seu corpo, essa que me deixa entregar o Francisco às feras e protegê-lo até quando ele puder ser protegido. Será que alguma vez quererá saber quem eu na verdade sou?

- Quantas vezes preciso de lhe dizer que estou sempre à sua espera?

- Susana, já tivemos essa conversa. Há coisas sem solução. Nada posso fazer.

- Claro que pode, mas o Eugénio é o maior preguiçoso da Península Ibérica. Garanto-lhe que ainda tem uma vida inteira à sua frente. Só que não quer acreditar em mim, não quer mesmo acreditar em nada que seja deste mundo. Essa é a verdade nua e crua. Acaba por lhe ser mais cómodo cruzar os braços até que a morte venha do que construir o que ainda pode construir – que é muito, eu sei que é mesmo muito. Percebeu?

- Percebi que não desiste de ser minha amiga.

- Ainda não percebeu que não sou apenas sua amiga e que quero voltar a ser muito mais do que isso?

- Susana, eu nunca me esqueci de nada do que se passou entre nós.

- É melhor que nunca se esqueça de nada do que se passa, hoje, entre nós. O que se passou já se passou, agora só me interessam o presente e o futuro. Quando é que me será permitido não ser obrigada a fazer o papel de quem anda a tentar conquistá-lo ou reconquistá-lo?

- Ouça, Susana. Tive hoje uma conversa difícil, mesmo muito difícil, a mais difícil de toda a minha vida, com o Francisco. Fui obrigado a despedir-me dele, fiquei exausto. Não quero despedir-me de si. Somos dois adultos, ambos temos a noção de que isso não faria qualquer sentido.

- Você sabe tão bem quanto eu o disparate que está a dizer, mas não vou insistir mais para que saia desse maldito casulo em que resolveu esconder-se até ao último dia da sua vida. Está a transformar-se num insuportável misantropo.

- A minha misantropia tem boas razões de ser. Nunca lhe ocorreu que há misantropos que preferem estar sós apenas porque não podem ou não querem conviver com a desumanidade ou a mesquinhez ou a hostilidade dos outros?

- De quem está a falar?

- Não de si, mas de dezenas e dezenas de pessoas que fui conhecendo ao longo da vida. Fiquei farto de estar com quem não devia estar. Escolhi isolar-me dessa gente e não a ver mais.

- Só uma última coisa. Está mesmo a ouvir-me, a ouvir-me bem?

- Estou a ouvi-la com toda a atenção.

- É só isto: não de-sis-to de si. Ouviu bem? Não de-sis-to de si. Entendeu mesmo?

- Entendi tudo, Susana.

- Agora não diga mais nada. Desligue só, por favor. Chegou a minha vez de estar exausta.

Eugénio cortou a chamada, sem ruído. Voltou a guardar o voucher junto do bilhete de avião, deitou-se e murmurou: «Obrigado, Susana, por me teres oferecido hoje a insólita sensação de que ainda sou digno de ser amado

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 23 de Dezembro

 

 

Saboreou as ostras e o steak au poivre. Depois, bebido até à última gota o suave Sancerre aconselhado pelo escanção, saiu do restaurante e olhou para o edifício da Bolsa. Leu, atónito, quase sem acreditar bem no que via, em pleno frontão do mostrengo onde tudo estivera desde sempre submetido às leis da oferta e da procura: Liberté, Égalité, Fraternité. A Bolsa, um mercado de valores, paladina da Liberdade, da Igualdade e da Fraternidade? Riu-se alto, ninguém o ouviu. Os raros transeuntes caminhavam com rapidez, fustigados pela chuva miudinha que caíra durante todo o dia em Paris. Entrou na Rue Feydeau, caminhou até ao metropolitano, procurou com todas as cautelas o itinerário para a estação Cardinal Lemoine, a mais próxima do seu hotel na Rue des Écoles. Chegado ao quarto, ligado o aquecimento, deitou-se sobre a cama, um copo de Calvados entre as mãos. E fechou os olhos, numa doce e inesperada beatitude.

 

«Sou um velho livre, mas nunca fui um jovem livre. Mesmo quando vim aqui pela primeira vez, sabia que não poderia ficar. Vi filmes e comprei livros proibidos no bafiento feudo de Salazar, desdobrei e li ostensivamente o L’Humanité em pleno Boulevard Saint-Michel – o que não era assim tão cómodo quanto tinha imaginado na Rua da Escola Politécnica, porque a vacina contra os preconceitos anticomunistas, afinal de contas, nunca foi aplicada com êxito à maioria dos parisienses. Regressei com um misterioso pacote de documentos ‘subversivos’ que depois fui entregar perto do Largo da Estrela, em morada que tinha decorado e esqueci para sempre, a um estudante de Medicina que não conhecia e de quem nunca mais ouvi falar. Agora já não quero ver mais filmes, não me apetece comprar mais livros, não me faz sentido transportar, seja para onde for, mais apelos clandestinos à resistência ao fascismo ou ao capitalismo. Ando quilómetros e quilómetros pelas avenidas e pelas mais estreitas ruelas de Paris, atravesso uma a uma as pontes que ligam as margens do Sena, acabo sempre por vir almoçar, ou jantar, ou apenas beber um copo, na Rue Grégoire de Tours, na Rue de la Huchette, na Rue de la Harpe. Porquê? Porque no fundo gosto é de Paris mas não gosto mesmo nada dos parisienses. Gosto destes estrangeiros de todos os continentes que, como eu, procuram aqui, nem que seja por uma semana, o seu lar de eleição, onde consideram que deviam ter nascido – mas não dos indígenas que se encontram instalados nesta cidade por um duvidoso direito hereditário. E não sou capaz de encarar com simpatia mesmo aqueles imberbes gauleses que compram Espinosa, Hegel e Bergson aos quilos, com o dinheiro dos papás e das mamãs, na J. Vrin – mas que se calhar nem os lerão ou os lerão com um tédio infinito, só para passar o ano e serem licenciados, ou mestres, ou catedráticos de filosofia. Os seres humanos mais interessantes que sempre encontrei aqui são espanhóis, asiáticos, africanos, latino-americanos – nada têm a ver com Astérix e Obélix. Gente bem mais digna de Descartes e Pascal, de Rousseau e Voltaire, de Rimbaud e Lautréamont, do que todos os pedantes semi-analfabetos que se julgam donos e senhores da cultura francesa só porque nasceram ou vivem em Paris.»

 

Numa das suas deambulações, quando se encontrava perto da Madeleine, encaminhara-se na direcção da Gare Saint-Lazare e subira, um pouco ofegante, a íngreme Rue de Amsterdam, rumo a Montmartre. Andara um pouco ao acaso, sem estar consciente do que procurava, mas tinha a noção de que os seus passos o conduziam por lugares já conhecidos, até familiares. Na Rue de Bruxelles deparou com a casa onde Zola morrera, sabe-se lá se assassinado. Uma lápide lembrava que, no interior daquelas paredes, fora escrito o celebérrimo «J’accuse». Entrou num pequeno bistrot, pediu um Calvados e tomou algumas notas:

 

«Segundo li algures, o diário L’Aurore, quando, em finais do século XIX, publicou, a toda a largura da sua primeira página, o incendiário texto de Zola, vendeu trezentos mil exemplares. Foi um acto de coragem que arrastou consigo intelectuais franceses de formação tão diferente como Anatole France, Charles Péguy ou Marcel Proust, bem como grande parte da opinião pública nacional e internacional. Mesmo em Espanha, Blasco Ibañez conseguiu trinta e duas mil assinaturas de apoio ao autor do que então passou a ser tido como o manifesto dos ‘dreyfusards’. O resultado foi quase um ano de exílio em Inglaterra – a França não se mostrou digna do grande homem que ousou desafiar a hipocrisia dos responsáveis pelas suas instituições e o antijudaísmo da sua católica burguesia bem-pensante. Mas Zola não foi só isso, para mim é hoje, sobretudo, aquele humanista que se debruçou sobre o «caso» de Lourdes e conseguiu detectar, sob o manto da mais ingénua das superstições, os sofrimentos da ‘pobre humanidade doente’ e desiludida da ciência que pedia a Maria o milagre da cura. Há poucos anos, quando decidi ir a Fátima para observar o que de facto se passava durante as peregrinações do 13 de Maio, tive a certeza de que só um olhar fraterno lançado sobre os homens e mulheres que lá se encontravam poderia entender o que de genuíno ali se jogava – que era bem mais do que o simples aproveitamento por algum clero da dor e da esperança dos que oravam, porque se confundia com a própria imagem de Job na sua ingénua busca de uma maternal intervenção capaz de aplacar, ainda que por uma fracção de segundo, o desespero humano.»

      

De súbito, compreendeu o motivo dos seus passos. Fora ali perto, muito perto, que Sá-Carneiro se suicidara, engolira a estricnina que o fizera de vez esquecer a dor de viver. Longe de qualquer deus, dos amigos e de Portugal, o poeta deixara num daqueles prédios a marca trágica da sua recusa de suportar o insuportável, de remexer ainda mais nas feridas abertas na própria carne por uma sensibilidade impossível de controlar, do infinito tédio de existir. Ali, no número 29 da Rue Victor-Massé, à porta do Hôtel des Artistes, leu a inscrição: «Le poète portugais Mário de Sá Carneiro (1890-1916) habitat dans cette maison et y mourut le 26 Avril 1916.» Fixou: «y mourut». Apenas meia verdade, para não afugentar os eventuais hóspedes do Hotel des Artistes. A verdade comercial possível.              

Abandonou Montmartre e desceu até à zona da Ópera. Depois, na Rue Daunou, procurou o Harry’s Bar, entrou e sentou-se numa mesa perto do balcão. Ali, à sombra tutelar de Hemingway e Fitzgerald, pediu um e mais outro e um último gin tónico, a sua bebida predilecta mas há tantos anos abandonada por ordem do cardiologista. Apeteceu-lhe dirigir uma segunda carta a Francisco, não ao menino de sete anos que deixara em Lisboa, mas outra vez ao futuro jovem adulto, talvez porque ele, Eugénio Ribeiro, sentia cada vez mais que não tinha capacidade de transmitir em linguagem inteligível pela criança o que gostaria de lhe fazer saber. Tirou do bolso um pequeno bloco de apontamentos, acendeu o cachimbo e escreveu:

 

«Meu querido filho. Fizeste dezoito anos e partes sozinho. É a tua primeira viagem ao estrangeiro, forçoso que a faças a sós contigo próprio, porque vais ver e amar a cidade mágica, Paris. Não percas tempo e leva todo o dinheiro que for sensato levar. Escolhe um quarto banhado de luz num pequeno hotel algures nas imediações da Sorbonne. Depois, pousa a mala, veste-te com esmero, porque vais visitar uma das ilhas encantadas do meu antigo sonho, percorrer sem pressa as suas ruas, olhar com íntimo respeito a cultura que se desprende dos seus edifícios, abraçar sem medida cada boulevard, cada praça, cada esplanada onde tomarás café bien serré, cognac, talvez o marc du patron. Esse bebe-o devagar, toda a atenção concentrada no novo sabor que te é proporcionado. Como se sorvesses a terra prometida a pequenos e deliciados goles, o tempo infinito à tua frente.

Não é uma cerveja no inferno, tu és um diabo no paraíso. Levas a cabeça cheia de mitos. Talvez o de Nadja. Não a procures à beira do Sena, junto aos bouquinistes, que ela não habita por essas paragens. A verdadeira Nadja não vive em parte alguma, está apenas na tua cabeça, tal como ocupou sem tréguas a imaginação de André Breton. Mas essa é outra viagem, a que ele cumpriu e que poderás fazer ao interior de ti próprio.

Por agora sê prosaico. Passeia-te, conjuga o verbo “flanar” nos Boulevards Saint-Michel e Saint-Germain, opta pelo hedonismo. Tens direito ao hedonismo, todos temos, de vez em quando, o pleno direito de esquecer a melancolia de viver em Portugal. Prova as ostras, os escargots, o steak-au-poivre. Pede a quem te servir que te ajude a escolher os vinhos. É mais seguro, a não ser que um velho amigo te tenha ensinado, antes de partires, o bê-á-bá da enologia francesa. Aliás, se estiveres interessado no tema, descobrirás sem esforço um pequeno livro de bolso que te servirá de guia durante as tuas mais arrojadas libações. Nunca feches a refeição com um whisky: seria uma ofensa às esplendorosas uvas francesas e aos admiráveis digestivos que o engenho humano lhes fez gerar.

Não esquecerás os museus e os monumentos. Toma um banho de impressionistas, entra em Notre-Dame num fim de tarde e agradece a Deus, se Ele te der ânimo para tanto, o privilégio de ver a catedral, a grande heroína de Victor Hugo, com seus vitrais e suas gárgulas. Percorre com atenção as livrarias e arranja boas edições anotadas de Montaigne e de Pascal. Não tentes lê-los agora: a tua cabeça está cheia de outras coisas e no regresso terás a vida inteira para conhecer com maior profundidade os ‘Ensaios’ e os ‘Pensamentos’. Hoje estás apenas a namorar a cidade deslumbrante, compras alguns bouquins, deixa-los dentro da mala, no hotel, e voltas à Praça da Sorbonne, onde folheias um jornal, escreves uma pequena carta a um amigo ou a uma amiga, olhas e vês quem está e quem passa. Por vezes, talvez chegues à conclusão de que Paris seria bem melhor sem a maior parte dos parisienses: mas, neste lugar, não. Eles e elas têm quase os teus dezoito anos, são bem mais joviais do que os senhores e as senhoras de meia-idade, menos incorrigivelmente franceses, isto é, por enquanto só um tudo-nada arrogantes. De resto, nunca te esqueças de que Paris é a tua cidade, talvez muito mais tua do que da maioria deles, porque tu amas os impressionistas, Montaigne e Pascal. E, acima de tudo, a mítica Nadja.

Fixarás os nomes de algumas estações de metro e hás-de recordá-los como velhos conhecidos: Strasbourg-Saint Dennis, Denfert-Rochereau, Odéon, Montparnasse-Bienvenue, Opéra, Porte d’Orléans, Porte de Clignancourt, La Motte Picquet-Grenelle. Deitarás um olhar curioso ao Café de Flore, ao Deux Magots, à Brasserie Lipp. Sartre observa-te, Camus acompanha-te, o Castor espia-te e lembra-te a impiedade da memória dos outros a nosso respeito. Depois, num assomo de gulodice, irás a um Bistro Romain, comerás salmão fumado, carpaccio e mousse de chocolate à volonté, como à volonté beberás caudalosos rios de grappa servida numa imensa garrafa revestida de gelo. Noite adentro, quando regressares ao hotel, talvez sejas abordado por uma solícita mademoiselle alourada que te perguntará se procuras companhia. Dirás, sorrindo, que é demasiado tarde, e agradecerás a gentil sugestão vinda de um mundo tenebroso. Dormirás como um anjo, podes estar certo.

Se só puderes ficar uma semana, fica então apenas uma semana. Mas se tiveres a possibilidade de prolongar a tua estada, não regresses logo a Lisboa. Agarra com as duas mãos mais um pedaço de eternidade. Verás, depois, quando chegares ao teu Outono, trinta ou quarenta anos mais tarde, que a peregrinação a Paris valeu bem a pena. Valeu bem a pena porque, ao lado dos fantasmas de Cézanne e Renoir, de Rodin e Camille Claudel, de Heloísa e Abelardo – estes dois últimos finalmente em comunhão de leito e habitação, no Père Lachaise –, a tua alma não podia ser, não foi mesmo, pequena.

 

P. S. - Frequentarás também – caso tudo o que hoje vejo ainda exista, caso tudo o que eu amei ainda não tenha desaparecido, caso tudo o que vivi ainda tenha algum sentido para ti – a Livraria La Hune, aberta até altas horas da noite, irás três ou quatro vezes ao Museu d’Orsay (Van Gogh, Gauguin, Manet, Monet, Sisley, Millet, Toulouse-Lautrec, Pissarro, Signac, além dos já lembrados Cézanne e Renoir), preguiçarás ao fim da tarde no Harry’s Bar, onde o respeito devido ao suicida de Ketchum te ordenará que tudo bebas, menos Coca-Cola sem alguns decilitros de rum.»

    

Quando acabou de escrever, Eugénio terminara o seu terceiro gin tónico. Pagou a conta e encaminhou-se para a estação de metro da Ópera, com uma pergunta que já procurara afastar mas que, de súbito, o passara a obcecar: «Porque é que eu deixei de comprar livros? Será que tenho assim uma tão grande certeza de que dentro de dias já estarei morto? Porque é que nem sequer peguei nos Diários de Musil que vi na Livraria Dédale, quase em frente do meu hotel da Rue des Écoles, porque é que nem me quero dar o tempo suficiente para os ler, porquê esta irreprimível pressa de me ir embora daqui e de todo o lado?»

Chegado ao hotel, o recepcionista estendeu-lhe um papel, mal o viu ultrapassar a porta de entrada:

- Tem uma mensagem, senhor. Disseram que é urgente.

Leu: «Madame Susana ligou. Pede para lhe telefonar com urgência.» Entrou no quarto, desembaraçou-se do sobretudo e do cachecol, sentou-se na cama e pegou no telefone:

- Susana?

- Sim, Eugénio. Já liguei várias vezes para aí.

- Algum problema com o Francisco?

- Não, não, que ideia! O Francisco está óptimo, ainda ontem fui lá a casa deixar-lhe um presente. Levei-lhe um Game Boy, tenho a certeza de que vai ficar radiante quando abrir o embrulho, na Noite de Natal. Os meus sobrinhos não querem outra coisa.

- Um Game Boy? Que é isso?

- Em que mundo vive você? Não sabe o que é um Game Boy?

- Não faço a mínima ideia.

- Deixe, eu depois explico-lhe o que é. Mas não foi por isso que lhe telefonei. Queria convidá-lo para jantar comigo amanhã. Está livre?

- Estou livre?! Já se esqueceu de que me encontro a dois mil quilómetros de distância de si?

- Hoje, sim, amanhã, não. Chego a Paris a meio da tarde e vou para casa de uma amiga. Às nove horas no restaurante Le Grand Café, está bem para si?

- Atenção, não sei se conseguiremos lugar, na véspera de Natal, num sítio tão procurado como esse, em pleno Boulevard des Capucines.

- Já marquei mesa para dois, pelo telefone – e agora vou confirmar por e-mail. Fica combinado, então?

- Sim, está combinado. Mas explique-me o que se passa na sua cabeça. Que lhe deu para vir a Paris numa altura destas?

- Além de não saber o que é um Game Boy, você não percebe mesmo nada de mim, pois não?

- Bom, então amanhã explica-me tudo ao jantar. 

Desligou e segurou a cabeça entre as mãos. Um castelo de cartas ruíra dentro de si, como se tivesse perdido a única das suas certezas.

 

«Não sei para onde vou. Não sei sobretudo se tenho o direito de optar por desaparecer já das vidas do Francisco e da Susana. Afinal, ainda não os consegui expulsar da minha via crucis.»

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 24/25 de Dezembro

 

 

Acordou tarde, com a cabeça pesada. Estendeu a mão para a mesa-de-cabeceira, pegou no copo com água e engoliu o ansiolítico. Depois de um prolongado banho muito quente, fez a barba, vestiu-se e preparou-se para sair. De repente, lembrou-se do jantar combinado com Susana e praguejou em voz alta. «Nem sequer trouxe uma gravata, para ir ao raio do restaurante do Boulevard des Capucines. Numa noite destas, deve ser socialmente grave. Enfim, diabos levem todos os malditos pedantes que lá estiverem!» 

Saiu do hotel e atravessou a rua, na direcção da Librairie Dédale. Entrou e procurou, à direita, a poucos metros da porta, onde dias antes deparara com eles, os dois volumes da edição francesa dos Diários de Robert Musil. Pegou-lhes sem hesitar, dirigiu-se ao pequeno balcão e pagou. Depois encaminhou-se para o bistro onde já se habituara a tomar o pequeno-almoço e pediu um crème e um croissant, enquanto folheava os livros que adquirira, detendo-se aqui e ali para ler uma ou outra frase. Percorreu a introdução durante mais de uma hora, imerso no texto, alheado de tudo e de todos, beneficiando da civilizada tolerância instituída no Quartier Latin para com estudantes e «maníacos» da leitura ou da escrita. Quando se levantou para sair, percebeu que algo inesperado se passara consigo:

 

«Há quanto tempo não era capaz de me concentrar no que lia? Decerto que há muitas, muitas semanas, senão meses. Que me aconteceu, assim, de repente?»

 

Voltou ao hotel para depositar os Diários no quarto e percorreu a Rue des Écoles até ao Boulevard Saint-Michel, que desceu na direcção do Sena. Entrou na Rue da la Huchette, foi olhando distraidamente os seus pequenos restaurantes e acabou por entrar num que já conhecia, àquela hora ainda com poucos clientes. Escolheu uma mesa de onde poderia observar o movimento dos transeuntes e pediu uma soupe aux oignons, o já quase inevitável steak au poivre saignant e um pichet de rouge. Depois, enquanto esperava, registou algumas notas no bloco de apontamentos:

 

«Não tomo os medicamentos que o cardiologista me receitou há muito tempo, pelo menos o suficiente para já ter sentido dores ou, mesmo, sofrido um ataque cardíaco. O problema é que ninguém me pode garantir que não vou ficar inválido em vez de morrer, como de facto desejaria, de uma forma não violenta. Se engolisse um frasco inteiro de comprimidos de nitroglicerina ou de ansiolíticos talvez fosse mais seguro. Por outro lado, o problema do Francisco preocupa-me cada vez mais, embora saiba que nada posso fazer para modificar a realidade. Mesmo que tivesse a possibilidade de o adoptar – e juridicamente não tenho, mesmo – não saberia como conviver com ele no quotidiano, de manhã à noite. O meu “autismo” impedir-me-ia de estar atento aos seus movimentos, à sua necessidade de diálogo, mesmo aos seus problemas mais prosaicos, como o de comer a horas certas, vestir as roupas adequadas a cada estação ou circunstância, levantar-se cedo para ir à escola. Nunca poderia substituir a avó no que ela tem sido para ele, se calhar nem mesmo do ponto de vista afectivo. Já é tarde, demasiado tarde, para recuar, mas viverei até aos últimos momentos com a mágoa de me ter afastado do filho que escolhi e gostaria de acompanhar até tão tarde quanto possível. E a Susana? Fugi sem ter lutado por esgotar todas as possibilidades de construirmos uma vida a dois, fosse qual fosse o modelo, na mesma casa ou em casas diferentes, na mesma cidade ou em cidades diferentes, no mesmo país ou em países diferentes. Fugi, não há outra palavra, fugi de tudo e de todos, fechei-me na minha concha. Mas estou longe de ter alcançado qualquer espécie de serenidade: continuo a beber de mais, vagueio pela cidade, muitas vezes sem conseguir ver aquilo para que olho, sou perseguido pelos mesmos fantasmas que antes me perseguiam.»

 

Comeu distraído, com a usual lentidão. No fim pediu um marc – teve de soletrar a palavra duas vezes para ser compreendido e, no entanto, sabia que nunca fizera ouvir a última letra, dissera “marr” como quem fala do mar em língua portuguesa e carrega um pouco, apenas ligeiramente, nos «erres» –, e o cérebro continuou afastado do mundo exterior, impedindo-o de observar a rua, o movimento, os rostos dos outros.

 

«Perdi a Paula, uma filha e os ideais políticos – sim, os ideais políticos, como raio hei-de chamar senão ‘ideais políticos’ àquela ânsia de liberdade e de igualdade, nunca uma sem a outra, ligadas pelo coração ou pela cabeça como duas gémeas siamesas –, perdi até a possibilidade de amar, porque amar outra vez seria necessariamente arriscar-me a perder quem amasse, fosse uma mulher ou um filho. A verdade é que sou capaz de arriscar tudo, mesmo tudo, menos a perda de mais um ser amado. Sou portanto um cobarde que não quer correr qualquer risco e o meu medo nem sequer é bem o de amar, é o de ver desaparecer a pessoa ou as pessoas que amo. Mas ninguém se atreverá a atribuir-me essa coisa que não sei qual filósofo, talvez Max Scheler, chamou ‘frivolidade metafísica’. Em todos os que amo já só sou capaz de pressentir ou antever senão o revoltante e omnipresente insulto da morte inevitável – que nunca, mas nunca, deixará de me indignar.»

 

Regressou ao hotel e deitou-se. O calor do quarto adormeceu-o quase de imediato. Quando acordou, sobressaltado, apercebeu-se de que a noite já caíra sobre Paris. Acendeu a luz, olhou o relógio: eram sete horas, tempo de sobra para o jantar com Susana. Tomou um longo banho de imersão, vestiu-se e saiu para a Rue des Écoles. Encaminhou-se para a estação de metro Jussieu e desceu na Opéra. Olhou o relógio: pouco passava das oito. Procurou um bistro e sentou-se ao balcão para tomar um aperitivo. Agora sentia-se leve, distendido, confortável. Pensou:

 

«Não há razões para me preocupar. Trata-se apenas de mais um jantar com a Susana. Curioso é que o meu estado de espírito se altera 180 graus de dia para dia, de hora para hora, de momento para momento. Os senhores da psiquiatria, que sabem tudo sobre depressões endógenas e depressões reactivas, talvez tivessem dúvidas em integrar-me apenas numa destas duas categorias. Feitas as contas, independentemente de tudo o que me sucedeu, talvez já tenho nascido assim mesmo, sem jeito para viver.»

 

Chegou dez minutos antes da hora e esperou à porta uns breves instantes, depois de verificar que Susana ainda não se encontrava no restaurante. Quando ela apareceu, de táxi, vestindo um longo casaco comprido, e o abraçou, deixando deslizar o rosto sob os seus lábios, sentiu-se sorrir. Com um braço no ombro dela, indicou-lhe a porta:

- Vamos entrar?

- Já. Tenho uma fome incrível e estou muito feliz por estar aqui consigo.

- Eu também.

- Quer dizer que também tem uma fome incrível?

- Quero dizer que também me sinto muito feliz por estar aqui consigo.

- Isso é mesmo verdade?

- Nunca lhe menti, Susana.

Sentados a uma mesa do primeiro andar, concentraram-se na escolha da refeição. Chegaram a acordo: escargots, chapon com castanhas, uma garrafa de Bordeaux. Depois, ela interrogou-o, sem rodeios:

- Já percebeu por que motivo estou aqui, hoje?

- Garanto-lhe que não sei.

- Tornou-se inconsciente?

- Acho que não. Mas continuo a não perceber por que veio a Paris jantar comigo.

- Adivinhe.

- Não vou por aí. Ou acha que me considero suficientemente importante para julgar que alguém viaja de Lisboa até aqui de propósito para jantar comigo?

- Eu vim de Lisboa até Paris de propósito para jantar consigo. Está esclarecido?

A voz dela subira de tom. Eugénio, de repente, num gesto quase instintivo, pegou-lhe na mão, que ela abandonara sobre a mesa:

- Ouça. Paris é a minha última cidade. Recebê-la-ei aqui com todo o prazer e com toda a ternura, sempre que quiser ver-me. Mas garanto-lhe que não sou boa companhia.

- Não é boa companhia?

- Não. Quer saber o que faço aqui?

- Diga.

- Acho que estou apenas à espera do fim. Como dizia o Malte Laurids Brigge, «é aqui que se morre».

- E você quer morrer aqui?

- Exacto.

- Sozinho?

- Sim, sozinho. Sozinho como um cão. Agora vamos saborear os escargots. Bem os merecemos.

- Não sei se você merece meia dúzia de escargots.

Riram ao mesmo tempo. Talvez porque, de súbito, se perturbassem, talvez porque nascera ou renascera uma misteriosa cumplicidade entre ambos, talvez porque tivessem compreendido que aquele jantar constituía um momento especial do seu percurso comum e não quisessem lançar a mínima sombra sobre o encontro que agora lhes era concedido, sabe-se lá por que benévolos ou misericordiosos deuses de qual olimpo.

- Quer que lhe dê notícias do Francisco?

- Tenho pensado muito nele. Mesmo muito. Até me dói.

- Pergunta muito por si. Mas eu não posso explicar-lhe o que se passa, pois não?

- Pode dizer-lhe que o amo como a um filho, como nunca amei nenhum filho.

- E acha que ele percebe o que você lhe quer dar a entender?

- Perceberá mais tarde. Tenho a certeza de que perceberá. É tão simples…

- Simples?

- Sim, acho que só há pouco tempo entendi isso, mas é mesmo muito simples. Para ser breve: não quero perder mais ninguém, não me quero arriscar a perder mais ninguém, já perdi tudo o que tinha a perder. Fica bem claro, assim?

- Fica claro que já desperdiçou trinta anos de vida e que também quer desperdiçar os que ainda lhe restam. Fica claro que teve o Francisco e o abandonou, que me teve a mim e me deixou ficar em Lisboa. Fica claro que teve um livro para escrever, talvez o mais importante da sua carreira – e desistiu de o escrever. É só isso que, na realidade, fica bem claro.

- Está visto que já sabe tudo a meu respeito, desde a infância até hoje. Você acha que sabe tudo sobre o meu medo do vazio, de conceder a mais alguém, nem que seja a uma criança de sete anos, a possibilidade de morrer dentro ou fora de mim.

- Não, Eugénio, sei muito bem que não sei tudo sobre si, mas sei também que vim aqui hoje ter consigo – claro que estou em Paris só por sua causa, será que ainda tem alguma dúvida a esse respeito? – para lhe pedir que viva. Viva a sua vida como quiser, viva-a seja como for, mas não renuncie a vivê-la. Escrevendo ou não escrevendo, com o Francisco ou sem o Francisco, comigo ou sem mim. Mas que a viva, porque você merece viver, porque o Francisco e eu merecemos que você viva, porque o seu livro adiado também merece que você se mantenha vivo para o escrever. Preciso de saber que você está vivo e que quer viver. Ufa! Nem a enfermeira que o Hemingway inventou seria capaz de uma tirada destas! 

- Bebemos um cognac?

- Todos os que quiser, mas primeiro diga-me que não vim aqui em vão.

- Não sei, não sei nada.

- Que vai fazer?

- É cedo para lhe responder. Mas vou reflectir sobre tudo o que acabou de me dizer.

- Quando?

- Tanto tempo quanto o necessário para eu estar seguro do que ainda tenho forças para escolher seja o que for.

- Promete-me não desistir de nada, do Francisco, de mim, do livro?

- Não sei. Garanto-lhe que não sei.

- Mesmo em relação ao livro, também não sabe?

- Veremos, mas as pessoas são bem mais importantes do que os livros, não acha?

- É possível. Às vezes são.

- Isso é verdade, nem que essa seja a última das verdades que um velho escrevinhador deva descobrir. Vamos agora beber os nossos cognacs?

- Sim, vamos, já não tenho mais palavras.

Saborearam o digestivo a pequenos tragos, em silêncio, olhos nos olhos.

- Posso tratá-la por tu?

- Sempre desejei que me tratasse por tu. Mas nunca conseguiu chegar tão longe – aliás tão perto de mim, pois não?

- Posso tratá-la por tu?

- Pode e deve. Sim, pode e deve reduzir ou eliminar toda e qualquer distância entre nós.

- Sabe o que dizia Wittgenstein, segundo uma versão francesa? Isto, rigorosamente: «Ce qui ne peut se dire est tu.» Traduza, por favor.

- «O que não se pode dizer…é calado, não é dito

- Muito bem. Sabe como eu traduziria neste momento essa frase, obviamente mal e com uma grande carga subjectiva, para português?

- Não faço a mínima ideia.

- Traduziria assim: «O que não se pode dizer é…tu

- Fale claro, por favor.  

- Encontrei em ti a minha interlocutora possível. Entendes bem, agora, o que te estou a querer confessar?

- Talvez.

- Encontrei em ti alguém com quem posso dialogar sem ter medo de falar de menos ou de mais. Sem ter medo de dizer uma parte ou tudo o que sei dizer. Sem ter medo de tornar transparente o meu pensamento, os meus actos, até as minhas obsessões. Entendes que sei como é grande o risco que julgo estar a correr?

- Talvez.

- Encontrei hoje em ti…

- Encontraste hoje em mim…

- Encontrei hoje em ti a mulher que poderei amar.

Percorreram abraçados o Boulevard des Capucines e o Boulevard des Italiens, olhando em frente ou para o chão ou para o céu. Mas já não ousavam olhar um para o outro, não se atreviam, agora, a olhar-se nos olhos. Algures a meio do percurso, pouco lhes interessou onde, pouco lhes interessou se ainda chovia ou se já parara de chover, pouco lhes interessou, mesmo, se a Noite de Natal de 2003 viria a ser por qualquer deles ou por ambos recordada, em futuro próximo ou longínquo, como um momento mágico das suas vidas, ela perguntou-lhe, depois de longos, longos minutos de silêncio:

- Os homens choram?

- Sim, os homens choram.

- Estás a chorar?

- Sim, estou a chorar.

- Repete o que disseste, por favor, repete o que disseste, só uma vez. Preciso de ouvir isso outra vez, vindo da tua boca. Preciso de ter a certeza de que percebi bem o que disseste. Preciso de ter a certeza de que me poderás amar.

Ele repetiu, sem hesitação:

- Sim, estou a chorar porque julgo ter encontrado em ti a mulher que poderei amar.

- Se ambos fôssemos personagens de um romance teu, era com essa frase que terminarias o livro?

- Não sei, acho que não. Talvez prosseguisse e escrevesse qualquer coisa como isto:

 

«À frente dele encontrava-se ainda um longo, árduo e mesmo doloroso caminho a percorrer. Teria de vencer os fantasmas surgidos na infância, na adolescência, na maturidade. Teria de reaprender a sair de si e a olhar até conseguir ver com a maior nitidez concebível a mulher que julgava poder amar. Teria de inventar sem descanso a alegria de cada manhã, de cada tarde, de cada noite a dois, sempre com a consciência do escasso tempo que ainda lhe restava para viver. Teria de nascer de novo para encarar com a serenidade possível a hora em que deixaria de existir

 

- Mais nada?

- Poderia acrescentar:

 

 «Teria de repensar a vida e a morte, o encanto e o desencanto, a esperança e o desespero. Teria, sobretudo, de acreditar que, mesmo quando perdemos os seres que mais amamos, a sua doce e insubstituível presença permanece para sempre dentro de nós. Para sempre, mesmo para sempre, mergulhada no mais profundo do que somos ou viremos a ser.»

 

- Não seria bem um happy end, pois não?

- Seria o happy end possível. Uma janela aberta para a esperança. E, talvez, para muito do que senti e pensei e sublinhei nos livros dos outros durante dezenas de anos, apesar de frequentemente contraditório. Mas quem suportaria conviver dia a dia com a dúvida? Quem suportaria aceitar que nada mais existe senão o presente? Quem suportaria perder a esperança de superar o provisório?

- Tu e eu suportaremos.

- Sim. Mas abraçados até à suprema humilhação da morte, abraçados até eu ser assassinado por Deus Pai Todo-Poderoso, abraçados até à definitiva destruição do meu corpo e da minha memória?

- Seria então esse o final do livro?

- Não poderia ser outro. Um final que abrangesse em toda a sua extensão a mais importante lição do «meu» Wittgenstein, aquela que quase todos se recusaram a apreender e a aprender.

- Que lição?

- A do amor, a da insubstituível, inultrapassável, irrecusável lição do amor.

Eugénio tirou um pequeno bloco de apontamentos do bolso do sobretudo e leu a Susana, à luz daquela Noite de Natal em Paris:

 

 «Estamos numa espécie de inferno onde não podemos fazer mais do que sonhar, cobertos como que por um telhado e separados do céu. Mas se vou ser realmente salvo necessito de uma certeza – não de sabedoria, sonhos ou especulação – e esta certeza é a fé. E a fé é a fé naquilo de que necessita o meu coração, a minha alma, e não a minha inteligência especulativa. Pois é a minha alma com as suas paixões, por assim dizer, com a sua carne e sangue, que tem de ser salva, e não a minha razão abstracta. Talvez possamos dizer: só o amor pode acreditar na Ressurreição. Ou: é o amor que acredita na Ressurreição. Poderíamos dizer: o amor redentor acredita até na Ressurreição; apoia-se com firmeza até mesmo na Ressurreição. O que combate a dúvida é, por assim dizer, a redenção.»

 

- Tenho de ler o «teu» Wittgenstein.

- Não precisas. Já sabias o essencial do que ele me ensinou.

- Estás a plagiar o Hemingway e a transplantar para mim a história da abnegada enfermeira?

- Estou só a dizer-te que tu me ressuscitaste.

- Ouves? Ouves os sinos de Notre Dame?

- Ouço.

- E continuaremos sempre abraçados?

- Sim, continuaremos sempre abraçados.

- Até ao fim?

- Sim, Susana, até ao meu fim. Ou até ao fim dos tempos, quem sabe...