Publicado em 27/09/2020 no Sul21:

Problemas empíricos de raça, sexo e gênero

Em outro artigo, escrevi que uma parcela dos movimentos identitários das últimas três décadas vem alimentando teses anticientíficas e irracionais. Alguns colegas gentilmente me advertem (aqui e aqui) da humana possibilidade de eu ter me equivocado. Retribuo o gesto, com argumentos adicionais, desta vez relativos ao uso das expressões “racismo sistêmico” e “construção social de gênero”.

A tese da construção social do gênero tornou-se quase um lugar comum nos chamados “estudos de gênero”. Em boa medida isso se deve à influência do livro Problemas de gênero, da americana Judith Butler, que sustenta não apenas que gêneros são construções sociais livres, isto é, não restringidas pelo sexo biológico, mas também que gêneros são “ficções” produzidas por “performances” (p. 191) e que a atribuição de sexos biológicos a indivíduos deriva de “convenções culturais” (p. 149). Versões diferentes dessas mesmas teses são defendidas por diversos intelectuais influentes dessa área de estudos (ver uma amostra aqui). Neste artigo de 2011, por exemplo, a brasileira Berenice Bento sustenta que gêneros são construídos socialmente por meio de práticas “heteroterroristas” (p. 552). Neste livro espanhol de 2004, Beatriz Preciado afirma que “O sexo [...] não é nem lugar biológico nem uma pulsão natural” mas “uma tecnologia de dominação heterossocial” (p. 25).

Com certeza há elementos valorativos nas nossas classificações sociais de sexo e gênero que merecem reforma. Mas é simplesmente falso que atribuímos sexo e gênero a indivíduos de modo livre e desconectado de nossa biologia sexual. Se, por hipótese, sexos fossem atribuídos de acordo com convenções culturais, deveríamos esperar encontrar variações, do mesmo modo que encontramos variação nas músicas, vestimentas e culinárias de povos distintos. Não há essa variação, contudo. Todas as culturas distinguem o sexo masculino do feminino de um modo que correspondente exatamente à distinção que se faz em biologia. Portanto, é a biologia que dita essa distinção e não a cultura. Há diferenças culturais substanciais no valor moral e nas expectativas comportamentais atribuídas aos indivíduos de cada sexo, mas não na distinção que se faz entre indivíduos de um sexo ou outro. Essa não decorre de características comportamentais, hormonais ou cromossômicas – aspectos em que pode haver bastante variação –, mas no tipo de células reprodutivas que uma pessoa pode produzir: espermatozoides ou óvulos. Não há células reprodutivas de um terceiro tipo. Portanto, não há um terceiro sexo, nem um gradiente de sexos. Há apenas dois sexos. Essa não é uma convenção cultural, mas um fato biológico da nossa espécie e de todos os nossos antepassados biológicos dos últimos quinhentos milhões de anos, segundo nos informam os manuais de biologia reprodutiva (por exemplo, este). Há algumas espécies de animais em que há, de fato, mais de dois tipos de células reprodutivas, e nesses casos pode haver mais de dois sexos (ver este artigo), mas não na espécie humana. Pessoas que são classificadas como do sexo feminino em uma cultura são classificadas exatamente do mesmo modo em todas as outras culturas. Não se trata, portanto, de uma convenção cultural.

No que diz respeito ao gênero (isto é, a como uma pessoa se sente com relação ao seu sexo; por exemplo, se ela se reconhece como homem ou mulher), novamente, o fator preponderante é biológico. O principal indício empírico disso é que 99% das pessoas se identificam com o sexo que têm. Se gêneros fossem construções sociais livres, essa correlação quase absoluta não se verificaria. Mesmo gays, lésbicas e bissexuais se identificam em regra com o sexo que têm. Nessas pessoas não há desacordo entre gênero e sexo, embora elas tenham comportamentos sexuais diferentes dos da maioria. Também essas variações comportamentais são preditas pela biologia, e são pouco afetadas pela cultura (ver aqui). As diferenças culturais que encontramos estão nos papeis, valores, oportunidades e expectativas que se tem em relação a homens e mulheres, o que pouco afeta o gênero com o qual as pessoas se identificam. Há marcadores fisiológicos e cerebrais que permitem identificar tendências comportamentais femininas ou masculinas de um indivíduo (ver este artigo, ou este, ou este, ou este), que se manifestam em culturas diferentes de modos diferentes, mas sem que isso implique mudança, indeterminação ou fluidez de gênero. A diferença entre gênero e sexo só é relevante para aproximadamente 1% da população, que compreende os transsexuais (ver aqui) e pessoas portadoras de condições médicas classificadas como “distúrbios de desenvolvimento sexual” (ver aqui). Algumas pessoas, não todas, tornam-se transsexuais justamente por nascerem com alguma dessas condições. Nesses casos também o desacordo entre o sexo e o gênero tem raízes biológicas. Algumas dessas pessoas às vezes são classificadas como “intersexuais”. Mas esse não é nem um terceiro sexo, uma vez que essas pessoas não produzem células reprodutivas de um terceiro tipo, nem um terceiro gênero, uma vez que em regra elas ou se identificam como homens ou como mulheres. Mesmo quando há mudança de gênero, como no caso dos transsexuais, a mudança que se observa é de homem para mulher ou vice-versa, e não para um terceiro gênero (qual?). Há, por fim, algumas pessoas que se autoclassificam como “não binárias”, “queer” ou “assexuais”, mas do ponto de vista empírico, o seu número é bem pequeno e seu comportamento é indistinguível do de homens ou mulheres com comportamento sexual “atípico” (i.e., diferente da maioria). Como o comportamento sexual atípico não é o que caracteriza um gênero, tampouco nesses casos parece haver indícios de construção social de gênero ou de gêneros adicionais àqueles que a evolução biológica de nossa espécie selecionou: homem e mulher. Isso obviamente não significa que não haja problemas morais nos usos que fazemos com os conceitos de homem e mulher em nossa sociedade, mas mostra que os conceitos que temos foram fortemente induzidos pela biologia de nossa espécie e, nesse sentido, não são construções sociais livres. As alternativas conceituais que temos não se limitam a construção social ou essencialismo biológico. Podemos reconhecer fatos biológicos ao mesmo tempo em que reconhecemos nossa liberdade para mudarmos os papeis e expectativas sociais que associamos a homens e mulheres. Há aspectos do conceito de gênero que são construídos socialmente, mas são construções fortemente induzidas pela biologia, e não livres. Deixar de reconhecer esse fato é uma forma de negacionismo científico, a meu ver. Discussão e dados adicionais sobre esses assuntos podem ser encontrados neste livro, de Debra Soh.

Vejamos agora o caso do “racismo sistêmico”. O termo foi introduzido para descrever um tipo de discriminação racial que difere daquele praticado ostensivamente por indivíduos racistas ou por leis e instituições racistas (como as do Apartheid, por exemplo). O principal desafio para o uso desse conceito, portanto, está na demonstração da sua realidade. Não é algo para o que se pode apontar, como o racismo ostensivo de pessoas ou leis. Seus efeitos são visíveis, mas a demonstração da sua realidade é necessariamente indireta. Muitos conceitos científicos têm essa característica (por exemplo, gravidade ou radiação) e impõem desafios análogos. Um princípio básico de metodologia científica é o de que não podemos inferir de um fenômeno as suas causas, pois várias causas podem contribuir de modos diferentes para um mesmo efeito. No caso do racismo sistêmico, os estudos empíricos que temos são bem poucos, o que dificulta o emprego do conceito. Temos, em troca, muitos estudos sobre o fenômeno da desigualdade racial (na renda, na educação, nos presídios etc.). Sabemos que essa desigualdade é enorme e persistente no Brasil. Mas disso não podemos automaticamente inferir que sua causa é o racismo sistêmico, pois várias causas podem estar contribuindo para o mesmo fenômeno. Por exemplo, sabemos que a mobilidade social no Brasil sempre foi muito baixa. Logo, uma hipótese também plausível para a persistência das desigualdades raciais no Brasil pode ser a baixa mobilidade social, algo que pode ou não ter a ver com racismo. O mais provável é que haja uma multiplicidade de fatores (baixa mobilidade social, racismo sistêmico, racismo individual, escolas deficientes, heranças culturais específicas etc.). Esse é um problema recorrente na literatura sobre racismo sistêmico. Ele seguidamente é postulado como explicação para uma desigualdade social, mesmo na ausência de estudos específicos que demonstrem a relação causal. Um exemplo desse tipo de falha argumentativa pode ser encontrado neste depoimento de Sílvio Almeida (ver detalhes em Racismo Estrutural). Ele afirma que o racismo sistêmico (ou “estrutural”) tem componentes econômicos, políticos e subjetivos. O exemplo que ele dá no âmbito econômico é o seguinte. No Brasil, a carga tributária é proporcionalmente mais alta para os mais pobres, razão pela qual recai de modo mais pesado sobre as mulheres negras, que estão na base de nossa pirâmide social. Logo, ele conclui, o nosso sistêma tributário é sistemicamente racista. Mas onde está o componente especificamente racista? Se são os mais pobres os que mais pagam imposto, então o que temos é um sistema tributário socialmente injusto, mas não necessariamente racista. O valor relativo mais alto de impostos incide sobre os de renda mais baixa mesmo que não sejam negros. Algumas pessoas estão de fato sendo injustamente selecionadas para pagar mais imposto. No entanto, essa seleção não está sendo feita em termos raciais, mas econômicos. Almeida então argumenta que as mulheres negras, por serem pobres, não conseguem ter influência política, e por isso não conseguem afetar as leis tributárias, o que reforça a sua pobreza. Teríamos, assim, uma “estrutura” racista. Não duvido que isso seja verdade. Mas não foi isso que o raciocínio dele mostrou. Em cada um dos passos argumentativos empregados, o que fica por demonstrar é justamente o elemento racista do sistema. Penso que o trabalho de Sílvio Almeida (do mesmo modo que o de Djamila Ribeiro) é meritório e justo em muitos sentidos. Penso também que há racismo sistêmico no Brasil. Mas não tenho como deixar de ver nesse tipo de raciocínio um equívoco, pois não se pode inferir automaticamente de um fenômeno social observado as suas causas.

Há alguns casos demonstrados de racismo sistêmico, mas não são muitos. No Brasil, infelizmente, quase não há estudos empíricos nesse sentido. Por isso, recorro a um exemplo americano para ilustrar o ponto. Nos Estados Unidos, a fala dos negros tem vocabulário, gramática e cadência diferente da dos brancos. É o chamado Black English, que alguns linguistas consideram um dialeto. Uma pesquisa feita com estenógrafos (ver aqui e aqui) do sistema judiciário mostrou erros recorrentes de transcrição do inglês negro, resultando em sentenças desfavoráveis. Até mesmo os estenógrafos negros cometem esses erros de transcrição, pois são treinados apenas com exemplos do inglês padrão. Logo, não são casos de racismo individual. Trata-se ainda assim de um caso de racismo, porque os erros de transcrição incidem especificamente sobre os negros, independente de outros fatores (classe social, sexo, religião etc.). Veja-se como esse caso é diferente do citado por Sílvio Almeida. Aqui de fato temos não apenas a constatação de uma diferença racial observada (nas sentenças judiciais), mas a identificação de uma de suas causas, que nesse caso é um racismo de tipo sistêmico.

Outro argumento seguidamente empregado para postular o racismo sistêmico são os chamados vieses raciais implícitos, que todos temos e que podem ser identificados por testes de associação rápida e automática (medidas em milissegundos). Esses testes sugerem, por exemplo, que os nossos vieses raciais são mais fortes que os sexuais. Mas diferentemente do que inicialmente se supôs, esses testes não predizem bem o comportamento das pessoas (ver aqui). Mesmo pessoas com vieses raciais fortes podem não se comportar de modo racista. Muitas pessoas têm esses vieses mas espontaneamente os corrigem (pelo uso da sua consciência) ou são induzidos a corrigi-los pelo que percebem ser socialmente adequado aos olhos dos outros. Em outras palavras, além dos vieses implícitos, somos também guiados pelas nossas consciências e pelos padrões sociais. Aquela reação automática (medida em milissegundos) que todos temos seguidamente é contrariada por reações posteriores (medidas em segundos). Mas isso, novamente, dificulta a postulação do racismo sistêmico como uma explicação para desigualdades sociais, pois a reação inconsciente e racista seguidamente não produz efeitos comportamentais racistas. A desconsideração desse fato seguidamente leva algumas pessoas a acharem que todas as pessoas brancas que nascem e crescem em países como o Brasil são racistas. Esse foi o erro argumentativo que notei no texto de Djamila Ribeiro em artigo anterior. O que ela diz pode até ser plausível, mas a rigor não é o que se pode concluir com base no que sabemos sobre vieses implícitos e explicações causais.

Esses problemas de raciocínio e falta de confirmação empírica que acima indiquei não se resolvem criticando os modelos gerais de racionalidade “eurocêntrica” ou “heteronormativa” ou “patriarcal” que alegadamente temos. Com certeza há modelos alternativos de racionalidade, além de modelos diferentes de cientificidade no interior da nossa própria tradição científica. Mesmo admitindo-se essas racionalidades alternativas, os problemas apontados persistem: atualmente há um número considerável de teses defendidas por intelectuais ligados aos movimentos identitários que diretamente contradizem as ciências que hoje temos e usamos. Pode ser que numa biologia alternativa ou talvez numa ciência social alternativa (mas qual, exatamente?) esse não seja o caso. Não disputo isso, embora ache que não está claro o que isso quer dizer neste caso particular. Também não disputo, ao contrário, subscrevo, as denúncias das insidiosas, persistentes e gravíssimas injustiças sociais decorrentes do racismo e do sexismo que testemunhamos no Brasil e em outras partes. Penso, no entanto, essas mesmas denúncias perdem parte da sua cogência quando se associam a teses anticientíficas e erros de raciocínio.

Meus dois colegas historiadores citam, adicionalmente, teses hoje indefensáveis de filósofos do passado. Penso que isso é irrelevante. Não é por terem feito afirmações racistas ou misóginas que os lemos. Também a nossa democracia nasceu tingida pelo elitismo e pela misoginia de gregos antigos. É justamente por termos avançado nas contribuições de nossos antepassados que hoje podemos olhar para trás e dizer que estavam equivocados neste ou naquele ponto. Mas só conseguimos fazer isso porque temos hoje os instrumentos de raciocínio e investigação que eles, com os seus defeitos, nos legaram.