3.1.4

3.1.4 À procura de uma metodologia a partir da pluralidade

 

Com o objetivo de aprimorar a ação do professor e de formá-lo com relativa eficácia, diversos instrumentos metodológicos têm sido utilizadas na área de formação de professores, que englobam a elaboração e análise do plano de aula, diário reflexivo, relato da aula dada pelo professor ou por um observador, filmagem de aulas para posterior discussão no interior de um programa de formação de professores, conforme Lousada (2004), mas todos esses instrumentos metodológicos focalizam a interação com os alunos, normalmente não levando em conta outras dimensões que fazem parte do trabalho do professor. Apesar deste lastro de metodologias, os cientistas sociais (e isto também vale para os pesquisadores em educação) têm a desenvoltura de improvisar soluções para seus problemas de pesquisa, com liberdade para inventar métodos capazes de responder às suas necessidades investigativas, pois, segundo Goldenberg (2001), não é possível formular regras precisas sobre as técnicas de pesquisa qualitativa porque cada observação é única, uma vez que depende do tema, do pesquisador e de seus pesquisados. Porém, em nosso trabalho não pretendemos abusar desta liberdade, mas tentamos seguir alguns procedimentos metodológicos já experimentados por alguns autores, embora não tão rigorosamente.

Os encontros tiveram a finalidade de se atingir reflexões coletivas sobre a própria prática docente em tópicos de astronomia, apoiando-se nos procedimentos da entrevista coletiva ou da análise de discussões em grupo, conhecida por Grupo Focal usada em alguns dos encontros (GIOVINAZZO, 2001; GALEGO e GOMES, 2005; DIAS, 2000). Resumindo a definição do Focus Group, Giovinazzo (2001) o explica como “uma técnica utilizada em pesquisas qualitativas com muitas finalidades”, e que, particularmente desde a década de 70, tem ganhado espaço nas pesquisas da área de Educação, além de outras. A técnica Focus Group, ou Grupo Focal, é uma derivação de entrevista coletiva semi-estruturada conduzida de modo natural por um moderador (normalmente o pesquisador interessado), envolvendo uma discussão objetiva sobre um tópico específico, previamente planejada sob a forma de um guia contendo uma lista de questões-chave norteadoras ou estimuladoras. Este roteiro não deve ser seguido de modo inflexível, mas deve servir apenas como uma orientação geral para o moderador, de modo que as perguntas não sejam lidas de modo formal para o grupo, mas devem parecer espontâneas para os participantes, apesar de terem sido anteriormente preparadas.

Tais questões são classificadas em categorias (GIOVINAZZO, 2001): a) questões abertas (permitem respostas rápidas); b) questões introdutórias (introduzem o tópico geral da discussão); c) questões de transição (movem a conversação para as questões-chave); d) questões-chave (direcionam o estudo e requerem mais atenção); e) questões finais (fecham a discussão, considerando tudo o que foi dito); f) questões-resumo (o moderador faz um breve resumo da discussão e pergunta ao grupo se este foi apropriado); g) questão final (questão específica sobre o Grupo Focal, pedindo sugestões e críticas sobre a maneira de condução das discussões).

O ambiente físico também deve ser preparado de antemão, pois deve ser agradável e descontraído, encorajando a participação das pessoas. Por isso, a disposição das cadeiras mais adequada é a forma de U, com o moderador posicionado no lugar de um suposto “acento” na letra U, ficando de frente para os participantes, com uma filmadora atrás do mesmo, a fim de se registrar as discussões, para posterior transcrição e análise pelo pesquisador, lembrando que o grupo deverá aprovar por escrito tal filmagem. Pensando nesta análise, Dias (2000) mostra que o moderador é a pessoa mais indicada para exprimir o que realmente se passou durante a discussão do grupo focal, dado o caráter subjetivo da pesquisa qualitativa. Por isso, acreditamos que a pessoa mais apropriada para ser o moderador seja o próprio pesquisador.

No Grupo Focal, a interação do grupo deve ser constantemente estimulada pelo moderador através de seus comentários e questões, para que as respostas e as idéias dos participantes influenciam uns aos outros durante a discussão. Segundo Galego e Gomes (2005), a principal função do moderador é promover a participação e interação de todos os participantes, controlando as dispersões, as sobreposições e conversas paralelas de alguns indivíduos do grupo, além de proporcionar clima favorável à exposição de idéias por todos os participantes. A quantidade de pessoas deve ser limitada ao número máximo de 10 ou 12 pessoas e ao número mínimo de seis pessoas, de modo que se deve pensar em uma quantidade que estimule a interação e a participação de todos, dependendo das características das pessoas que compõem o grupo (DIAS, 2000). Também é aconselhável limitar o tempo de duração da dinâmica para, segundo estes autores, aproximadamente duas horas, para que não se torne exaustivo.

Optamos pela utilização da técnica do Grupo Focal em alguns momentos de nossa coleta, porque, conforme Giovinazzo (2001), a sua utilização é “particularmente apropriado quando o objetivo é explicar como as pessoas consideram uma experiência, uma idéia ou um evento”. Em nosso caso, o evento considerado pelo grupo foi uma aula ministrada por algumas das participantes, que foi filmada e posteriormente trazida ao grupo para análise e reflexão.

Mostrando que o Grupo Focal não tem sido normalmente utilizado em pesquisas na área de Educação, um estudo de Brzezinski (2006) encontra a sua aplicação em apenas dois trabalhos do ano de 2002, dentre todas as dissertações e teses brasileiras produzidas no período de 1997-2002 que abordaram a formação de professores. Isto indica uma apropriação metodológica para a área educacional e de formação de profissionais da educação a partir do marketing, pois essa metodologia é empregada, em particular nesta área, para avaliar o impacto dos processos de intervenção, por meio de um conjunto de pessoas selecionadas e reunidas por pesquisadores para debater temas a partir de sua experiência pessoal.

Sobre a denominação do tutor ou professor que atua como organizador do curso (o qual denominamos de mediador, sendo o próprio pesquisador), ele assume uma identidade que, conforme Garcia (1999), pode receber as seguintes designações de uma pessoa que não faz parte do quadro da escola: agente de mudança, facilitador de mudança, assessor, e orientador, com funções de promover, desenhar, diagnosticar, planejar, ajudar e avaliar a mudança.

Quanto ao desenvolvimento dos temas no grupo, seguimos orientações embasadas em Garcia (1999), o qual declara esta ação como algo paralelo a tarefas pelos participantes, o que, em nosso caso, envolveu leituras de textos selecionados, planejamento de planos de aulas, análise reflexiva de algumas de suas aulas filmadas, e elaboração de um texto final normatizado sobre os resultados observados.

Além disso, estamos cientes da advertência de Garcia (1999) que apresenta o desenvolvimento do profissional do ensino como algo além de simplesmente proporcionar um serviço a um grupo de professores, ou seja, formar é muito mais do que dar um curso. Procuramos estruturar o trabalho do ensino de modo a que os professores tivessem tempo para refletir e exercer a sua autonomia (ZEICHNER, 1993).

Nossa proposta estrutural para o curso segue as sugestões de Yaxley, conforme Garcia (1999), que abrange seis fases: a) descrição (pede-se aos professores que explicitem suas concepções sobre um tema de estudo); b) reconhecimento (reconhecem-se as diferenças entre as suas descrições e outras teorias apresentadas ao grupo); c) exploração (realizam-se leituras e conversas sobre as teorias complementares às concepções pessoais apresentadas previamente como seus constructos); d) partilhamento (encontrar semelhanças e contrastes entre as teorias pessoais e as mais formais); e) negociação (tentar atingir um acordo entre grupos de professores para se chegar a um consenso entre as definições); f) revisão (as novas definições são comparadas com as concepções que os professores tinham no início do programa). Embora estas fases abranjam todo o período do curso, há a possibilidade de estruturá-las de modo que todas ocorram em um único encontro, o que se deu em nosso caso.

Outro fator relevante que levamos em conta é o fato de que resultados de trabalhos anteriores devem ser considerados na elaboração de novos programas de formação continuada, pois auxiliam nas decisões, planejamento e objetivos a serem definidos, conforme Garcia (1999). Por exemplo, para o desenvolvimento deste trabalho e do curso, levamos em conta alguns dados e resultados investigados nas teses, dissertações e artigos levantados anteriormente que abordam temas ligados à educação em astronomia, conforme comentado nos capítulos antecedentes sobre o estado da arte, bem como os resultados que encontramos na pesquisa anterior (LANGHI, 2004).

Comentando a influência que um curso desta natureza pode provocar nos participantes, Garcia (1999) mostra que mudanças esperadas no ensino dos professores participantes devem-se em grande parte ao tipo de atividades que se incluem no curso. As atividades com mais probabilidade de serem colocadas em prática pelos participantes são aquelas que levam em conta alguns aspectos tais como: demonstração, prática, acompanhamento. O autor mostra também que os cursos de formação continuada, que podem ser considerados eficazes, contam com a opinião dos professores ao se planejar o curso, centrando-se nas necessidades destes, e admitindo-se certa flexibilidade que permita mudanças no processo.

Assim, procuramos dar atenção especial aos componentes que contribuem para uma maior eficácia dos cursos de formação continuada, resultando numa maior possibilidade de os professores colocarem em prática as atividades apresentadas (GARCIA, 1999). Estes componentes são: a) teoria (exposição de conteúdos para os professores, levantamento de suas concepções, suas experiências e vivências); b) demonstração (demonstrar como as aulas podem ser ministradas); c) prática (professores participantes planejam suas aulas e as lecionam, talvez as filmando); d) retroação (reflexão das aulas, através da análise individual ou em grupo da filmagem); e) acompanhamento (dar continuidade e assessoria aos professores, mesmo após os encontros do curso terem finalizado oficialmente). Apesar disso, comentamos em capítulos anteriores que são poucos os cursos de formação continuada que atingem o objetivo de alterar efetivamente a atividade cotidiana do trabalho docente, pois não podemos afirmar até que ponto tais componentes estão sendo levados em conta em tais programas de formação continuada.

Comentando sobre algumas das dificuldades para a implantação de mudanças no professor, Garcia (1999) identifica cinco delas que predominam como obstáculos principais ao processo de alterações das atividades de ensino, cujo conjunto é denominado por resistências à mudança, sobre as quais estamos cientes de encontrar em nossa pesquisa: a) isolamento cultural, envolvendo a sensação que os professores têm de estarem isolados, com pouca informação e conhecimento científico, determinando uma aparente falta de apoio e insegurança na execução das sugestões do curso; b) disfuncionalidade operativa, que se refere aos benefícios imediatos limitados que a inovação oferece; c) relação custo/benefício diluída, ou seja, os custos percebidos são maiores que os benefícios; d) compulsividade do sistema educativo, que oferece dificuldades à mudanças, por exemplo, legislação, exigências de prazos no cumprimento de programas, trabalho diário excessivo, falta de tempo; e) restrições instrumentais, com escasso material didático, espaços e mobiliários adequados. Por isso, o autor sugere que as inovações ou propostas devem ser muito bem explicadas aos professores com a clareza suficiente para que estes possam ter condições de colocar em prática as novas idéias.

Seguindo as orientações de Zeichner (1993), para uma reflexão adequada, esforçamo-nos em fazer com que os professores não pensassem sozinhos sobre o seu trabalho, como muitos estudos continuam sugerindo. Ao contrário, o desenvolvimento dos professores só pode ocorrer rejeitando-se a idéia individualista de reflexão, e incentivando-os a se envolver coletivamente, voltado para a construção da autonomia. Para Giovanni (2000), o uso de práticas coletivas voltadas para a reflexão e para identificação de problemas, construção de soluções, definições de projetos de ação, avaliação dos mesmos, e o estudo dos seus erros e acertos, constituem oportunidades formativas valiosas. Contudo, Zeichener (1993) alerta para a “ilusão da reflexão”, para a qual voltamos a nossa atenção neste trabalho. A ilusão da reflexão impede a consecução da intenção de emancipação e autonomia dos professores: em primeiro lugar, porque os esforços de reflexão se concentram sobre as estratégias de ensino, em detrimento dos objetivos, ou se voltam para as práticas específicas dos professores e alunos, em detrimento das discussões sobre o contexto social mais amplo; e, em segundo lugar, porque tais esforços são, em geral, iniciativas individuais, isoladas, que não estabelecem relações com experiências de outros professores, a estrutura escolar e contextos sociais.

Por outro lado, a análise reflexiva da prática usando a supervisão pelos colegas de trabalho, com o acompanhamento das atividades de aperfeiçoamento, é um modelo apresentado por Joyce em 1980, segundo Garcia (1997), para que os professores tenham uma retroação. Neste modelo de instrumento metodológico, é o próprio professor quem determina o tema a ser observado, que é objeto de uma discussão prévia; posteriormente, o colega observa o professor na sua aula, e depois há uma discussão das observações efetuadas. O termo normalmente usado para esta estratégia, segundo Garcia (1997), é coaching (termo em inglês derivado de coach, cujo significado é preparador, mentor, treinador, orientador), que visa proporcionar apoio pessoal e assistência aos professores no seu local de trabalho, através de atividades destinadas a aperfeiçoar habilidades e competências, podendo gerar nos professores processos de autoformação.

O coaching assume princípios do apoio profissional mútuo ou da retroação construtiva, visando a reflexão sobre a ação como um processo que possui a intenção de proporcionar aos professores um processo de análise sobre o ensino que desenvolvem, mediante a observação por parte de um ou mais colegas (GARCIA, 1999), que tece críticas, conselhos e sugestões acerca do trabalho analisado. Alguns aspectos sobre o coaching nos interessaram para utilização em nossa pesquisa, segundo relacionados pelo mesmo autor: nesta modalidade, há a oportunidade dos companheiros se observarem uns aos outros e a possibilidade de surgirem novas idéias sobre o ensino; desenvolvimento de um ambiente positivo de discussão entre colegas; aprendizado de técnicas de observação de sala de aula; proporcionar a auto-avaliação dos professores e o espírito de cooperação e ajuda mútua, apesar de que o apoio profissional mútuo não se improvisa e nem se impõe, o que poderia dificultar a implantação desta estratégia.

Além do coaching, Guarnieri (2000) apresenta outro instrumento metodológico de investigação referente ao pensamento e a ação do professor, que também consideramos significativo para o nosso trabalho: “estimulación de recuerdo” (GARCIA, 1987). A estimulación de recuerdo é empregada quando se quer obter informações sobre o pensamento do professor na situação de ensino. Recorrendo ao uso de diários, anotações ou gravações em audio/video das aulas, o pesquisador estrutura a entrevista de estimulación de recuerdo a ser realizada com o professor, que também ouve e visualiza as gravações das aulas. A estratégia do coaching pode consistir em também gravar as aulas em vídeo que serão vistas primeiro pelo coach (pesquisador) e este elabore reflexões por escrito. A seguir, o vídeo é mostrado ao professor participante e este dialoga com o pesquisador com base nas reflexões escritas e no vídeo, procurando analisar, refletir, sugerir, escutar, demonstrar aspectos de situações de ensino. Nesta, o pesquisador explica, critica e propõe alternativas, o que não ocorre com a primeira estratégia.

Além do coaching e da estimulación de recuerdo, estamos também especialmente interessados no que alguns pesquisadores, como Clot et al e Faïta, ambos estudados por Lousada (2004), desenvolveram: um instrumento que visa criar um diálogo sobre a atividade, propondo a filmagem do trabalhador em ação, ou de dois trabalhadores executando tarefas iguais, e constituir assim, um banco de dados observáveis que podem ser vistos e analisados posteriormente pelo pesquisador e pelos trabalhadores em questão. Essa metodologia foi denominada pelos pesquisadores de autoconfrontação.

No sentido de se avaliar o processo de modo contínuo, a fim de receber feedbacks dos episódios formativos, optamos em utilizar também estes princípios do procedimento da autoconfrontação, que tem como principal preocupação “fazer da atividade passada do trabalhador o objeto especial de sua atividade presente, isto é, organizar o diálogo entre atividades pertencentes a esferas disjuntas” (SOUZA-E-SILVA, 2004), e utiliza a imagem como suporte das observações, em quatro fases: constituição do grupo de análise, autoconfrontação simples, autoconfrontação cruzada e extensão do trabalho de análise ao coletivo profissional.

Um aspecto importante da autoconfrontação, de acordo com Lousada (2004), é o fato de ela permitir a análise de uma dimensão do trabalho que quase sempre é imperceptível: o trabalho real, revelando algumas de suas características. Além disso, a autoconfrontação pode contribuir para compreender a dinâmica da ação dos sujeitos, promovendo transformações nos meios de trabalho, pois leva em consideração os coletivos de trabalho. A pertinência deste instrumento metodológico para o desenvolvimento formativo dos professores se concretiza pelo fato de as avaliações sobre o trabalho prescrito, trabalho realizado e trabalho real ocorrerem todas no momento da autoconfrontação.

A autoconfrontação possibilita construir um corpus observável do trabalho real do professor, em todas as suas dimensões, ultrapassando as questões didáticas, as quais são as únicas comumente analisadas. No entanto, reconhecemos as dificuldades encontradas por Mazzillo (2004), que constatou, a partir de suas análises, que a questão da avaliação das ações de outros é bastante complexa, pois os critérios de validade usados para avaliação são múltiplos, se entrecruzam e provêm de diferentes lugares sociais, e de suas diversas vozes discursivas.

A técnica de pesquisa e de formação que utiliza a videogravação de ações de um ou mais sujeitos, numa dada situação, visando a sua posterior auto-análise, não é tão recente, pois conforme Sadalla e Larocca (2004), autores da década de 70 já apresentaram trabalhos sobre a avaliação de si mesmo a partir de videogravações e a confrontação da imagem de si mesmo em um monitor de TV. Esta técnica, também denominada de autoscopia, pode ser utilizada tanto em situações de pesquisa como nas de aprendizagem e formação de diferentes profissionais (SADALLA e LAROCCA, 2004).

Por isso, o curso planejado contou com a prática de reflexões sobre as próprias aulas dos participantes sobre temas de astronomia, aproveitando estes momentos para um aprofundamento em conteúdos nesta área do saber, pois, conforme o MEC (BRASIL, 2008), os programas de formação continuada devem subsidiar a reflexão sobre a prática docente, com o exercício da crítica, bem como o aprofundamento da articulação dos componentes curriculares. Por isso, no grupo focal, atribuímos relativa importância à “avaliação formativa” (PERRENOUD, 1999), em que a reflexão é atuante no processo de aprendizagem, contribuindo com elementos formativos a todos os atores envolvidos: participantes e mediador-pesquisador.

Assim, utilizamos os recursos do registro em vídeo e posterior análise coletiva, com duas finalidades específicas: a) filmando os encontros, obtemos um registro de imagem e áudio para posteriores procedimentos de análises dos dados que podem nos conduzir à algumas considerações finais. Sobre os registros em pesquisas na área da Educação vale mencionar o que Goldenberg (2001) aponta como uma das dificuldades e limitações: o constrangimento da parte do pesquisado pelo fato de ter suas informações anotadas, gravadas ou filmadas, de modo que a “negociação” entre pesquisador e pesquisado(s) deve ser realizada desde logo, para minimizar o problema. Além deste aspecto, fez-se necessário, por escrito, uma autorização para registro das informações da parte dos participantes, com a garantia de que será mantido o sigilo de suas identidades pessoais, denominado termo de consentimento livre e esclarecido; b) filmando algumas aulas dos professores participantes do nosso curso proposto, o grupo poderá recorrer às estratégias acima descritas para que ocorra uma avaliação e reflexão coletiva e individual da própria prática docente, ao realizarmos a análise da gravação em conjunto. De fato, a gravação das práticas serve para a observação e auto-observação, sendo um potente instrumento de feedback (GARCIA, 1999). E segundo os Referenciais para Formação de Professores (BRASIL, 2002a), a formação continuada não pode ser algo eventual e nem apenas um instrumento destinado a suprir deficiências de uma formação inicial de baixa qualidade, mas, deve ser sempre parte integrante do exercício profissional do professor. Para isso, é preciso assegurar condições para que os professores possam estudar em equipe, compartilhar e discutir sua prática com os colegas, apresentando seu trabalho publicamente, num trabalho de reflexão em conjunto. De fato, segundo Freire (1983), a reflexão se dá através do diálogo.

Diante dos modelos formativos docentes, segundo as abordagens “CHART”, consideradas nos capítulos anteriores, consideramos o nosso curso como atuando e transitando por estes cinco campos, pois ele, ora se apresentou como conteudista, ora como reflexista, ambos predominando todos os encontros. Contudo, houve momentos em que abordagens ativistas, tecnicistas e humanistas também se deixaram transparecer, segundo o dispositivo analítico aqui elaborado (figura 01).

Com relação ao registro filmado de todos os encontros, este se constitui em uma fonte de informações importante para a análise de nossa pesquisa, segundo a qual partimos para a utilização (como pano de fundo) dos referenciais da vertente francesa da Análise de Discurso, divulgada principalmente por Maingueneau (1996, 1997 e 2002) e Orlandi (1996, 2000 e 2002). Segundo esses autores, o suporte do discurso, ou o meio pelo qual se concentram ou se materializam vários discursos, se dá pelo indivíduo, do grupo ao qual representa. A análise do discurso, dessa forma, possibilita ao investigador descobrir os meandros do pensamento expresso por um determinado indivíduo ou grupo social. Conforme Orlandi (2002), a análise do discurso embasa-se em três disciplinas que interagem: lingüística, marxismo e a psicanálise. Ela articula o lingüístico com o social e se propõe a “realizar leituras críticas e reflexivas que não reduzam o discurso a análises de aspectos puramente lingüísticos nem o dissolvam num trabalho histórico sobre ideologia” (BRANDÃO, 2002). É assim uma disciplina inacabada. Para uma fundamentação básica sobre a Análise de Discurso mais completa do que a aqui apresentada, recomendamos a leitura de nosso trabalho de mestrado (LANGHI, 2004), clicando aqui.

Considerando que a linguagem é interação e um modo de produção social, ela não é neutra, pois possui uma intencionalidade. Ela também não é natural nem inocente. Por isso, a linguagem, enquanto discurso, está carregada de ideologia. O texto é, assim, o lugar, o centro comum que se faz no processo de interação entre falante e ouvinte, autor e leitor (ORLANDI, 1996). Para Orlandi (2000), lemos diferentemente um mesmo texto em épocas (condições) diferentes e um texto tem relação com outros textos (intertextualidade). Como todo leitor tem sua história de leituras já realizadas, surgem dois tipos de leitura: a leitura parafrástica (que procura repetir o que o autor disse, reproduzindo seu sentido) e a polissêmica (que atribui múltiplos sentidos ao texto). Além disso, a leitura é produzida em condições determinadas, em um contexto sócio-histórico que deve ser levado em conta, ou seja, toda leitura também tem sua história. O texto é atravessado por posições do sujeito (ORLANDI, 2000). Em um mesmo texto podemos encontrar enunciados de discursos diversos, que derivam de várias formações discursivas. Toda palavra é dialógica, todo discurso tem dentro dele outro discurso, que tudo que é dito é um já-dito. As palavras simples do nosso cotidiano já chegam até nós carregadas de sentidos que não sabemos como se constituíram e que, no entanto significam em nós e para nós. No dizer há sempre um não-dizer, que pode ser interpretado de diferentes maneiras, dependendo do que o analista procura. Por outro lado, um não-dito também é passível de interpretação, ou seja, o silêncio também é discurso.

Quanto aos sujeitos, Brandão (2002) afirma que na análise do discurso não existe a presença física de organismos humanos individuais, mas a representação de lugares determinados na estrutura de uma formação social. Por exemplo, no interior de uma instituição escolar, há o lugar do diretor, o lugar do professor, o lugar do aluno. Assim, no discurso, as relações entre estes lugares acham-se representadas por formações imaginárias que designam a imagem que ele faz do seu próprio lugar e do lugar do outro. Desta forma, no processo discursivo, o emissor pode antecipar as representações do receptor, e de acordo com esta antevisão do imaginário do outro, fundar estratégias de discurso.

Orlandi (1996) mostra que, em um discurso pedagógico, entre a imagem do aluno (aquele que não sabe) e a imagem do professor (o que tem a posse do saber) há uma “distância fartamente preenchida pela ideologia”. A ideologia no discurso produz alguns efeitos. Conforme Orlandi (2000), ela provoca uma aparência da unidade do sujeito e a da transparência do sentido. Assim, a ideologia é a condição para constituição do sujeito e dos sentidos (ORLANDI, 2002). Não existe discurso sem sujeito, e não há sujeito sem ideologia.

A sede do discurso pedagógico é a escola, onde ocorre a “reprodução cultural” e onde se vê que “o sistema de ensino é a solução mais dissimulada para o problema da transmissão de poder” (ORLANDI, 1996). Assim, o discurso pedagógico mostra-se ser um dizer institucionalizado que garante a instituição em que se origina e para a qual tende. Desse modo, considera-se o professor como sendo institucional e aquele que possui o saber e está na escola para ensinar, enquanto o aluno é aquele que não sabe e está na escola para aprender, não possuindo maturidade suficiente para decidir o que lhe interessa, por isso, alguém decide por ele o que deve aprender. Portanto, considerando que o discurso pedagógico está vinculado à escola, à instituição em que se origina e para a qual tende, então isto lhe confere um caráter circular. A escola cumpre, dessa forma, a sua função social: a da reprodução.

Orlandi (2000) explica que há a ilusão discursiva do sujeito, que pode ser definido como a impressão que ele tem de que é a fonte exclusiva de seu discurso quando na realidade está retomando sentidos preexistentes. Este é o efeito-sujeito, pois para ele, o que diz, só poderia ser dito do modo como diz. Ou seja, o efeito-sujeito coloca o sujeito como origem de seu dizer e representa o sentido como transparente. A análise de discurso considera que o sujeito é socialmente constituído e o discurso se dá no interior de formações ideológicas. Há também uma relação entre o já-dito e o que se está dizendo, ou seja, entre o interdiscurso e o intradiscurso, ou entre a constituição do sentido e sua formulação (ORLANDI, 2002). O interdiscurso é o conjunto de formulações feitas e já esquecidas que determinam o que se diz.

Nesta pesquisa, dentro do amplo universo discursivo, encontra-se uma região delimitada pelo discurso em questão, ou seja, o campo discursivo a ser analisado, que é o discurso pedagógico dos docentes da amostra durante os encontros. Como este campo discursivo ainda prevalece amplo demais para os objetivos desta pesquisa, delimitou-se o espaço discursivo do processo de ensino-aprendizagem de conteúdos de astronomia e as situações vivenciadas pelos professores dos anos iniciais durante alguns momentos e lugares de sua trajetória formativa, caracterizando, assim, o nosso dispositivo de análise.

Segundo Capelle, Melo e Gonçalves (2003), a análise do discurso diferencia-se da análise do conteúdo, pois, o primeiro não visa o que o texto quer dizer, mas como ele funciona diante de sua inserção em um determinado contexto social e histórico, uma vez que nossa amostra compõe-se de professores cuja história de vida exerce influência sobre a sua prática pedagógica (a recíproca é verdadeira, conforme já comentamos nos capítulos anteriores sobre as trajetórias docentes). Optamos pela análise do discurso, como um mecanismo de análise e proposta teórico-metodológica, porque a estrutura textual da transcrição das falas da amostra aponta para a necessidade de ultrapassarmos o status da simples técnica de análise de conteúdo (que tem como principal representante Bardin, 1979), para atingirmos uma compreensão dos mecanismos de dominação ocultos nas enunciações, e das articulações entre linguagem e ideologia (CAPELLE, MELO e GONÇALVES, 2003). Neste sentido, a análise do discurso não interpreta os textos que estão sendo analisados, mas sim os resultados desta análise enunciativa, buscando a compreensão do processo produtivo do discurso em detrimento de sua interpretação, o que proporcionou subsídios para a identificação de elementos formativos docentes em relação à educação em astronomia.

 

 

Este texto é parte integrante da tese de doutoramento:

LANGHI, R. Astronomia nos anos iniciais do ensino fundamental: repensando a formação de professores. 2009. 370 f. Tese (Doutorado em Educação para a Ciência). Faculdade de Ciências, UNESP, Bauru, 2009.