2.2.8

2.2.8 Particularidades distintivas da astronomia para o ensino

 

O objeto de estudo da astronomia abriga algumas particularidades que a distingue de outras ciências. Por exemplo, ele se encontra além dos olhos e, quase sempre, de uma maneira que dificulta a elaboração de esquemas mentais que nos levem a idealizar o fenômeno ou corpo celeste, desafiando nossa capacidade de imaginação e constituindo-se em um dos grandes desafios na aprendizagem e compreensão da astronomia, segundo Barrio (2007). Muitos dos fenômenos observados no universo nunca foram, e nem costumam ser, encontrados na Terra, seja durante toda a vida cotidiana do ser humano, seja em tentativas de reprodução destes fenômenos em laboratórios, exigindo-se altos graus de abstrações.

Diferentemente da maioria das ciências, não “tocamos” nos materiais astronômicos para serem adequadamente analisados em laboratório. Os únicos materiais provenientes do espaço que “tocamos”, de fato, são as rochas lunares trazidas pelos astronautas, as partículas de um cometa recolhidas por uma sonda-robô in loco e mais tarde enviada de volta à Terra, e os meteoritos que, vez por outra, atingem o solo de nosso planeta (desde eras remotas até hoje). Também “tocamos” remotamente, através de sondas-robôs, o solo de outros planetas, luas e asteróides.

As amostras astronômicas encontram-se a distâncias que não permitem o seu acesso físico, e o único modo de extrairmos e interpretarmos os dados a fim de elaborar modelos, se dá através da análise da única forma de informação que chega até a Terra: as radiações eletromagnéticas, principalmente, na faixa da luz visível. Por exemplo, assim como um biólogo disseca um animal para estudá-lo, um astrônomo “disseca” a luz, proveniente do corpo celeste, em diversos comprimentos de onda para estudar a composição e características destes objetos, os quais talvez nunca visitaremos pessoalmente (este procedimento é chamado de espectroscopia). Por isso, Shipman (1990) lembra que a astronomia é uma ciência basicamente visual, e por esta razão, o professor precisa fazer uso de figuras, fotos, vídeos e maquetes como recursos didáticos apropriados ao ensino de astronomia. Ou, conforme Sadler e Luzader (1990) chamam a astronomia, “ciência espacial”, com um duplo significado para o termo empregado: espaço tridimensional para o ensino, e o espaço que nos referimos ao falar sobre o ambiente existente entre os corpos celestes. Pesquisas nacionais, tais como Bisch (1998) e Leite (2006), também atestam a importância da noção da espacialidade no ensino de ciências e na formação de professores.

Esta percepção espacial está relacionada com o que se denomina por gramática visual implícita de paradigmas astronômicos e a concepção de espaço. Segundo Hill (1990), os professores devem levar em conta se seus alunos estão conseguindo estabelecer relações espaciais. Muitas vezes, a óbvia imagem tridimensional sobre um tema astronômico, formada no pensamento do professor ao explicar determinado conteúdo, nem sempre é a mesma imagem construída pelo aluno, ou ainda, não se constitui em um olhar tridimensional, o que traz sérias implicações à aprendizagem do conceito. Nem sempre as figuras bidimensionais que representam fenômenos tridimensionais (por exemplo, fases da Lua) podem ser compreendidas pelo leitor se não houver uma abordagem mais concreta, talvez com a utilização de maquetes, modelos palpáveis, atividades práticas, figuras diferentes sob outros pontos de visão, imagens dinâmicas por computador, estereogramas, etc. Uma maquete, por exemplo, é uma representação física e tridimensional, e por isso é chamada de modelo representacional por Kneller (1980). Neste sentido, apresentações de planetários e observações através de telescópios são importantes recursos para se introduzir relações 3-D (HILL, 1990).

Por exemplo, na Suíça, a Swiss Amateur Association pensou em ensinar astronomia informalmente, fora dos limites escolares, enquanto a população se recreia em parques e bosques. Ao caminhar, as pessoas encontram um modelo em escala reduzida do Sistema Solar completo, começando com o Sol com diâmetro de 1,4 m, e todos os demais planetas em escala não só em tamanho, mas também em distância, com informações breves sobre cada astro em uma placa ao lado de cada um. Nesta escala, uma caminhada reforçada de cerca de 6 km será suficiente para se atingir Plutão (IWANISZEWSKA, 1990).

Outro fator que se deve levar em conta ao ensinar a astronomia é que, assim como as demais ciências, ela deve ser compreendida como um processo de produção de conhecimento e uma atividade humana, histórica, associada a aspectos de ordem social, econômica, política e cultural, e não como normalmente a escola a apresenta, a saber, um conjunto de conhecimentos atemporal e neutro, sem vínculos políticos ou culturais. Esta abordagem da ciência durante processos de ensino e aprendizagem é apresentada pela proposta curricular para o primeiro segmento do ensino fundamental da Educação de Jovens e Adultos (BRASIL, 1997a), e acrescenta que é necessário mostrar ao aluno a presença da ciência na realidade dele, a partir de exemplos e temas de estudo ligados ao cotidiano, como eletricidade, culinária, novidades científicas e tecnológicas noticiadas pela mídia, eventos astronômicos (como eclipses solares) etc. Semelhantemente, os PCN sugerem que o professor organize seu conteúdo em temas diferentes, articulando conteúdos convertidos a partir de “uma notícia de jornal, um filme, um programa de TV, um acontecimento na comunidade” (BRASIL, 1997). Notícias sobre naves espaciais, novas descobertas sobre o Universo, ou fenômenos astronômicos regionais ou mundiais (eclipses, aproximação de planetas ou chuvas de meteoros), geralmente causam grande curiosidade nas crianças, o que se transforma quase que espontaneamente em um tema a ser trabalhado em sala de aula pelo professor. Porém, para que ele sinta segurança e autonomia em um trabalho desta natureza em sala de aula, pressupõe-se que ele exerça um domínio dos saberes disciplinares em astronomia e astronáutica.

Além disso, há a importância em se utilizar os estabelecimentos relacionados à astronomia, mediante as visitas planejadas com os alunos, conforme já comentado nos parágrafos anteriores. Visando um aprendizado prático de conteúdos em astronomia, os PCN salientam a necessidade de atividades práticas, e visitas preparadas a observatórios, planetários, associações de astrônomos amadores, museus de astronomia e de astronáutica (BRASIL, 1999). Este aspecto confere à astronomia mais este diferencial: o seu ensino pode ser apoiado através do grande potencial existente nos estabelecimentos localizados em todo o território nacional, tornando-a diferente da maioria dos outros conteúdos de disciplinas escolares (não existem “físicos amadores”, ou “observatórios químicos”, por exemplo), o que nos leva a pensar na possibilidade de estreitamento das relações entre as comunidades: astronômica profissional, astronômica amadora e escolar.

Refletindo sobre a natureza da astronomia, essencialmente observacional, os PCN contemplam, ainda, a importância das observações no ensino das ciências, pois “observar não significa apenas ver, e sim buscar ver melhor, encontrar detalhes no objeto observado” (BRASIL, 1997). Há duas maneiras de se fazer uma observação. A primeira é o contato direto com os objetos de estudo, e a segunda, é “mediante recursos técnicos ou seus produtos. São os casos de observações feitas por meio de microscópio, telescópio, fotos, filmes ou gravuras” (BRASIL, 1997). Denota-se, portanto, uma importância considerável em incluir observações do céu através de telescópios no ensino de ciências, e não apenas a olho nu. Recomendando a utilização de tais instrumentos no ensino da astronomia e ciências afins, Beatty (2000) concluiu que muitos alunos e professores ficam dotados de mais incentivo e motivação de aprendizagem do conhecimento científico ao observar as imagens reais do universo através de um telescópio – experiência nunca vivenciada por muitos professores. Townsend (1998) relata que o uso de telescópios na educação em ciências pode habilitar o professor a incorporar uma experiência astronômica real, através da observação direta de corpos celestes fascinantes, tais como nebulosas, estrelas duplas, aglomerados, galáxias, planetas, cometas, crateras e montanhas da lua, etc. Isto tem motivado o estudante e o próprio educador, levando-os a se envolver mais com outras questões fundamentais do universo, uma vez que “os fenômenos astronômicos fornecem um farto material de observações que podem ser trabalhados e conduzidos a um modelo científico do fenômeno” (NASCIMENTO, 1990). De fato, pesquisas na área da educação em astronomia têm revelado a importância do uso (e da construção artesanal) do telescópio no ensino e nos processos formativos docentes (SCALVI et al, 2006; GOULD, DUSSAULT e SADLER, 2007; TORRES, 2004; MALLMANN e RASIA, 2000; ORMENO, 2000).

O exemplo do próprio Galileu Galilei ilustra bem o efeito revolucionário que uma observação telescópica pode provocar. Embora ele não tenha sido o primeiro a realizar observações celestes pelo telescópio, nem o inventor deste instrumento, cabe-lhe o mérito do uso sistemático deste instrumento para obtenção de dados que embasaram revoluções científicas. Apesar de estar familiarizado com muitos aspectos dos conceitos em astronomia, Galileu Galilei talvez tenha ficado impressionado com o que viu pela primeira vez através do telescópio, ao apontá-lo para o céu noturno. A maioria dos alunos e professores, em geral, fica igualmente estimulada ao observar por meio deste instrumento numa aproximação razoável, as montanhas, cordilheiras, vales e crateras lunares de quilômetros de extensão; os planetas gigantes Júpiter (com suas nuvens coloridas na alta camada da atmosfera e suas quatro luas principais mudando de posição) e Saturno (com seus característicos anéis); enormes aglomerados estelares, como Ômega Centauri, com cerca de um milhão de estrelas assemelhando-se a um enxame; nebulosas, como a de Órion e de Eta Carinae; estrelas duplas que a olho nu aparecem como uma única no céu; estrelas de diferentes cores e brilhos devido às diferenças de temperatura de sua superfície, e assim por diante.

Assim, tendo em vista a importância do uso do telescópio na educação como fator propulsor da curiosidade científica nos alunos, torna-se passível de indignação o fato de relativamente poucas escolas brasileiras possuírem no mínimo a sua própria luneta, ou um simples binóculo. Por sua vez, quando a escola finalmente decide adquirir um instrumento assim, talvez com o tempo caia no desuso porque não há professores habilitados para operar o aparelho, ou não se sentem aptos para direcioná-lo na direção apropriada do céu noturno onde se encontram os corpos celestes mais motivadores, como nebulosas, estrelas duplas, aglomerados, galáxias, e os planetas do Sistema Solar.

Isto também acontece com o leigo que, impulsionado pelo desejo de observar o céu com um instrumento, enganadamente compra uma luneta ou telescópio em lojas que falsamente indicam o poder de ampliação do aparelho (para finalidades práticas, dizemos empiricamente que o poder de ampliação de um telescópio não ultrapassa numericamente duas vezes o diâmetro do seu tubo, em mm). Muitas vezes, o interessado perde sua motivação pelo fato de a ampliação real e prática do telescópio recém adquirido não condizer com os falsos valores comercialmente divulgados no ato da compra (por exemplo, o aparelho pode ser vendido com a característica teórica de 600x de aumento, quando, de fato, ele não supera uma ampliação prática de 150x, dadas as suas limitações ópticas, as condições atmosféricas, poluição luminosa, etc). Outros fatores ‘desmotivacionais’ é o seu desconhecimento dos procedimentos de busca visual dos objetos celestes (planetas, nebulosas, aglomerados, etc) e técnicas de reconhecimento do céu à vista desarmada, imprescindíveis para o correto direcionamento do instrumento. Além disso, tendo a concepção de que a posse de um telescópio o fará visualizar o universo tal qual o é apresentado pelas imagens que a mídia promove ou as que são obtidas pelos maiores telescópios profissionais, ele(a) geralmente acaba por limitar suas observações telescópicas à Lua, objeto de tamanho aparente relativamente grande e, portanto, mais fácil para apontar seu instrumento.

Talvez outro motivo de não ser freqüente encontrar um telescópio nas escolas, esteja no fato de seu alto valor monetário de aquisição, falta de orientações na compra e no manuseio do instrumento (após a compra de uma luneta comercial, o usuário se sente desmotivado por não conseguir localizar a maioria dos astros no céu), e a rarefação de construtores amadores de telescópios de qualidade desejável no Brasil. Além disso, trata-se de um instrumento de uso principalmente noturno (horário em que as crianças normalmente não vão à escola). Porém, Tignanelli (1998) salienta que, durante o dia, poderiam ser realizadas observações telescópicas de manchas solares e da Lua minguante ou crescente, tomando-se as devidas precauções ópticas de proteção contra o brilho solar excessivo durante o dia. Além disso, eventos noturnos especiais na escola poderiam ser marcados, envolvendo as famílias, durante o período em que ocorrerem fenômenos astronômicos de destaque, tais como os eclipses, por exemplo, ou para noites comuns de observação do terminador lunar ou um planeta (LANGHI, 2009).

Neste sentido, o incentivo maior deveria partir das próprias universidades e das instituições formadoras de professores. No entanto, apesar de todas estas características distintivas da astronomia, sobretudo a sua natureza basicamente observacional, diversos cursos de graduação do país, mesmo os que possuem sua estrutura curricular contemplando conteúdos de astronomia introdutória, não atribuem a esta prática a sua devida importância. Segundo indicam Bretones e Compiani (2001), apenas 40% das instituições de ensino superior (as que possuem astronomia em seu currículo) apresentam atividades práticas e observacionais sobre a astronomia. A não menção das demais instituições poderia inferir na sua concentração conteudista de aulas teóricas sobre temas de astronomia, bem como na ausência de comprometimento com a prática astronômica, que envolveriam observações celestes a olho nu e com telescópios, astrofotografias, práticas de determinação de fatores astronômicos, visitas a observatórios e planetários, construção de maquetes, aulas de laboratório, etc.

Assim, resumimos, abaixo, as dez principais particularidades distintivas da astronomia, até agora consideradas:

Pensando no que os astrônomos poderiam colaborar para o incentivo da educação desta ciência, levando em conta as considerações acima, Viegas (1998) faz um diagnóstico da astronomia no Brasil e mostra que se deve ter a preocupação de promover a habilidade nos astrônomos em despertar a cidadania no país, pois esta implicará na necessidade crescente da defesa das ciências básicas, em particular da astronomia, com base no esclarecimento da população em geral, com explicações de sua importância para o desenvolvimento nacional. Outra preocupação é identificada por Bretones e Compiani (2001), a saber, aumentar o debate sobre o papel da astronomia introdutória na maioria das instituições de ensino superior brasileiras, pois muitos alunos destas disciplinas podem vir a se tornar professores de ciências, física, geografia e outras disciplinas no ensino fundamental e médio. Por isso, mais trabalhos e artigos devem ser publicados para enriquecer esta discussão, a fim de aproximar a astronomia do ensino, numa tentativa de aprimorar a formação dos professores e estudantes. E mesmo que sua formação inicial não dê conta de todos os conteúdos desta natureza, deve-se pensar na busca de programas de formação continuada que contemplem a educação em astronomia e que sejam adequados às reais necessidades formativas dos docentes participantes.

 

  

Este texto é parte integrante da tese de doutoramento:

LANGHI, R. Astronomia nos anos iniciais do ensino fundamental: repensando a formação de professores. 2009. 370 f. Tese (Doutorado em Educação para a Ciência). Faculdade de Ciências, UNESP, Bauru, 2009.