2.2.6

2.2.6 Conteúdos de astronomia: algumas considerações

Além de se preocupar com o fato de ensinar o ensino da astronomia, levando em conta as pesquisas na área da educação em astronomia, deve-se pensar na importância dos conteúdos deste tema, ou seja, o “paradigma perdido” de Shulman (1987). O fato é que nem mesmo os conteúdos de astronomia estão sendo trabalhados de maneira significativa e quantitativa em cursos de formação inicial de professores (BRETONES, 1999; MALUF, 2000).

Seria de se esperar que tais conteúdos pudessem ser abordados, ao menos, nas graduações que levam os estudantes a uma carreira de pesquisa científica, e não especificamente acadêmica. No entanto, segundo a SBPC (2005), em geral, somente aqueles jovens físicos que se encaminham para uma pós-graduação em alguma área diretamente vinculada a problemas de cosmologia, por exemplo, conseguem, através da complementação de seus estudos em centros de pós-graduação, obter uma base adequada de conhecimentos sobre o universo, pois, a sua graduação não o habilitou com tais conteúdos.

Este exemplo demonstra que a preocupação com a falta de abordagem de conteúdos específicos de astronomia e cosmologia não é uma característica apenas dos cursos de licenciatura. Porém, a pesquisa de Bretones (1999) mostrou que há algumas instituições de ensino superior no Brasil que se dedicam ao ensino de alguns destes conteúdos, dependendo da estrutura curricular do curso ministrado. Tecemos, abaixo, breves considerações sobre alguns dos conteúdos mais trabalhados durante as trajetórias formativas dos diversos cursos oferecidos pelo território nacional.

Investigando os conteúdos programáticos das disciplinas introdutórias específicas que contemplam tópicos de astronomia nos diversos cursos das instituições de ensino superior do País, Bretones e Compiani (2001) encontraram uma importância maior dada aos temas sistema solar, astronomia de posição, sistema Sol-Terra-Lua, e estrelas, seguidos dos demais temas em ordem decrescente de importância: galáxias, história e objeto, cosmologia, instrumentos, céu e constelações, tempo e calendário, mecânica celeste, astrofísica, e por último, o ensino da astronomia. Os livros-texto mais usados nas disciplinas introdutórias de astronomia nestes cursos eram, em ordem decrescente de porcentagem: Boczko (1984), Maciel et al (1991), Caniato (1990) e Mourão (1997). Para uma lista de livros e outras produções que podem ser consultadas pelo professor como fonte de informação, clique aqui.

Quanto à ordem dos tópicos de uma disciplina desta natureza, há uma ampla discussão se o ensino de conteúdos de astronomia deve partir da Terra para o Universo, ou se deve assumir o inverso, sendo que alguns autores não chegam a um consenso, e o resultado é que um programa ou ementa reflete, muitas vezes, a visão de astronomia do seu próprio elaborador (BRETONES e COMPIANI, 2001). De qualquer modo, Bretones (1999) sugere uma disciplina introdutória de astronomia voltada principalmente aos alunos do primeiro semestre de cursos de licenciatura em ciências, física e geografia, mas aberta a interessados de outros cursos, propondo o seguinte conteúdo programático: história da astronomia, astronomia de posição, instrumentos, sistema Sol-Terra-Lua, Sistema Solar, estrelas, galáxias, cosmologia, e ensino de astronomia.

Visando cobrar de professores o domínio de conteúdos específicos das disciplinas de física e de ciências físicas e biológicas, o exame escrito de um concurso público do Estado de São Paulo, para provimento destes cargos, divulgou um temário de estudo, cujos tópicos incluíam os seguintes conceitos de astronomia: interações gravitacionais entre objetos na Terra e no Universo; movimentos da Terra, Lua e Sol e fenômenos astronômicos correspondentes; movimento de naves e satélites; o Universo e sua evolução; concepções sobre a Terra e o Universo ao longo da história humana; modelos da origem e evolução do Universo e da Terra; Sistema Solar, tempo e distâncias astronômicas; constituição da Terra; transformações geológicas; condições para a presença de vida, origem da vida; ritmos biológicos e períodos astronômicos (SÃO PAULO, 2003).

Para Tignanelli (1998), os principais conteúdos de astronomia que deveriam estar presentes no ensino fundamental são os relacionados com fenômenos cotidianos observáveis e os que dão conta do tipo de universo que habitamos e das leis que os regem: céu e planeta, luz e estrela, nascer e ocaso, dia e noite, órbita, planeta e satélite, dia e noite lunar, fases lunares, manchas solares. Nestes conteúdos estariam implícitos alguns conceitos como movimento relativo, medida do tempo e dimensões, sendo fenômenos cuja maioria são passíveis de serem observados sem necessidade de um instrumento especial, como um telescópio, por exemplo.

Sintetizando os conteúdos de astronomia no ensino fundamental, Costa e Gómez (1989) lembram que os mesmos poderiam se limitar a uma simples percepção dos objetos visíveis mais notáveis: estrelas e suas mudanças de posição, incluindo o uso de mapas celestes e planisférios para o estudo mais sistemático de constelações e reconhecimento de planetas; sistema Sol-Terra-Lua e seus movimentos ocasionando fenômenos como o dia, a noite, estações do ano, fases, eclipses; por último, sugere-se noções básicas sobre a constituição do Universo em grande escala, apenas como fator de motivação para as crianças.

Outro exemplo foi uma pesquisa realizada com o intuito de se alterar a disciplina de física geral e experimental III do curso de licenciatura em ciências com habilitação em matemática de um instituto de ensino superior, visando estudar a inserção de conteúdos de astronomia na formação inicial de professores. Na mudança de conteúdo programático, contemplou-se os seguintes temas: história da astronomia, Sistema Solar, estrelas, constelações, galáxias, introdução à cosmologia, planeta Terra; este último, com caráter interdisciplinar com geologia, biologia, ecologia e química. Os resultados apontaram para um atendimento das necessidades curriculares dos futuros professores, que aceitaram a proposta como válida (LATTARI e TREVISAN, 1995).

Conteúdos básicos e essenciais são apontados também por Ostermann e Moreira (1999) como sendo, no mínimo: estações do ano, planetas, e fases da Lua. Os autores mostram ainda que, em razão destes tópicos não serem trabalhados durante a formação inicial e continuada dos professores, alguns acabam reforçando erros conceituais, como as estações do ano decorrentes da variação de distância da Terra em relação ao Sol, por exemplo, conforme constatado em suas pesquisas com professoras dos anos iniciais do ensino fundamental.

Outro exemplo de conteúdos de astronomia, sugeridos para estudo nos anos iniciais do ensino fundamental, é o fornecido pela Comissão de Ensino da SAB (Sociedade Astronômica Brasileira), como preparatório da Olimpíada Brasileira de Astronomia (SAB, 2009). Embora não se tenha a intenção de ser este evento o determinante sobre o que o professor deva saber a respeito de astronomia, exemplificamos, abaixo, os conteúdos propostos por esta Olimpíada:

Para 1º ao 3º ano: Localização. Pontos Cardeais. A Terra como Esfera. A passagem do tempo: dias e noites, estações do ano. Meses e Fases da Lua. O movimento aparente do céu e os movimentos da Terra. Reconhecimento de constelações e objetos celestes. Conhecimentos gerais sobre os objetos do Sistema Solar: os oito planetas, os planetas-anões, cometas. Estrelas, buracos negros, galáxias, etc. Veículos aeroespaciais: aviões, foguetes e satélites. Sondas espaciais. Os satélites e foguetes brasileiros. Atmosfera e sua importância para a manutenção da vida na Terra. O homem na Lua. Educação Ambiental: Cultura do “Saber Cuidar” e do “Não Desperdício”. Prática dos 3 R: Reduzir, Reutilizar, Reciclar. Formas e Fontes de Energia.

Para 4º ao 5º ano: Localização. Pontos Cardeais, bússolas. A Terra como Esfera. A passagem do tempo: dias e noites, estações do ano. Meses e fases da Lua. O movimento aparente do céu e os movimentos da Terra. Horas e fusos horários. Calendários. Fenômenos do Sol e da Lua no céu: Fases da Lua, Eclipses, Marés. Reconhecimento de constelações e objetos celestes. Conhecimento qualitativo dos objetos do Sistema Solar: os oito planetas, os planetas-anões, cometas, estrelas, buracos negros, etc. Veículos aeroespaciais: aviões, foguetes e satélites. Sondas espaciais. Os satélites e foguetes brasileiros. Atmosfera e sua importância para a manutenção da vida na Terra. O homem na Lua. Educação Ambiental: Cultura do “Saber Cuidar” e do “Não Desperdício”. Prática dos 3 R: Reduzir, Reutilizar, Reciclar. Formas e Fontes de Energia. Energia Elétrica, Caminhos da Energia Elétrica. 

Exemplos internacionais também nos ajudam a entender quais conteúdos de astronomia costumam ser contemplados como mais significativos.

No primeiro programa oficial de ensino médio de Württemberg, na Alemanha, encontram-se os seguintes conteúdos de astronomia (NEUMANN, 1990): movimentos aparentes e verdadeiros no céu (movimentos diários e anuais, Leis de Kepler e da Gravitação); corpos do sistema solar; o sol como uma estrela (propriedades solares, estrutura interna, atividade solar); propriedades e a Física das estrelas; diagrama Hertzprung-Russell; diagrama cor-magnitude; evolução estelar, propriedades do sistema galáctico Via-Láctea; propriedades e a física das galáxias; cosmologia. Em North-Rhein-Westfalia, no mesmo país, há os seguintes conteúdos de astronomia em seu programa (NEUMANN, 1990): cinemática do sistema solar; gravitação e Física de vôos espaciais; análise óptica da radiação estelar; diagrama H-R; campos magnéticos e elétricos; radioastronomia; modelos atômicos; radiação no espaço e atmosferas estelares; processos nucleares em estrelas. E, em Hessen, há a seguinte proposta (NEUMANN, 1990): sistema solar; movimentos da esfera celeste; gravitação, leis de Kepler e aplicações; propriedades de corpos do sistema solar; distância e brilho das estrelas; importantes propriedades físicas das estrelas; diagrama H-R e evolução estelar; Física da Via-Láctea; galáxias e cosmologia.

No Japão, encontramos o caso da escola Keio Senior que incluiu conteúdos de astronomia em seu currículo na área de Ciências da Terra (TSUBOTA, 1990), incluindo aulas áudio-visuais, exercícios de cálculos matemáticos, discussões em grupo, atividades práticas de observação do céu e em laboratório: dimensões da Terra; evidências do formato da Terra; método de Eratóstenes; achatamento; curvatura; elipsóide; movimento da Terra; Astronomia de posição: coordenadas horizontais e equatoriais, meridiano, zênite; Tempo solar e sideral: definição de tempo, hora local, tempo universal, defasagens nos horários, equação do tempo; Movimentos aparentes dos objetos celestes: movimento diurno, altura do trânsito no meridiano, estrelas circumpolares; Pêndulo de Foucault: rotação da Terra, efeito coriolis; Movimentos aparentes do sol e dos planetas: movimento direto, movimento retrógrado e estacionário, da teoria geocêntrica à teoria heliocêntrica; Revolução da Terra: aberração anual, paralaxe anual, distância das estrelas fixas; Período sinódico e sideral: conjunções (inferior e superior), elongação máxima, oposição; Órbita de Marte: coordenadas eclípticas, leis de Kepler; Movimentos da Lua: lei da gravitação universal, movimento circular, altitude de satélites artificiais; Nosso sistema solar; Planetologia comparada: raio, massa, densidade, materiais, gravidade, período de rotação, período sideral, atmosferas; Duração do dia: efeito do movimento sideral; Exploração planetária; Reconhecimento das peculiaridades da Terra; Superfície do sol; Manchas solares e fáculas: período de revolução do sol, distribuição de manchas solares, ciclo solar de 11 anos e sua influência no clima; Fonte de energia solar; Radiação direta solar: constante solar e transmissividade atmosférica; Especulação da fonte da energia solar: comparações com fontes terrestres de energia, energia química, energia gravitacional, energia atômica; Determinação da temperatura superficial do sol: lei de Stefan-Boltzmann, albedo, temperatura efetiva, efeito greenhouse; Composição do sol; Observação espectroscópica do sol: espectro contínuo, espectro de emissão e de absorção, linhas de Fraunhofer, atividade solar; Astronomia espectroscópica: tipos espectrais, temperatura superficial estelar, lei de Wien, determinação da temperatura da superfície do sol; o sol como uma estrela; Magnitude absoluta e visual: luminosidade, magnitude, distância; Diagrama H-R: classificação de estrelas, seqüência principal, estrelas gigantes e supergigantes, anãs brancas, paralaxe espectroscópica; Evolução estelar: evolução solar; introdução à astronomia moderna: astronomia das radiações (raio-X).

Para o equivalente ao ensino fundamental brasileiro, o Japão teve o seu currículo alterado em 2008 e passou a contemplar os seguintes conteúdos, conforme Matsumura (2008): sombra e movimento do Sol (idade de 9 anos), movimento da Lua, constelações, posição, brilho e cor das estrelas (10 anos), posições da Lua e do Sol, observação das fases lunares e superfície da Lua (12 anos), movimentos dos objetos, observação do céu noturno, esfera celeste e seu movimento diurno, movimentos das constelações, revolução terrestre, inclinação do eixo de rotação da Terra, fases da Lua e movimentos do sistema Sol-Terra-Lua, eclipses, características do Sol, planetas e estrelas, nossa galáxia (15 anos).

Para a publicação canadense Astronomy Handbook for Teachers (WHITEHORNE, 2003), que aborda o currículo específico do programa de ensino canadense, trazendo atividades práticas a serem desenvolvidas com os alunos, os conteúdos considerados fundamentais para o ensino de astronomia pelos professores são: estações do ano, fases da lua, marés, sistema solar, Sol, constelações, distâncias astronômicas, galáxias, via-láctea, universo, telescópios, e uma lista de fontes para pesquisas adicionais.

E, mais recentemente, numa preparação para as atividades do Ano Internacional da Astronomia, a página eletrônica oficial que representa a África do Sul, neste evento, divulgou um texto-resumo que traz uma lista de conteúdos considerados principais para o ensino deste tema (produzimos uma adaptação deste texto, disponível clicando aqui). No Brasil, a proposta curricular para o primeiro segmento do ensino fundamental da educação de jovens e adultos (BRASIL, 1997a), o eixo Terra e Universo, revisado nos PCN, propõe estudos que permitam ao aluno reconhecer a Terra como componente do sistema solar e compreender as interações do nosso planeta com o sistema, devendo o professor abordar temas sobre a matéria, energia e vida na Terra. Esta publicação sugere os seguintes fatos, conceitos, procedimentos e atitudes a serem desenvolvidos no eixo temático Terra e Universo: observação direta, busca e organização de informações sobre a duração do dia em diferentes épocas do ano e sobre os horários de nascimento e ocaso do Sol, da Lua e das estrelas ao longo do tempo, reconhecendo a natureza cíclica desses eventos e associando-os a ciclos dos seres vivos e ao calendário; busca e organização de informações sobre cometas, planetas e satélites do sistema solar e outros corpos celestes, para elaborar uma concepção de universo; estabelecimento de relação entre os diferentes períodos iluminados do dia e as estações do ano, mediante observação direta local e interpretação de informações sobre esse fato em diferentes regiões terrestres, para compreensão do modelo heliocêntrico; valorização dos conhecimentos de povos antigos para explicar os fenômenos celestes; valorização do conhecimento historicamente acumulado, considerando o papel de novas tecnologias e o embate de idéias nos principais eventos da história da astronomia até os dias de hoje; caracterização da constituição da Terra e das condições existentes para a presença de vida.

De forma similar, os documentos oficiais para a educação nacional, os PCN, reconhecem que a astronomia é interdisciplinar, pois os assuntos a ela relacionados são tratados em outras disciplinas tais como biologia, física e química, no contexto que preside o ensino de cada disciplina e do seu conjunto. Ao relacionar a hipótese da formação da Terra com outros campos do conhecimento como geologia, física e astronomia, o aluno pode entender que existe um universo muito abrangente de explicações sobre a Terra primitiva (BRASIL, 1999). Os PCN do ensino médio reforçam a idéia de que o estudante saiba compreender que o universo é composto por elementos que agem interativamente e que é essa interação que configura o Universo, a natureza como algo dinâmico e o corpo como um todo, que confere à célula a condição de sistema vivo (BRASIL, 1999). Portanto, o ensino de astronomia para o ensino médio deve ser tratado de tal maneira, que contemple temas transversais, privilegiando, assim, a interdisciplinaridade inerente à astronomia, pois, por se tratar de um assunto que desperta a curiosidade dos estudantes, esta ciência poderá ser utilizada como um fator de motivação do estudante para a construção de conhecimentos de outras disciplinas relacionadas. Porém, se tais conteúdos são previstos para o ensino médio, entende-se que deve haver um mínimo de conteúdos essenciais que embasam o ensino da astronomia no ensino fundamental.

Entendendo a importância das observações no ensino de ciências e astronomia, os PCN sugerem que o professor de ciências do ensino fundamental deva estar preparado para fornecer subsídios aos alunos a fim de que eles sejam capazes de principalmente: identificar algumas constelações, mediante observação direta, compreender a atuação da atração gravitacional, a causa do dia e da noite, bem como das estações do ano, as distinções entre as teorias geocêntrica e heliocêntrica, estabelecendo relações espaciais e temporais na dinâmica e composição da Terra e, finalmente, valorizar o conhecimento historicamente acumulado em Astronomia (BRASIL, 1998).

Quanto às constelações, os PCN fornecem três exemplos principais: Cruzeiro do Sul, Órion e Escorpião, afirmando que os alunos podem observar a constelação do Cruzeiro do Sul e seu movimento em relação ao horizonte, em um intervalo de três ou quatro horas durante a noite (BRASIL, 1998). Porém, temos de nos lembrar que a visibilidade do Cruzeiro do Sul depende da latitude em que a cidade se encontra, e do horário da observação. Além disso, esta constelação, assim como muitas outras (incluindo Órion e Escorpião), não é visível durante o ano inteiro, havendo períodos do ano em que não conseguimos visualizá-la(s).

Segundo os PCN (BRASIL, 1997), o processo de ensino que inclui a compreensão da natureza do universo, do espaço, do tempo, da matéria, do ser humano e da vida, tem início na astronomia, valorizando estudos antigos, por meio dos trabalhos de Copérnico, Kepler e Galileu, quando deslocaram a Terra do centro do Universo, sendo a mecânica do universo melhor entendida depois com o tratamento matemático de Newton. No entanto, esta parece ser uma visão um tanto sistêmica que os PCN apresentam, pois tende a levar o aluno a uma ‘revolução copernicana’ sem reconhecer antes a importância histórica de uma visão geocêntrica, tais como as grandes navegações, ou que os pilotos de aeronaves ainda aprendem e precisam dos conhecimentos de coordenadas astronômicas num referencial de Terra estática e centralizada. Desta forma, a carga teórica já impõe aos alunos uma visão heliocêntrica, sem antes lhes sugerir uma construção de noções das coordenadas astronômicas e geográficas, partindo da Terra e estendendo para a esfera celeste.

Por isso, o documento reconhece que o conhecimento do modelo heliocêntrico de Sistema Solar, com nove planetas girando ao redor do Sol (agora, oito), torna-se complexo, ao colocar-se para os estudantes o conflito entre aquilo que observam, ou seja, o Sol desenhando uma trajetória curva no céu, e aquilo que lhes ensinam sobre os movimentos da Terra em torno do Sol. Assim, não seria coerente iniciar o estudo de corpos celestes a partir de um ponto de vista heliocêntrico, ignorando o que os alunos sempre observaram (BRASIL, 1998). De fato, este conflito entre aquilo que observam e aquilo que lhes é ensinado do ponto de vista científico, pode oferecer um certo grau de resistência ao aprendizado, uma vez que o geocentrismo parece ser ainda a explicação mais lógica e plausível para a concepção do senso comum dos estudantes (OSBORNE e WITTROCK, 1985).

Os PCN do ensino fundamental do terceiro ciclo (5a. e 6a. séries) e quarto ciclo (7a. e 8a. séries), conhecidos como os anos finais do ensino fundamental (lembrando que há 9ª série no regime de nove anos), sugerem que o professor aproveite, em seu planejamento, a grande variedade de conteúdos teóricos das disciplinas científicas, dentre elas, a astronomia, com todo o seu acúmulo de conhecimentos tecnológicos. Porém, ao contrário da tecnologia, que é produzida com uma finalidade prática, o conhecimento das ciências naturais (que inclui astronomia), visam a compreensão sobre o universo, o espaço, o tempo, a matéria, o ser humano, a vida, seus processos e transformações (BRASIL, 1998). Os PCN de ciências naturais dividem, assim, a disciplina em quatro grandes eixos de estudo, ou blocos temáticos, para ensino no terceiro e quarto ciclos de estudos: “Terra e Universo”, “Vida e Ambiente”, “Ser Humano e Saúde” e “Tecnologia e Sociedade”. O enfoque para o terceiro ciclo é o sistema Sol-Terra-Lua, tais como reproduções do Sistema Solar em modelos tridimensionais, dia e noite, estações do ano, fases da Lua, movimento das marés, eclipses. No ciclo seguinte, os assuntos são ampliados e aprofundados, tais como comparações entre planetas, trabalhando-se com escalas de distância e grandeza em unidades usuais como o metro. De acordo com os PCN, o eixo temático “Terra e Universo” está presente somente a partir do terceiro ciclo por motivos circunstanciais, mas entende-se que “este eixo poderia estar presente nos dois primeiros” (BRASIL, 1998). Desta forma, a compreensão do posicionamento do aluno diante de seu lugar físico perante o universo, está também previsto nos PCN dos anos iniciais do ensino fundamental. Prevendo a formação de um cidadão crítico inserido numa sociedade que valoriza cada vez mais o conhecimento cientifico e tecnológico, os PCN dos dois primeiros ciclos (1a. a 4a. séries) do ensino fundamental apresentam o papel das ciências naturais como sendo o de colaborar para a compreensão do mundo e suas transformações, situando o homem como individuo participativo e parte integrante do universo (BRASIL, 1997).

Portanto, apesar de os PCN sugerirem um tratamento mais aprofundado de conteúdos de astronomia, no bloco temático “Terra e Universo”, a partir do terceiro ciclo, eles deixam claro que o professor dos anos iniciais do ensino fundamental possui a autonomia para que a astronomia possa ser incluída em seu planejamento.

Selecionamos resumidamente, a seguir, alguns conteúdos principais relacionados à astronomia e o tratamento atribuído a eles, conforme sugeridos pelos PCN: localização, a olho nu, de diferentes constelações e estrelas ao longo do ano e dos planetas; horários de nascimento e ocaso do Sol, da Lua e das estrelas ao longo do tempo; natureza cíclica desses eventos, associando-os a ciclos dos seres vivos e ao calendário; duração do dia em diferentes épocas do ano; diferentes períodos iluminados de um dia e as estações do ano; verificação do movimento das estrelas em relação ao horizonte; posições fixas aparentes das estrelas na esfera celeste; movimentos da Terra, da Lua e demais corpos celestes; compreensão das diferentes distâncias dos corpos celestes vistos no céu; cometas, planetas e satélites do sistema Solar e outros corpos celestes; modelo de Sistema Solar com tamanhos proporcionais de seus planetas e satélites e respectivas distâncias em escala; conceitos de força da gravidade; fenômeno das marés; estrutura da Terra, estabelecendo relações espaciais e temporais em sua dinâmica e composição; comparação entre as teorias geocêntrica e heliocêntrica; pensamento astronômico da civilização ocidental nos séculos XVI e XVII; estrutura da galáxia e do Universo e os modelos que as explicam; valorização do conhecimento historicamente acumulado, considerando o papel de novas tecnologias e o embate de idéias nos principais eventos da história da astronomia até os dias de hoje.

Artigos sobre o ensino de astronomia publicados na literatura científica nacional foram analisados por Iachel (2009) e Marrone Júnior (2007), os quais apresentam os seguintes conteúdos mais abordados: Terra (forma, constituição, campo gravitacional, rotação), órbitas planetárias, astronomia observacional, instrumentos astronômicos, estrelas, cosmologia e astrofísica.

Como último exemplo de sugestões de conteúdos em astronomia para os anos iniciais do ensino fundamental, apresentamos parte de nossos resultados de uma pesquisa anterior (LANGHI, 2004), que aborda temas a serem estudados em um possível programa de formação continuada ou na preparação de materiais didáticos:

OBSERVAÇÃO DO CÉU: noções de localização no espaço, movimento aparente dos astros, diferenças das estrelas, constelações, cartas celestes, constelações da época, condições para observações astronômicas.

SISTEMAS DE MEDIDAS: tempo universal, magnitude aparente, tamanho aparente, esfera celeste, localização de um astro no céu, medição dos astros, medidas de distâncias aparentes, medidas de distâncias reais, unidade astronômica, ano-luz.

INSTRUMENTOS ASTRONÔMICOS: tipos de telescópios, ampliação de um telescópio, ampliação máxima de um instrumento, acessórios de instrumentos astronômicos, luminosidade de um telescópio, mapas lunares, mapas estelares, sugestões para uma observação de qualidade, construção artesanal de telescópios e outros instrumentos astronômicos.

SISTEMA SOLAR: observação da Lua e do Sol, observação dos planetas, Júpiter, Saturno, Marte, Vênus, Mercúrio, Urano, Netuno, Plutão, asteróides, cometas, meteoros.

OBJETOS DE CÉU PROFUNDO: estrelas, estrelas duplas, estrelas variáveis, aglomerados estelares, aglomerados abertos, aglomeradas globulares, nebulosas, galáxias.

FENÔMENOS CELESTES: satélites artificiais, chuvas de meteoros, ocultações, trânsitos, novas e supernovas, eclipses, eclipses solares, eclipses lunares, dia/noite, estações do ano, fases da Lua.

TECNOLOGIA ESPACIAL BRASILEIRA: breve histórico do programa espacial, o astronauta brasileiro, satélites nacionais, investimentos em tecnologia espacial no Brasil, funcionamento de foguetes, monitoramento do meio ambiente, lixo espacial.

APOIO AO PROFESSOR: sugestões bibliográficas, sugestões de páginas na internet, endereços dos principais observatórios e planetários do país, tabelas, mapas, pôsteres, disponibilização de materiais, instrumentos e experimentos, respostas às perguntas mais freqüentes sobre astronomia.

PROPOSTAS DE PROJETOS: projetos observacionais e de coleta de dados para professores e alunos, construção de telescópios artesanais, parcerias com amadores, observatórios e planetários, utilização de verba pública de secretarias municipais e estaduais de educação para a compra (ou construção) de telescópios, binóculos e instrumentos didáticos de astronomia, além da busca de parcerias com universidades pelos professores.

Diante das propostas acima analisadas com relação aos conteúdos de astronomia relacionados ao trabalho docente para os anos iniciais do ensino fundamental, é possível sintetizar a tabela 09, em que apresenta as fontes consultadas e as temáticas por elas abordadas. Consideramos tais fontes como uma amostragem, uma vez que não foi objetivo de nosso trabalho esgotar a consulta a todas as produções nacionais que contemplam referências a conteúdos de astronomia para este nível de ensino.

Tabela 09 – Síntese das fontes consultadas que abordam o ensino de conteúdos de astronomia.

Portanto, analisando todos estes exemplos de conteúdos considerados neste item, e baseando-nos nas propostas oficiais para a educação brasileira, bem como nos resultados das pesquisas da área, entendemos que os conceitos referentes à forma da Terra, campo gravitacional, dia e noite, fases da lua, órbita terrestre, e estações do ano, constituem-se em um conjunto de seis conteúdos teóricos básicos e fundamentais para que o professor dos anos iniciais do ensino fundamental atue como um mediador na preparação de um alicerce sólido a fim de que o aluno construa posteriores conhecimentos, de modo a compreender estes e outros fenômenos astronômicos cotidianos (BARRABÍN, 1995; TRUMPER, 2001; PEÑA e QUILEZ, 2001; SEBASTIÁ, 1995). Tratando-se de natureza mais prática, há um sétimo conteúdo emergente apontado também pela pesquisa sobre educação em astronomia e pelos documentos oficiais da educação, conforme resumidamente apresentada pela tabela 09: a astronomia observacional; esta inclui o reconhecimento de determinadas constelações, sua importância histórica e cultural, e a produção artesanal de telescópios refratores e refletores a custos inferiores aos praticados no mercado, já que não há empresas deste tipo de equipamento em todo o território nacional, embora a utilização destes instrumentos no ensino seja apoiada pelos PCN (BRASIL, 1997) e pelos resultados de pesquisas da área (BEATTY, 2000; TOWNSEND, 1998; GOULD, DUSSAULT e SADLER, 2007; TORRES, 2004; MALLMANN e RASIA, 2000; ORMENO, 2000).

Assim, à base de trabalhos publicados na área da educação em astronomia (alguns deles já considerados em um item anterior sobre as concepções alternativas mais comuns) e do campo de conhecimentos constituído até o momento, poderíamos atribuir a este conjunto de sete conceitos básicos, uma importância fundamental, na qual poderia se basear, inicialmente, a estruturação de programas de formação docente planejados para os anos iniciais do ensino fundamental, visando o direito que o jovem, em idade escolar, possui de conhecer, no mínimo, estes sete conceitos nucleares. A este conjunto, portanto, chamaríamos de astronomia essencial para o ensino fundamental, que se localizariam no âmbito de uma alfabetização astronômica, podendo permear os saberes disciplinares e os saberes didáticos do conteúdo a ser ensinado, para todo o professor que pretende atuar neste nível de ensino, dentro de nosso contexto nacional. Quanto aos principais estudos que demonstraram a existência e a persistência de concepções alternativas para estes sete tópicos são (dedicamos o item 2.2.2 desta tese para o tratamento geral das concepções alternativas em astronomia):

Forma da Terra e campo gravitacional: Jones, Lynch e Reesinch (1987, apud BARRABÍN, 1995); Nussbaum e Novak (1979); Schoon (1992, apud BARRABÍN, 1995); Vosniadou (1989, apud TRUMPER, 2001); Lightman e Sadler (1993, apud TRUMPER, 2001); Nardi e Carvalho (1996); Baxter (1989); Zeilik (1998); Harres, Rocha e Henz (2008); Cubero (1989); Nussbaum (1985); Vosniadou e Brewer (1992); Bar et al (1994); Berger e Brower (1991); Gustone e White (1981); Sneider e Pulos (1983); Stead e Osborne (1981).

Dia e noite: Klein (1982, apud BARRABÍN, 1995); Brewer et al (1988, apud TRUMPER, 2001); Lightman e Sadler (1993, apud TRUMPER, 2001); Vosniadou e Brewer (1994); Camino (1995); Baxter (1989); Trumper (2001); Vega (2001).

Fases da Lua: Baxter (1989); Brewer et al (1988, apud TRUMPER, 2001); Lightman e Sadler (1993, apud TRUMPER, 2001); Camino (1995); Baxter (1989); Peña (2001); Stahly (1999); Trumper (2001); Zeilik (1998); Iachel et al (2008); Saraiva et al (2007); Trevisan e Puzzo (2006).

Órbita terrestre: Durant et al (1989, apud TRUMPER, 2001); Giordan e de Vecchi (1987, apud BARRABÍN, 1995); Kapterer e Dubois (1981, apud BARRABÍN, 1995); Acker e Pecker (1988, apud TRUMPER, 2001); Barrabín (1995); Trumper (2001).

Estações do ano: Schoon (1992, apud BARRABÍN, 1995); Brewer et al (1988, apud TRUMPER, 2001); Lightman e Sadler (1993, apud TRUMPER, 2001); Camino (1995); Barrabín (1995); Baxter (1989); Trumper (2001); Lima e Trevisan (2006); Lima (2006).

Astronomia observacional: Vosniadou (1987, apud TRUMPER, 2001); Scalvi et al (2006); Alves e Zanetic (2008).

Ao evidenciar este conjunto mínimo de conteúdos básicos que o professor dos anos iniciais do ensino fundamental precisaria conhecer, sob o nosso ponto de vista, intencionamos apresentar uma visão geral dos resultados que as pesquisas em ensino de ciências têm demonstrado como conceitos principais em astronomia, e não como uma estruturação curricular rígida e baseada na racionalidade técnica.

Por isso, perguntamos: quem, afinal, define e seleciona os conteúdos de astronomia a serem ensinados? Ampliando a questão (e isso vale não apenas para a astronomia), quem é responsável por estabelecer determinados temas de ensino nas escolas? Tal problemática parece ser histórica e tradicional, pois segundo a proposta curricular para o primeiro segmento do ensino fundamental da Educação de Jovens e Adultos (BRASIL, 1997a), no Ensino Fundamental e na EJA, persiste, há mais de trinta anos, uma distribuição tradicional dos conteúdos, caracterizada pela seguinte seleção e organização: ar, água e solo, na 5ª série; seres vivos, na 6ª série; corpo humano, na 7ª série; física e química, na 8ª série; ecologia é vista na 5ª ou 6ª série; astronomia possui lugar variável, aparecendo geralmente na 5ª série; e evolução, na 6ª série, junto com estudos dos seres vivos. O documento ainda salienta que esta abordagem foi consolidada através dos livros didáticos, e encontra-se, atualmente, bem arraigada entre os professores de ciências, os quais vêm repetindo a mesma fórmula, com pequenas variações – como a inserção, na 5ª série, de temas mais atuais, ligados às questões ambientais ou à saúde.

Além disso, Pietrocola (2005) declara a influência que os exames vestibulares exercem para a determinação dos conteúdos a serem editados nos manuais didáticos e, consequentemente, nas aulas. As Orientações Curriculares para o Ensino Médio enfatizam, igualmente, que os conteúdos e a metodologia de ensino, praticados na educação básica, são voltados principalmente para os exames vestibulares, propagando-se a idéia de que as melhores escolas são aquelas que mais aprovam nestas provas (BRASIL, 2006). Por outro lado, Carvalho (1997) relata que os conteúdos de ciências, para os anos iniciais do ensino fundamental, devem ser selecionados levando em conta o mundo físico próprio da criança, onde ela vive e brinca.

Esta imposição de conteúdos, porém, pode gerar insatisfações e desmotivações da parte dos alunos com relação aos temas abordados em sala de aula. Investigando diversos conteúdos relacionados ao ensino da astronomia, Shipman (1990) afirma que os alunos não pensam como os professores, havendo barreiras de compreensão entre eles. Muitos professores querem transformar seus alunos em memorizadores, e não em pensadores. De fato, algumas metodologias para o ensino da astronomia não têm motivado de maneira significativa os estudantes, pois, segundo Tsubota (1990), embora pareça haver um breve interesse intrínseco pela astronomia no espaço escolar (curiosidade), o desinteresse é geral, pois alguns alunos têm se desapontado com os métodos de ensinar astronomia, havendo talvez uma discrepância entre a metodologia e os materiais que o professor utiliza e o interesse dos alunos. Por isso, consideraremos, no item seguinte, algumas breves possibilidades metodológicas para o ensino da astronomia.

 

Este texto é parte integrante da tese de doutoramento:

LANGHI, R. Astronomia nos anos iniciais do ensino fundamental: repensando a formação de professores. 2009. 370 f. Tese (Doutorado em Educação para a Ciência). Faculdade de Ciências, UNESP, Bauru, 2009.