2.2.2

2.2.2 Concepções alternativas em astronomia

 

Diversos estudos sobre as idéias de senso comum (concepções alternativas) presentes nos atores do ambiente escolar, professores e alunos, foram efetuados durante um período da pesquisa em ensino de ciências denominado por Cachapuz et el (2005) de movimento das concepções espontâneas, uma das principais linhas da investigação na didática das ciências. Comentando sobre os diferentes termos utilizados pelos pesquisadores, Saujat (2004) apresenta como sinônimos os termos representações (França) e crenças (países anglo-saxões), ambos remetendo-se ao significado do que normalmente conhecemos por concepções. Outros termos utilizados na literatura da área para representar as concepções alternativas são: conceitos intuitivos, idéias ingênuas, concepções prévias, e pré-conceitos (TEODORO, 2001).

Alguns dos autores pioneiros nos estudos sobre as concepções alternativas no ensino de ciências, apresentados por Peduzzi (2005) foram: Viennot (1979), Solis Villa (1984), Osborne et al (1983) e Driver (1986 e 1989). E embora Bachelard (1977) não tenha usado o termo concepção alternativa, ele também comenta sobre um conhecimento vulgar que deve ser transformado em conhecimento científico. Assim, identifica-se o final da década de 1970 como o marco das pesquisas sobre as concepções alternativas, e que atualmente já se mostra amplamente discutido (CACHAPUZ et el, 2005).

Embora este movimento de pesquisa já tenha tido o seu auge, as concepções alternativas em astronomia parecem persistir atualmente. Para explicar fenômenos de astronomia, tende-se a utilizar representações idealizadas e simplificadas, distantes do observável do cotidiano, provocando nas crianças, em especial, idéias prévias, ou concepções espontâneas, com opiniões que oferecem dificuldades conceituais (BARRIO, 2007). De fato, segundo Oliveira (1997), poucas pessoas têm a mais vaga idéia de nossa situação no cosmo ou da hierarquia universal dos conjuntos de corpos celestes e de nossa posição na Terra, havendo professores que explicam erroneamente com embasamento unicamente em livros didáticos. Partindo para o outro extremo, esta situação de insegurança com relação à astronomia pode levar o professor à omissão total no seu ensino de conteúdos desta natureza, conforme atesta Trevisan (2004): o ensino da astronomia é incipiente, muito pouco ou quase nada é ensinado nas escolas. Esta insegurança tem como uma das origens principais a sua formação inicial. Apesar de alguns tópicos de astronomia já fazerem parte do currículo escolar, a grande maioria dos professores não foi capacitada para ministrar este conteúdo durante seus cursos de graduação, com rara exceção do professor de física do ensino médio, e mesmo assim, em poucos casos. Isto porque cabe ao professor dos anos iniciais do ensino fundamental, ou ao professor de geografia ou ciências, em sua maioria formados em Biologia, lecionar estes temas (DOTTORI, 2003).

Comprovando esta situação, a pesquisa de Lima e Maués (2006) mostra que muitas professoras dos anos iniciais do ensino fundamental não dominam conceitos básicos de astronomia, por exemplo, as causas do dia e da noite, as estações do ano, as fases da lua, e visualização dos planetas à vista desarmada. E alguns dos resultados apontados pelos estudos de Vianna et al (2007), que analisaram as práticas pedagógicas de professores que vivenciaram momentos de ação e reflexão em um curso de formação continuada de curta duração de astronomia, foram: os professores criticaram sua formação falha em conteúdos de astronomia, ficaram surpresos diante de erros de livros didáticos, sentiam-se inseguros ao ensinar, e usavam fontes alternativas sem critério de seleção.

Pesquisas internacionais também indicam a mesma problemática, como a realizada por Afonso (1995), Krauss (2003) e outros. Rodríguez (2007), por exemplo, da Espanha, estudou as representações mentais de professores a respeito do universo e seus modelos cosmológicos, e desvendou, dentre outras coisas, uma formação em ciências que não possibilita aos alunos formar concepções cientificamente válidas de astronomia e seus modelos, e que professores formados em física também apresentaram concepções do universo diferentes dos modelos cientificamente aceitos.

Durante alguns cursos de formação continuada oferecidos aos professores do ensino médio no México, através da Universidade Nacional do México (UNAM), verificaram-se as concepções mais comuns dos docentes acerca de conteúdos de astronomia, e que seus interesses principais giravam em discussões em torno de tópicos tais como: os movimentos da esfera celeste (muitos não se davam conta do movimento aparente das estrelas, apesar de saberem que a Terra gira, mas sem uma associação entre estes dois movimentos); as fases da lua (muitos acreditavam que elas ocorrem devido a projeção da sombra da Terra em nosso satélite natural); as estações do ano (muitos entendiam que o mecanismo das mudanças climáticas associadas às estações se dava em decorrência às diferentes distâncias da Terra ao Sol ao longo de um ano); alguns estavam absolutamente convencidos de que a Lua influencia no crescimento das plantas e dos cabelos; cerca da metade dos professores estavam firmemente convencidos da validade da astrologia (com menções a piramidologia, triângulo das Bermudas, etc); cerca de um quarto dos docentes aceitavam e defendiam a existência de OVNIs, e mesmo após discussões sobre relatividade e viagens interestelares, eles ainda insistiam com frases do tipo: “pode até ser, mas...” e “os cientistas estão enganados...” (HERRERA, 1990).

Tabela 07 – Pesquisas sobre as concepções do modelo Terra-Sol (BARRABIN, 1995).

 

Diversos estudos na linha das concepções apresentaram seus resultados comprovando a veracidade da persistência desta problemática. Por exemplo, Barrabín (1995) resume num quadro esquemático as investigações que ele considera mais relevantes sobre as concepções do modelo Terra-Sol (tabela 07).

Tomando-se como base Trumper (2001), é possível alistar algumas das pesquisas mais destacadas sobre conceitos astronômicos nos últimos 20 anos, conforme a tabela 08.

 

Tabela 08 – Algumas pesquisas sobre concepções alternativas em astronomia (TRUMPER, 2001).

 

Peña (2001) ainda alista outros principais estudos realizados sobre concepções alternativas em Astronomia em alunos e/ou professores: Fernandez e Marales (1984), Jones e Lynch (1987), Baxter (1989), Nussbaum (1989), Lanciano (1989), Vosniadou e Brewer (1990), Afonso et al (1995), Camino (1995), De Manuel (1995), De Manuel e Montero (1995), Garcia Barros et al (1996), Domenech e Martinez (1997), Lanciano (1997), Moreno (1997), Navarrete (1998), Parker e Heywood (1998), Stahly et al (1999), Ten e Monros (1984), Domenech et al (1985), Zugasti (1996), Moreno e Gutierrez (1998), Anguita (1995).

Numa seleção bibliográfica comentada sobre investigações didáticas em Astronomia, Sebastiá (1995) apresenta em ordem cronológica os seguintes trabalhos, cuja maioria inclui o tema de concepções alternativas: Nussbaum (1986), Treagust e Smith (1986), Viglietta (1986), Domènech e Casasus (1987), Jones et al (1987), Baxter (1989), Lanciano (1989), Nussbaum (1990), Baxter (1991), Ojala (1992), Lightman e Sadler (1993), Sharp e Moore (1993), Tebbutt (1993 e 1994). Procure por mais artigos internacionais, clicando aqui. No Brasil, alguns trabalhos semelhantes são: Nardi (1991 e 1994), Teodoro (2000), Langhi (2005), Puzzo (2005) e Lima (2006), por exemplo.

É notável a semelhança dessas concepções em relação aos erros conceituais em livros didáticos. Assim, embora estes não sejam os únicos responsáveis, não se pode descartar a hipótese de que uma das principais conseqüências desses erros é a geração de inúmeras concepções alternativas tanto em alunos como em professores, que não foram adequadamente preparados com conteúdos de astronomia durante a sua formação e, por isso, apóiam-se no livro didático como principal fonte de consulta em busca de informações acerca de conteúdos de astronomia (OSTERMANN; MOREIRA, 1999; BRETONES, 1999; MALUF, 2000).

A pesquisa sobre erros conceituais em livros didáticos de ciências, incluindo o tema astronomia, já vem sendo realizada por muitos especialistas na área, significando uma certa contribuição para a educação brasileira. Dentre seus autores, podemos citar: Pretto (1985), Bizzo (1996), Trevisan (1997), Canalle (1994, 1997), Fracalanza (1992) e Paula e Oliveira (2002). Mais nomes são citados em um trabalho realizado por Ferreira e Selles (2003), em que são analisados periódicos nacionais sobre a produção acadêmica brasileira que investiga livros didáticos em relação ao ensino de Ciências: Axt e Bruckmann, Pimentel, Monteiro Junior e Medeiros, Ostermann e Ricci, Tiedemann, e Mohr. Outros trabalhos, tais como os de Tignanelli (1998), Boczko (1998) e Trevisan (1997), mencionam a falta de cuidados com a terminologia utilizada nos textos, pois palavras como giro, rotação, revolução ou translação são muitas vezes empregadas sem distinção, podendo causar possíveis problemas de ensino e aprendizagem em astronomia.

Assim, acredita-se que erros conceituais em livros didáticos constituem-se em um relevante, porém, não principal fator contribuinte para problemas no processo de ensino e aprendizagem do referido tema. Isto nos leva a refletir sobre a persistência das seguintes concepções alternativas em alunos e professores, conforme fundamentação na literatura da área, considerada nos parágrafos anteriores:

 

Sol

 

Terra

 

Lua

 

Planetas e outros corpos menores do Sistema Solar

 

Constelações e objetos além do Sistema Solar

 

Aspectos históricos, filosóficos e CTSA

Caso um histórico (trajetória) dos momentos formativos em conteúdos de astronomia de alguns professores pudesse ser traçado, talvez fosse possível encontrar neles intrínsecas concepções sobre fenômenos astronômicos, incluindo mitos e crenças, que tiveram origem em trajetórias formativas anteriores, como na sua própria infância (LANGHI, 2004) e, persistindo durante anos, atravessaram intactas outros momentos formativos em que deveriam ser desestabilizadas e modificadas, tais como em sua formação inicial. Contudo, por inexistência de tais momentos, as concepções acompanharam toda a trajetória de vida pessoal e profissional do docente, de modo que foram incorporadas em seu constructo pessoal (ZEICHNER, 1993; GARCIA, 1999; GÓMEZ, 1992; GUARNIERI, 2000; MIZUKAMI, 1996), sendo que agora, em sala de aula, seus alunos por sua vez as apreendem, denotando uma dominância de paradigmas e reforçando ou (re)formulando concepções espontâneas, sem que o professor se aperceba disto. Esta situação o induz, portanto, a uma falsa ou aparente segurança no processo de ensino-aprendizagem, porém, não o capacita e nem o habilita em sua prática pedagógica com relação ao processo de ensino e aprendizagem de fundamentos de astronomia.

A formação inicial limitada em astronomia dos docentes parece levá-los a algumas situações gerais de despreparo: sensação de incapacidade e insegurança ao se trabalhar com o tema, respostas insatisfatórias para os alunos, falta de sugestões de contextualização, bibliografia e assessoria reduzida, e tempo reduzido para pesquisas adicionais a respeito de tópicos astronômicos (LANGHI, 2004).

Tentando superar essas dificuldades, os docentes vão em busca das mais variadas fontes de consulta para suas aulas. Dependendo da fonte consultada ou da resposta obtida, suas concepções alternativas podem ser alteradas ou reforçadas, ou ainda novas concepções poderão ser geradas. Algumas dessas concepções alternativas sobre fenômenos astronômicos podem ficar firmemente arraigadas no professor desde o tempo em que o mesmo estudava enquanto aluno, persistindo até durante a sua atuação profissional e fazendo parte de seus saberes disciplinares.

Assim, o docente não capacitado e não habilitado para o ensino da astronomia durante sua formação inicial promove o seu trabalho educacional com as crianças sobre um suporte instável, cuja base pode vir das mais variadas fontes de consulta, desde a mídia até livros didáticos com erros conceituais, proporcionando uma propagação de concepções alternativas.

Figura 02 – Esquema do ciclo de propagação de concepções alternativas sobre astronomia incorporadas nos saberes disciplinares dos professores durante algumas de suas trajetórias formativas (LANGHI, 2007a).

Estas considerações apontam para um ciclo de propagação de concepções alternativas incorporadas nos saberes docentes de conteúdo disciplinar sobre tópicos de astronomia que perpassam a trajetória formativa docente, expondo o despreparo do professor, que tenta ser superado com a busca de fontes alternativas de informações, mas que também não garantem um embasamento seguro para a sua formação. Esta continuidade dos erros conceituais sobre fenômenos astronômicos no ensino de ciências durante a trajetória pessoal e profissional do professor, demonstrada esquematicamente na figura 02, precisa ser interrompida.

No Brasil, devido ao fato de os currículos acadêmicos das universidades não acompanharem os avanços e nem atualizarem as novas descobertas na área da astronomia e cosmologia, de acordo com a SBPC (2005), a grande maioria dos estudantes de ciências exatas e naturais termina seus cursos de graduação sem terem adquirido um conhecimento ao menos rudimentar sobre os fundamentos da nova cosmovisão, e repletos de concepções espontâneas.

Mas, a preocupação central não deveria se limitar apenas aos saberes disciplinares, ou seja, ao conhecimento do conteúdo a ser ensinado. Lima e Maués (2006) tentam mudar o foco das preocupações de pesquisas que tentam comprovar que o professor “não sabe conteúdo”, e questionam se o único caminho para melhorar a qualidade do ensino de ciências nos anos iniciais seria apenas sanar as dificuldades dos professores sobre conteúdos de ciências. Trazem à atenção o excesso de pesquisas na área que mostram a falta do domínio de conteúdo pelo docente, denominando de modelo do déficit de conhecimento de conteúdo do professor, salientando que é necessário romper com este modelo.

De fato, os saberes disciplinares não são os únicos saberes docentes (GAUTHIER et al, 1998; PORLÁN e RIVERO, 1998; GARCIA, 1999; SHULMAN, 1987; DEMAILLY, 1997; AZZI, 2000; PIMENTA, 2000; TARDIF, 2004; PACHECO, 1995; BORGES, 2004). Seria impraticável exigir do professor dos anos iniciais do ensino fundamental o domínio de todos os campos do conhecimento. Como mostra Lima e Maués (2006), este período é marcado pela complexidade e dificuldade de integrar vários tipos de saberes e conteúdos, pois o profissional desse nível necessita conhecer o suficiente sobre diversas áreas do conhecimento, porém, ele não precisa ser especialista em cada um desses ramos do conhecimento, pois o pleno domínio de todos os conteúdos não é necessário ao ensino nos anos iniciais.

Portanto, esta breve visão panorâmica do estudo das concepções alternativas em astronomia, da situação da educação em astronomia no Brasil, e a revisão histórica sobre este tema dos outros países, que consideramos anteriormente, leva-nos a salientar a importância do papel exercido pelas associações, grupos de pesquisas, observatórios e planetários em promover mudanças e pressionar setores governamentais da educação no sentido de incitar mobilizações que resultem em reformas nacionais para o desenvolvimento da pesquisa, ensino e divulgação da ciência astronômica, numa tentativa de desmistificá-la.

 

Este texto é parte integrante da tese de doutoramento:

LANGHI, R. Astronomia nos anos iniciais do ensino fundamental: repensando a formação de professores. 2009. 370 f. Tese (Doutorado em Educação para a Ciência). Faculdade de Ciências, UNESP, Bauru, 2009.