2.1.4

2.1.4 Os saberes docentes

A profissionalização da ocupação de professor só poderá acontecer mediante a definição e validação dos saberes docentes, conforme visto no item anterior. Mas, qual o significado que se deve denotar para o termo saberes? A maioria dos autores da área de formação de professores tem considerado de igual significado os termos saber e conhecimento. Outros, porém, apontam uma distinção entre eles. Azzi (2000), por exemplo, mostra que o saber é uma fase do desenvolvimento do conhecimento, em que a pessoa está organizando unidades preliminares de conhecimento, que por enquanto atendem as necessidades práticas imediatas, mas não alcança ainda a organização metódica do conhecimento em si. Neste sentido, a diferença básica entre o saber e o conhecimento, para Azzi (2000), é que o primeiro é construído pelo próprio indivíduo, ao passo que o segundo é elaborado por pesquisadores e teóricos. Por outro lado, Gauthier et al (1998) consideram saber e conhecimento como sinônimos, afirmando que o “ensino exige saberes, ou conhecimentos”. Ao traduzir a palavra em inglês (knowledge) normalmente usada para designar este termo, Borges (2004) usa savoir ou connaissance em francês, e saberes ou conhecimentos em português. A noção de saber para Tardif (2004) abrange um sentido amplo que engloba os conhecimentos, competências e habilidades, não sendo inatos, mas construídos ao longo de uma trajetória, ou seja, envolve aquilo que foi muitas vezes chamado de saber, de saber-fazer e de saber-ser. Para outros autores, há uma clara distinção cronológica entre competências e saberes, pois as competências mobilizam recursos cognitivos (ou saberes), conforme Perrenoud (2002), e raramente os saberes estão ligados a uma única competência, sendo que esta é considerada pragmática, algo para se resolver em campo. Garcia (1999) utiliza o termo conhecimento para se referir não apenas a “áreas do saber pedagógico (conhecimentos teóricos e conceituais), mas também a áreas do saber-fazer (esquemas práticos de ensino), assim como de saber porquê (justificação da prática). Para Pimenta (2000), o saber pedagógico também é pragmático.

Assim, o conhecimento profissional do professor é um conjunto de saberes teóricos e experienciais que não pode ser confundido com uma somatória de conceitos e técnicas, pois de acordo com os Referenciais para Formação de Professores (BRASIL, 2002a), o conhecimento profissional docente é aquele que favorece o exercício autônomo e responsável das funções profissionais, marcadas pela imprevisibilidade, singularidade e complexidade. Deste modo, chamamos de conhecimento profissional docente aquele conjunto de conhecimentos (ou saberes) que o professor deve dominar para exercer o seu trabalho como um profissional da educação.

Este conhecimento dos professores pode ser dividido, segundo Porlán e Rivero (1998), em: o que já existe neste ramo profissional (conhecimento profissional dominante) e o que deveria existir (conhecimento profissional desejável). O conhecimento profissional dominante (ou existente) é o resultado da justaposição de componentes baseados em dimensões epistemológica e psicológica, que são de naturezas diferentes e gerados em momentos e contextos distintos, manifestando-se em diferentes tipos de situações. Quanto ao conhecimento profissional desejável, também poderia ser chamado de conhecimento profissional prático, conforme a proposta de Porlán e Rivero (1998), e trata-se de um tipo de conhecimento igual ao do médico ou do juiz, com um forte componente prático. Já abordado no item anterior, o conhecimento prático preconiza três requisitos: ser rigoroso e crítico quanto ao tratamento dos problemas profissionais; reconhecer, valorizar e melhorar as pautas profissionais de atuação no cotidiano; abordar os dilemas éticos, como toda intervenção social. Por outro lado, o conhecimento prático não é: um saber acadêmico, nem uma disciplina concreta, e não segue as normas epistemológicas do conhecimento científico; não é uma manifestação particular do conhecimento experiencial e cotidiano; não é um conhecimento filosófico ou metadisciplinar.

 Deste modo, a natureza dos saberes está relacionada ao ato de ensinar, sendo um conjunto dos conhecimentos, competências e habilidades que um profissional da educação necessitar abarcar. O saber, conforme Gauthier et al (1998), pode ser definido sob três concepções diferentes: subjetividade, juízo e argumentação. Tendo a subjetividade como origem do saber, considera-se que o saber é todo tipo de certeza subjetiva produzida pelo pensamento racional. Neste pensamento, o saber se fundamenta na racionalidade e procede de uma constatação e demonstração lógica. Sob a concepção do juízo, dizemos que o saber é um juízo verdadeiro e não é fruto de uma intuição nem de representação subjetiva, como no caso anterior. É conseqüência de uma atividade intelectual e o juízo a respeito de fatos. Sob a luz da argumentação, o saber é uma atividade discursiva por meio da qual o sujeito tenta validar uma proposição ou uma ação, usando a lógica, dialética ou retórica, incluindo o ato de saber apresentar razões.

  O conhecimento, para Pacheco (1995), pode ser definido sob três visões: filosófica (conhecimento subjetivo, especulativo), experimental (conhecimento do senso comum), e científica (conhecimento objetivo, nomotético). Mas, quando se fala em conhecimento do professor, há uma referência com um saber, ou conjunto de saberes, que corresponde ao conceito aristotélico de sabedoria (ciência e entendimento intuitivo). Isto reflete as concepções, percepções, experiências pessoais, crenças, atitudes, expectativas, e dilemas do professor. O que eles pensam, fazem, escrevem e verbalizam deve-se a um conhecimento que tem um sentido de discurso sobre uma prática ou um modo de ação.

 Além disso, o conhecimento é guiado pelos interesses e necessidades humanas, sendo o saber analisado e interpretado sob diferentes perspectivas (racionalismo, fenomenologia, ciência social crítica), que indicam diversos tipos de saberes, explicados por Habermas (1990) através da “teoria dos interesses constitutivos de saberes”, onde o saber do professor é um saber comunicacional que, para o mesmo autor, pode ser explicado pelo conceito de “racionalidade” ou “razão comunicacional”. Neste sentido, Pacheco (1995) afirma que o conhecimento docente integra diversos saberes que, ao responderem ao interesse técnico, dependem de três conceitos sobre ensino-aprendizagem: cientificidade (a educação e o ensino são atividades teóricas, com uma fundamentação científica); normatividade didática (a educação e o ensino são atos racionais que obedecem a uma teoria tecnológica, na base de um conjunto de regras e normas aplicadas mediante um saber técnico); pragmatismo didático (a educação e o ensino são atividades práticas, intuitivas e criativas, só possíveis mediante um conhecimento idiossincrático, ou seja, pela experiência e subjetividade). O autor defende a idéia de que a educação e o ensino são atividades práticas, por sua natureza, mas não sem uma teoria de suporte e de fundamentação epistemológica.

 As ciências cognitivas distinguem três tipos de conhecimentos, conforme Perrenoud (1999): conhecimentos declarativos (descrevem a realidade sob a forma de fatos, leis, constantes e regularidades); conhecimentos procedimentais (descrevem o procedimento a aplicar para obter algum tipo de resultado, por exemplo, os conhecimentos metodológicos); conhecimentos condicionais (determinam as condições de validade dos conhecimentos procedimentais).

Apesar das definições de saberes docentes na literatura da área, Gauthier et al (1998) alertam contra certas concepções de senso comum sobre os saberes do ensino, revelando que muitos afirmam que para ser professor, basta: conhecer o conteúdo, ter talento, ter bom senso, seguir a sua intuição, ter experiência, ter cultura. Concordando com este cuidado, Perrenoud (2002) cita muitos alunos que, querendo se tornar professores, possuem a ilusão de que basta dominar os saberes para transmiti-los a crianças ávidas por se instruir, reafirmando aquela concepção simplista do trabalho docente, já mencionada no item anterior.

Se esta hipótese se mostrasse verdadeira, então qualquer pessoa que demonstrasse ter tais qualificações e saberes, independentemente de sua formação, poderia, em tese, atuar como professor. Quanto aos saberes de senso comum e simplificadores acima citados, vale enfatizar que todos são importantes para qualquer profissional, independente da área de atuação, e não formam uma base única em que se deve apoiar a profissão de professor.

Sabe-se que um professor constrói uma parte de seus saberes na ação, não simplesmente aplicando um saber que foi produzido por outros. A profissão docente exige saberes particulares que servem de base para a prática profissional do ato de ensinar. A pergunta de Shulman (1986), a saber, o que o professor precisa conhecer no mínimo para atuar como tal, indica que não existe um conhecimento único, mas um corpo de saberes de diferentes naturezas. Esta base de saberes e conhecimentos costuma ser bem limitada durante a formação inicial, mas, em geral, se aprofunda com a experiência docente. Segundo Gauthier et al (1998), para um professor, estes saberes lhe são próprios, sendo uma construção única, ímpar, só dele; mas há também saberes que lhe foram embutidos ao longo de sua trajetória profissional e pessoal, e que são iguais aos dos outros professores, sendo saberes comuns a todos. Por isso, Guarnieri (2000) mostra a importância da articulação de saberes, pois a aprendizagem profissional ocorre à medida que o professor vai efetivando a articulação entre o conhecimento teórico-acadêmico, o contexto escolar e a prática docente. Mostrando a importância desta construção de saberes com a prática docente, Garcia e Porlán (2000) apresentam cinco grandes campos dos saberes docentes, propondo uma progressão profissional que abranja tais campos e que se relacionam com as concepções e dificuldades sobre: o conhecimento científico, as idéias dos alunos, o conhecimento escolar, a metodologia didática e a avaliação.

Conforme analisado anteriormente, estas questões sobre os saberes têm dominado a pesquisa nos últimos 25 anos, segundo Tardif (2004), e marcado a profissionalização dos professores em vários países. A partir de 1980, esta questão fez surgir dezenas de milhares de pesquisas no mundo anglo-saxão e na Europa, aparecendo diversas tipologias e concepções sobre os saberes. Mas, especialmente desde a década de 90, estes estudos vêm constituindo uma forma riquíssima de investigação para se levantar os fundamentos e as bases onde eles se alicerçam (SILVA, 2000). Os trabalhos de pesquisa têm mostrado a importância deste estudo dos saberes docentes, das concepções, das teorias implícitas, dos dilemas e do conhecimento prático que fazem parte da rotina de trabalho do professor, procurado entender como o saber está relacionado com a pessoa, a identidade dos professores, com sua experiência de vida, sua história profissional, suas relações com alunos em sala de aula e com outros atores na escola (TARDIF, 2004). Com estas pesquisas, novas questões são colocadas: teoria versus prática, formação inicial versus formação continuada, conhecimento cientifico versus conhecimento pedagógico, e a análise de cursos que formam professores sob a perspectiva dialógica-problematizadora. Esta última abarca idéias que têm contribuído para a proposição de modificações em alguns programas de formação inicial, como por exemplo, as alterações efetuadas no curso de Licenciatura em Física da UNESP (Universidade Estadual Paulista) da cidade de Bauru, Estado de São Paulo (CAMARGO e NARDI, 2001).

Com o objetivo de se compreender a questão dos saberes dos professores, diversos trabalhos foram surgindo até atingir o ponto em que, hoje, o campo de pesquisa dos saberes docentes é bem amplo e há mais de vinte anos vem se desenvolvendo de maneira exponencial (BORGES, 2004).

Os trabalhos de Borges (2004), por exemplo, têm contribuído para uma visão panorâmica desse campo de pesquisa, pois apresentam algumas classificações destes estudos. Os programas de pesquisa sobre saberes possuem uma diversidade conceitual e metodológica, em que diferentes tipologias corroboram para identificar a complexidade deste campo, sendo que suas lacunas ainda não são exploradas, conforme Borges (2001). Esta autora as analisa, identificando três sínteses críticas importantes: Shulman (1986, apud BORGES, 2001), Daniel Martin (1992, apud BORGES, 2001) e Gauthier et al (1998, apud BORGES, 2001). Os trabalhos de Shulman categorizam cinco programas de pesquisas sobre o ensino e a docência, mas ele mesmo apresenta, por último, um sexto programa de sua própria autoria; a análise de Daniel Martin enfatiza a pluralidade metodológica das pesquisas norte-americanas sobre os professores e seus saberes, reagrupando os estudos segundo a natureza dos saberes docentes, de acordo com quatro abordagens teórico-metodológicas; e Gauthier centraliza suas investigações na natureza dos saberes subjacentes ao ato de ensinar, incluindo estudos que buscam identificar um repertório de conhecimentos dos docentes e identificando três paradigmas de pesquisas sobre o ensino.

Em um trabalho posterior, Borges (2004) apresenta um panorama geral destes e outros programas de pesquisas sobre os saberes, a formação e o trabalho dos docentes, utilizando critérios de classificação segundo o tipo de abordagem usada pela psicologia e pelas ciências humanas e sociais, associadas a estes trabalhos, identificando assim: a) pesquisas sobre o comportamento do professor; b) pesquisas sobre a cognição do professor; c) pesquisas sobre o pensamento do professor; d) pesquisas compreensivas, interpretativas e interacionistas.

Em nosso trabalho, preferimos classificar os programas de pesquisas sobre os saberes docentes conforme algumas características semelhantes que encontramos nas apresentações dos autores acima mencionados, e tentamos categorizar algumas possibilidades de aproximações, de acordo com a nossa visão geral sobre estes estudos. Desta maneira, encontramos quatro classificações de pesquisas sobre o ensino, a profissão docente e seus saberes, que: a) priorizam o conhecimento de conteúdo escolar; b) encaram o ensino como um processo e a aprendizagem como produto; c) vêem o professor como um profissional que toma decisões ao lidar com situações específicas na sala; d) levam em conta o contexto (interacionismo) e os sentimentos (subjetivismo) dos professores.

Os programas de pesquisa sobre o ensino que enfatizam o conhecimento de conteúdo como prioritário é um alerta de que os conteúdos das disciplinas a serem ensinadas constituem-se em um “paradigma perdido” (SHULMAN, 1986) no sentido de que os professores falham no domínio de muitos conceitos científicos que deveriam ser ensinados aos alunos. Um programa de pesquisa voltado para esta preocupação é criado através dos estudos de Shulman (1986, apud BORGES, 2001), apresentando um enfoque no conhecimento da matéria que os professores devem ensinar para seus alunos, e categorizando três tipos de conhecimentos que os docentes devem possuir: conhecimento da matéria ensinada, conhecimento pedagógico da matéria, e conhecimento curricular. Martin (1992, apud BORGES, 2001) categoriza estas pesquisas como possuindo uma abordagem curricular, e as descrevem como estudos que objetivam investigar a transformação dos saberes a ensinar no contexto de sala de aula. O autor destaca os trabalhos de Shulman com seus sete saberes, que funcionam como um amálgama unindo conteúdo e pedagogia. Estudos apresentados por Martin (1992, apud BORGES, 2001) chegam a enfatizar que, se existe um saber docente, este é o curricular; se existe um saber indispensável ao professor, trata-se do saber dos conteúdos que ele ensina, mesmo levando em conta outros saberes, que são encarados como complementares.

Outra categoria de pesquisa que contempla os saberes docentes é aquela que se compõem de estudos centralizados no esquema processo-produto. A classificação de Shulman (1986, apud BORGES, 2001) descreve este programa processo-produto como sendo desenvolvido desde a década de 50, em que o ensino era encarado como o processo e a aprendizagem como o produto na Educação. As pesquisas eram centradas nos estudos empíricos de sala de aula, e o rendimento dos alunos era medido por meio de testes, para se conhecer a eficácia do ensino dos professores.

Além deste programa, a classificação do mesmo autor apresentou o academic learning time (tempo de aprendizagem acadêmica), cujo programa inovou com a perspectiva de apontar os indicadores da eficácia do ensino, vinculando a eficácia do professor com o tempo de aprendizagem dos alunos, porém, continuou usando os mesmos métodos das pesquisas processo-produto.

Uma terceira categorização são as pesquisas sobre a cognição dos alunos que, segundo o mesmo autor, centram-se sobre o conhecimento dos alunos, levando em conta a intervenção dos docentes, ocupando um aspecto intermediário entre as pesquisas de tradição psicológica quantitativa, processo-produto e tempo de aprendizagem acadêmica, possuindo estratégias qualitativas vinculadas à sociolinguistica e a etnografia.

Sob um olhar da natureza dos saberes subjacentes ao ato de ensinar, incluindo um repertório de conhecimentos dos docentes, Gauthier et al (1998) acrescenta que no paradigma processo-produto, o professor é visto como um gestor de comportamentos que deve organizar os processos de ensino, visando a aprendizagem dos alunos.

Para Borges (2004), estas pesquisas abordam o comportamento do professor e baseiam-se na psicologia comportamentalista, centralizando-se no ensino eficaz e estratégico, e no comportamento dos professores ditos eficientes, sob um olhar característico do tipo processo-produto. Considera-se o conhecimento como sendo externo ao docente, e não se leva em conta aspectos subjetivos das interações entre professores e alunos. Os saberes são vistos como resultantes das pesquisas científicas sobre os procedimentos, métodos mais eficazes, e conteúdos, por exemplo.

Nota-se que Martin (1992, apud BORGES, 2001) não inclui em sua análise as pesquisas processo-produto, porque estas não se preocupam com os saberes docentes, e sim com os efeitos de suas ações.

Os trabalhos que se concentram no interacionismo e no subjetivismo do docente são identificados por Shulman (1986, apud BORGES, 2001) como focalizando a ecologia da sala de aula (classroom ecology). Neste programa de pesquisa, os estudos embasam-se na antropologia, sociologia e linguística, com uma metodologia mais qualitativa do que quantitativa. A comunidade é vista como um ecossistema social, dando-se especial atenção aos acontecimentos em sala de aula, relações interpessoais e entre os meios. O processo de ensino-aprendizagem é encarado como um continuum, e não como fatos isolados, inserindo a visão da sala de aula num contexto mais amplo, estabelecendo conexões com a escola, comunidade, cultura, sociedade. Procura-se observar aquilo que não é evidente, como os pensamentos, sentimentos e atitudes dos agentes de uma aula.

De acordo com Daniel Martin (1992, apud BORGES, 2001), as pesquisas neste paradigma subjetivo-interpretativo focalizam as dimensões fenomenológica e interacionista dos saberes docentes. Estes estudos valorizam mais a fala do que as situações e levam-se em conta as emoções, valores, concepções prévias, idiossincrasias, e histórias de vida dos professores. Para Borges (2004), estas pesquisas compreensivas, interpretativas e interacionistas focalizam o docente como uma pessoa que age e interage mediante às situações do seu cotidiano, vindo-lhe à tona concepções pessoais, emocionais, e sua história e experiência de vida. Estes tipos de pesquisas costumam combinar a fenomenologia com a psicologia, a psicanálise, a etnografia e o interacionismo. Num enfoque mais sociológico, encontram-se combinações entre o interacionismo simbólico, etnografia e etnometodologia, em que se encara o ensino como uma situação social. Nestas abordagens, o saber do professor é considerado um saber prático e experiencial, com raízes em seu trabalho cotidiano escolar. Para Gauthier et al (1998, apud BORGES, 2001), estas pesquisas reúnem o interacionismo simbólico, a etnometodologia, etnografia escolar, sociolinguística e o enfoque ecológico. Neste paradigma, o ensino é uma interação simbólica, onde o foco está nas representações que os professores possuem sobre os seus saberes e nas interações que estes estabelecem em classe.

A nossa última classificação dos paradigmas dos programas de pesquisas sobre os saberes docentes inclui o que Gauthier et al (1998, apud BORGES, 2001) denomina de enfoque cognitivista, sendo desenvolvido principalmente nas duas últimas décadas, vindo a se constituir nas chamadas Ciências da Cognição. A abordagem deste paradigma é centrada nos aspectos cognitivos, pensamento e construção dos esquemas de pensamento. As características deste programa é que o professor atua como um profissional que toma decisões ao lidar com situações específicas na sala, utilizando relações entre seus saberes.

No programa de pesquisa sobre a cognição dos professores, segundo Shulman (1986, apud BORGES, 2001), a ênfase sobre o que fazem os professores, é alterada para o que sabem os professores, ou seja, como suas ações, decisões, pensamentos e atitudes estão ligadas com as ações dos estudantes. O docente é encarado como um profissional dotado de razão, tomando decisões e julgando casos dentro da sala de aula, reconhecendo que suas ações são guiadas pelos seus pensamentos e conhecimentos.

Para Daniel Martin (1992, apud BORGES, 2001), neste programa pode ocorrer uma divisão em duas abordagens: a obordagem profissional e a psicocognitiva. Na primeira, o saber docente é tomado a partir das deliberações do próprio sujeito, o professor. Os professores são  produtores de saberes, existindo um saber que emerge da prática profissional. Eles são construtores de um saber prático, diante da imprevisibilidade ou das situações específicas que surgem nas aulas, o que exige deles uma capacidade artística, de invenção, e de adaptação à realidade do ensino. Esta abordagem é uma corrente do professor-pesquisador, divulgado fortemente por Schön. A abordagem psicocognitiva enfatiza a estruturação mental dos saberes, buscando colocar em evidência as diferenças entre os docentes experientes e os novatos, e procura analisar como se dá a complexidade das relações entre os conhecimentos dos professores.

De maneira similar, Borges (2004) subdivide este programa em pesquisas sobre a cognição do professor e pesquisas sobre o pensamento do professor. De acordo com a autora, as primeiras são também originadas a partir de conceitos da psicologia, e prosseguiram principalmente devido às críticas à abordagem processo-produto, enfocando os processos cognitivos dos professores, porém, sem levar em conta alguns aspectos como o contexto em sala de aula, e a personalidade do professor. Nestas pesquisas, a preocupação é analisar os processos cognitivos do docente em relação às suas ações e comportamentos em sala de aula, usando como modelo o pensamento lógico matemático, e encarando os saberes como um conjunto de informações, símbolos, roteiros, e esquemas de ação. No caso das pesquisas sobre o pensamento do professor, que surgiram devido às críticas contra a abordagem cognitiva, conforme Borges (2004), os pensamentos dos docentes  são estudados segundo uma abordagem fenomenológica e etnometodológica, cujo objetivo central é explicar os processos mentais e significações relativas às ações docentes. Nestas pesquisas, os saberes pedagógicos e curriculares são reforçados em sua evidência através da importância atribuída aos saberes das disciplinas, e aos saberes do ensino das disciplinas.

Portanto, usando como referência as sínteses apresentadas por Borges (2001) e o trabalho posterior desta mesma autora (BORGES, 2004), procuramos resumir, na tabela 05, as diferentes tipologias, classificações e enfoques das pesquisas sobre saberes docentes realizadas por estes autores, em um quadro onde tentamos estabelecer possíveis aproximações, aludindo às abordagens CHART, comentadas anteriormente.

Tabela 05 – Tipologias, classificações e enfoques das principais pesquisas sobre saberes docentes.

Apesar de apresentar estas classificações, Borges (2001) alerta contra seis aspectos problemáticos ao criar tipologias: a) surge dificuldades àqueles que se propõem a realizar sínteses para lidar com a diversidade tipológica existente; b) as sínteses também ficam marcadas com a diversidade teórica e metodológica, uma vez que a classificação e agrupamentos obedecem a critérios diferenciados; c) há a diversidade empírica dos próprios objetos de pesquisa; d) aparece um alto grau de abstração nestes estudos, assumindo a forma de discursos característicos dos (e entre) os pesquisadores, tornando-se cada vez mais distante da realidade dos docentes; e) as sínteses possuem limitações, embora tenham utilidade para o desenvolvimento da pesquisa; f) surgem problemas na repercussão dessas tipologias em outros países e em como isto é transferido para a realidade deles. Por exemplo, ao importar pesquisas de outros países, o Brasil também importa os problemas, as questões e as metodologias de baixa relação com as questões e dilemas educacionais presentes em nossa sociedade.

Além da classificação das pesquisas sobre os saberes, surgiram também categorizações dos próprios saberes. Com resultados significativos, tais estudos têm gerado uma série de classificações e tipologias dos saberes, os quais apresentam elementos em comum, mas também sutilezas particulares dos autores (MIZUKAMI, 2004). Normalmente conhecidos atualmente por saberes docentes pela maioria da literatura sobre formação de professores, este termo teve seu significado reforçado nos trabalhos de Shulman (1986), quando usou o já citado termo em inglês “knowledge base for teaching”, sendo apropriadamente traduzido para a nossa língua por Mizukami (2004) como “base de conhecimento para o ensino”. Estes saberes docentes (abreviado por knowledge base), ou conhecimentos que os professores precisam ter sobre o seu trabalho, são essenciais para se pensar na profissionalização do ensino. Gauthier et el (1998) preferem chamar knowledge base de “reservatório de conhecimentos”, explicando que este possui um sentido bem amplo, englobando todos os saberes docentes, cuja categorização mais citada é a de Shulman (1987) com sete saberes principais (ou conhecimentos) que caracterizam a profissão de professor: conhecimento do conteúdo, conhecimento pedagógico do conteúdo, conhecimento pedagógico, conhecimento do programa, conhecimento do educando e de suas características, conhecimento dos contextos, conhecimento dos fins, objetivos, valores e fundamentos filosóficos e históricos da educação.

Contudo, apresentando o seu conceito sobre a idéia de Gauthier de um “reservatório de conhecimentos”, Tardif (2004) afirma que esta é uma visão simplificadora, pois isto transmite a idéia de que todos os saberes estão igualmente disponíveis na memória do professor. Para o autor, a expressão knowledge base é o conjunto de saberes que servem de base para o ensino, e pode ser entendida de duas maneiras: num sentido restrito, ela designa os saberes mobilizados pelos professores eficientes durante a ação em sala de aula (gestão de classe e gestão da matéria), e que deveriam ser incorporados aos programas de formação de professores. Num sentido mais amplo (onde o autor mais se apóia), designa o conjunto dos saberes que fundamentam o ato de ensinar no ambiente escolar. O saber docente geral pode se constituir a partir dos seguintes saberes: disciplinares, curriculares, profissionais, e experienciais; e é proveniente de diversas fontes: a formação inicial e continuada, currículo, socialização escolar, conhecimento das disciplinas a serem ensinadas, experiência na profissão, cultura pessoal e profissional, aprendizagem com os pares, etc.

Ao serem indagados sobre qual dos quatro saberes acima mencionados mereciam o maior crédito pela atuação como docentes, a maior parte de uma amostra de professores pesquisados respondeu que os saberes experienciais são dotados de maior importância (TARDIF, 2004). Semelhantemente, Garcia (1999) propõe que este conhecimento-base provém das análises de experiências da classe, trabalhos de estudantes, observações de professores especialistas, reflexões sobre a própria prática, diálogo entre os colegas docentes, e dos resultados de investigações por pesquisadores.

Para Gauthier et el (1998), o “reservatório de conhecimentos”, ou saberes docentes, possui um subconjunto de saberes, com um sentido mais restrito, denominado por ele de “repertório de conhecimentos”, também conhecido por “saberes da ação pedagógica”, representando somente os saberes do gerenciamento da classe e do gerenciamento do conteúdo. O reservatório de conhecimentos (ou saberes) inclui os seguintes saberes: saberes disciplinares (matéria), saberes curriculares (programa), saberes das Ciências da Educação (disciplinas pedagógicas), saberes da tradição pedagógica (uso), saberes experienciais (jurisprudência individual), saberes da ação pedagógica ou repertório de saberes (jurisprudência pública), saberes culturais e pessoais (pessoa), saberes pré-profissionais (vida). Especificamente no ensino de Ciências, Carvalho e Gil-Pérez (1998) apresentam o que devem “saber” e “saber fazer” os professores, no âmbito de suas necessidades formativas: conhecer a matéria a ser ensinada, questionar as idéias docentes de senso comum sobre o ensino e aprendizagem de Ciências, adquirir conhecimentos teóricos sobre a aprendizagem de Ciências, saber analisar criticamente o ensino tradicional, saber preparar atividades voltadas para uma aprendizagem efetiva, saber dirigir o trabalho dos alunos, saber avaliar, adquirir a formação necessária para associar ensino e pesquisa didática.

Os agrupamentos e as tipologias dos saberes resultam da análise de uma amplitude do “caleidoscópio” dos saberes (BORGES, 2004). Os resultados de Borges (2004) atestam este fato, pois apontam para uma listagem de saberes específicos: conhecimentos das disciplinas ensinadas; conhecimentos pedagógicos e psicológicos sobre o desenvolvimento e aprendizagem dos alunos; saberes sobre relações interpessoais e dialógicos, saber ser e saber agir; conhecimentos das Ciências Sociais, Antropologia e Sociologia; conhecimento da sociedade e do sistema educacional; noção geral dos conteúdos de outras disciplinas; conhecimentos sobre as condições de trabalho; saberes situacionais (agir no improviso, responder a um evento inesperado); saber preparar materiais e recursos didáticos, elaborar avaliações e trabalhos, corrigi-las, etc; saber organizar e distribuir seu tempo; saber preparar aulas, estudar, buscar conhecimentos; autoconhecimento, reconhecer seus próprios limites e os da educação; saberes sobre a realidade social, cultural, econômica, cognitiva, afetiva de seus alunos; saberes provenientes da experiência familiar, valores morais e éticos; arcabouço teórico geral; abertura às mudanças e vontade de mudar, talento, criatividade, gostar do que faz, amar o ato de ensinar, falar em público; saber transmitir, apresentar, ensinar os conteúdos; saber transformar os conhecimentos de uma linguagem complexa para uma mais simplificada e acessível aos alunos.

É possível aproximar saberes em subconjuntos, sob o ponto de vista epistemológico, reduzindo todos os saberes em um número menor de grandes grupos. O próprio Shulman (1987) reduz seus sete saberes, agrupando-os em apenas três de maior amplitude: conhecimento do conteúdo, conhecimento pedagógico do conteúdo, e conhecimento pedagógico geral. Pimenta (2000) realiza um trabalho semelhante ao apresentar três principais saberes: saberes do conhecimento (ou do conteúdo), saberes pedagógicos, e saberes da experiência. Este último não é categorizado por Shulman talvez porque que ele considere a experiência como permeando todo o processo de raciocínio pedagógico, sendo ela uma condição necessária (embora não suficiente) para a construção do conhecimento pedagógico do conteúdo por parte do professor (MIZUKAMI, 2004). Mais compactamente ainda, Pacheco (1995) mostra que todo o conhecimento docente pode ser dividido em duas componentes: saber profissional e saber prático, que não devem ser encaradas, no entanto, como fragmentadas, uma vez que o saber profissional não deixa de ser um saber prático.

Assim, após esta breve revisão das concepções sobre as classificações dos saberes de importantes autores da área, e cientes dos problemas de se criar tipologias, pois isto não é uma tarefa fácil (BORGES, 2004), tentaremos alistar, a seguir, os diversos tipos de saberes em uma seqüência que parte de uma abordagem impessoal (conteúdo, programa, cultural) e vai se individualizando (mundial, regional, local, sala, alunos), até atingir o intimamente pessoal (conhecimento de si mesmo, da própria vida). Reconhecemos que estes saberes não são independentes, nem atuam de forma individual no sujeito, como um arquivo de conhecimentos à disposição, onde basta selecioná-los para o docente atuar em seu trabalho segundo a sua necessidade. Assumimos que os saberes docentes são interdependentes e interligados, podendo ser utilizados pelos professores em exercício de maneira integralizadora e muitas vezes em conjunto, não separadamente. Deste modo, um profissional do ensino fará uso, ao mesmo tempo, de mais de um único saber, dependendo da situação vivenciada ou das decisões que o professor tomará frente a casos particulares e singulares ocorridos em sala de aula. Identificamos, na literatura, os principais saberes docentes, optando por recondicionar alguns deles a um termo de nosso próprio cunho, uma vez que os diversos autores definem um mesmo saber com diferentes denominações:

 

Saberes dos conteúdos a serem ensinados

Saberes dos conteúdos pedagógicos

Saberes didáticos dos conteúdos a serem ensinados

Saberes curriculares

Saberes dos contextos

Saberes culturais

Saberes sobre os alunos

Saberes pessoais

Saberes pré-profissionais

Saberes experienciais da profissão docente

Saberes profissionais gerais

Saberes competenciais

Saberes dos conteúdos a serem ensinados

Também denominado de saber disciplinar por Gauthier et al (1998), é aquele saber que cientistas e pesquisadores produziram a respeito do mundo, sendo que o professor o extrai ao ensiná-lo, mas não o produz. Igualmente, Tardif (2004) o chama de saberes disciplinares e afirma que estes são provenientes da formação inicial e continuada dos professores nas diversas disciplinas oferecidas durante o curso de formação, e correspondem aos diversos campos de conhecimento. Para Porlán e Rivero (1998), estes são os saberes disciplinares básicos (na classificação desejável), que correspondem aos saberes acadêmicos (na classificação do conhecimento profissional dominante), e privilegiam o saber disciplinar que inclui não só os conhecimentos das disciplinas específicas das quais o professor se gradua como especialista, mas também os conteúdos das Ciências da Educação. Visto como um dos componentes da profissionalidade docente, Demailly (1997) os chama de saberes científicos e críticos, mostrando que são sistematizados em disciplinas científicas e objetos de ensino nas escolas. Reforçando a idéia de que o professor precisa ter o conhecimento do conteúdo específico relativamente à disciplina ensinada, Borges (2004) classifica este saber docente como conhecimento disciplinar ou da matéria ensinada.

Ao mencionar os quatro componentes do conhecimento profissional dos professores, Garcia (1999) mostra a importância do conhecimento do conteúdo, que inclui não só a informação, as idéias, tópicos, e conceitos específicos da matéria (conhecimento substantivo), mas também o domínio dos paradigmas de investigação de cada disciplina, das suas tendências, perspectivas, e validade (conhecimento sintático): “quando o professor não possui conhecimentos adequados sobre a estrutura da disciplina que está a ensinar, o seu ensino pode apresentar erroneamente o conteúdos aos alunos.”

O nível de domínio dos conteúdos que os professores possuem exerce uma forte influência sobre: a) o que e como ensinam; b) o seu discurso na sala de aula; c) o tipo de perguntas que formulam em suas aulas; d) o modo como criticam e usam o livro didático.

Para Zeichner (1993), há um consenso de opiniões sobre o fato de que os professores devem ter um conhecimento profundo das matérias que lecionam, e uma ampla variedade de estratégias e práticas de ensino para responderem às necessidades dos alunos. No entanto, segundo Garcia (1999), há ainda um debate aberto sobre o tipo de conhecimento disciplinar que o professor deve possuir. Alguns argumentam que o professor deve saber menos que um especialista da matéria que ele leciona, conhecendo pelo menos o que os programas de ensino (currículo) e os livros didáticos trazem. Outros afirmam que o professor deve conhecer mais do que os especialistas de sua área, pois envolveria conhecimentos sobre a aplicação destes conteúdos, e o valor social, ético e histórico deste conteúdo. Uma terceira visão é a de que o conhecimento do professor sobre o conteúdo específico de sua especialidade deveria ser simplesmente diferente, explícito e autoconsciente, ou seja, deve ser um conhecimento para ser ensinado.

Em nossa opinião, os professores não precisariam possuir um domínio do conteúdo igual ou maior que o especialista de sua disciplina de ensino, pois isto acarretaria que o professor de Física, por exemplo, tivesse os mesmos conhecimentos de um Físico, o que seria inviável, uma vez que os objetivos destes conteúdos possuem diferentes aplicações para os contextos de trabalho de ambos os profissionais. Confirmando esse raciocínio, apontamos para as diferenças existentes (ao menos deveriam existir) entre o currículo dos cursos de Licenciatura e de Bacharelado, com diferentes aplicações e objetivos dos mesmos conteúdos. Além disso, disciplinas de mesma denominação deveriam ser ministradas com diversidades de enfoques e adaptações nos diferentes cursos. Assim, os conteúdos das aulas de Física ministradas em um curso de Geologia, por exemplo, deveriam ter ênfases diferentes durante a disciplina de Física em um curso de Ciências Biológicas.

Garcia (1999) lembra que há uma espécie de conhecimento pertencente ao que se denomina de currículo nulo ou currículo oculto, que envolve, durante a formação inicial, um conjunto de mensagens não explícitas verbalmente da parte dos formadores, mas que são apreendidas pelos alunos de modo indireto. Por exemplo, há a mensagem subjacente do mito de que a teoria é importante para a aprovação, mas é a prática que realmente os formará como professores.

Referindo-se a este tipo de saber, Shulman (1987) enfatiza que o professor precisa possuir o conhecimento do conteúdo específico, que é composto pelos conhecimentos a respeito do conteúdo da matéria que o professor leciona, e podem ser subdivididos em conhecimento substantivo (conteúdo da ciência específica propriamente dita); e conhecimento sintático (de como esta ciência foi construída). O conhecimento do conteúdo (que o professor precisa possuir para ensinar determinada matéria) é chamado por Shulman (1986) de “paradigma perdido”, pois a ênfase nas pesquisas não estavam contemplando os saberes sobre conteúdos. Segundo Shulman (1987), o professor deve possuir uma compreensão mínima dos conceitos envolvidos, precisando saber não apenas o que ele ensina, mas também por que ele ensina aquele conteúdo, ou seja, sob quais circunstâncias aquele conteúdo foi construído. No entanto, acreditamos que os conteúdos deveriam estar presentes na formação do professor, não apenas de uma forma mínima, mas de modo a ir além daquilo que será trabalhado em sua prática docente com as crianças e os jovens, uma vez que o conteúdo assume um papel central no desenvolvimento de competências. Portanto, o conhecimento do conteúdo deve ir além do mínimo.

Contudo, há atualmente um tratamento inadequado dos conteúdos nos cursos de formação inicial de professores, pois estes “geralmente, caracterizam-se por tratar superficialmente (ou mesmo não tratar) os conhecimentos sobre os objetos de ensino com os quais o futuro professor virá a trabalhar” (BRASIL, 2001). Para garantir ao futuro docente o domínio e a consolidação do conhecimento dos conteúdos, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica (BRASIL, 2001) apontam para as denominadas “unidades curriculares de complementação”, que estariam longe de ser simplesmente “aulas de revisão”:

 É, portanto, imprescindível que o professor em preparação para trabalhar na educação básica demonstre que desenvolveu ou tenha oportunidade de desenvolver, de modo sólido e pleno, as competências previstas para os egressos da educação básica [...]. Isto é condição mínima indispensável para qualificá-lo como capaz de lecionar na educação infantil, no ensino fundamental ou no ensino médio. Sendo assim, a formação de professores terá que garantir que os aspirantes à docência dominem efetivamente esses conhecimentos. Sempre que necessário, devem ser oferecidas unidades curriculares de complementação e consolidação dos conhecimentos lingüísticos, matemáticos, das ciências naturais e das humanidades (BRASIL, 2001).

 Mostrando a importância de que os professores precisam dominar os conteúdos com os quais trabalham, Garcia (1999) afirma que, entre as pesquisas da área, “parece existir um acordo generalizado quanto à necessidade de os professores possuírem um conhecimento adequado dos conteúdos”, embora ainda haja discussões a respeito. Segundo o mesmo autor, “conjuntamente com o conhecimento pedagógico, os professores têm de possuir conhecimentos sobre a matéria que ensinam”, pois o conhecimento que eles possuem do conteúdo a ensinar também influencia o processo de ensino-aprendizagem. Confirmando esta importância, Carvalho e Gil-Pérez (1998) mostram que este saber vai além dos conteúdos. Citando o caso específico do ensino de Ciências, os autores apresentam alguns aspectos do que seriam, para eles, o conhecimento do conteúdo necessário a um professor: a) conhecer a história das Ciências e como determinados problemas originaram a construção dos conhecimentos científicos; b) conhecer as orientações metodológicas empregadas na construção dos conhecimentos; c) conhecer as interações CTSA (Ciência/Tecnologia/Sociedade/Ambiente); d) conhecer desenvolvimentos científicos recentes e outras matérias relacionadas; e) saber selecionar conteúdos adequados; f) preparar-se para aprofundar os conhecimentos e adquirir outros novos. Afinal, professores sem conhecimentos específicos da matéria a ser ensinada podem se transformar em transmissores mecânicos de conteúdos do livro didático (CARVALHO e GIL-PÉREZ, 1998).

Porém, em muitos casos, quando há conteúdos ministrados na formação inicial, Tardif (2004) mostra que tais teorias geralmente não possuem, “para os futuros professores e para os professores de profissão, nenhuma eficácia nem valor simbólico e prático”, além de serem ensinadas “por professores que nunca colocaram os pés numa escola”. Em conseqüência disso, Silva (2000) declara resultados convincentes de que os professores têm a noção de que não foram e não estão bem preparados, que estão aprendendo principalmente com a prática, e que a vida lhes ensina para poder ensinar também. De fato, dominar os saberes científicos geram alguma autonomia que possibilita ao aprendiz (futuro professor) a capacidade de negociação de suas decisões, alguma capacidade de comunicação, algum domínio e responsabilização em face de situações (PIETROCOLA, 2005).

Tomando como exemplo específico o caso da Astronomia na formação inicial de professores, Maluf (2000), Bretones (1999), Ostermann e Moreira (1999), e Barros (1997), comprovam a existência de falhas ligadas diretamente à formação inicial do professor com relação a tópicos desta natureza.  É preocupante imaginar quais noções de Astronomia tais docentes revisaram em sua formação para se sentirem competentes e habilitados ao trabalhar com conteúdos dessa natureza com seus alunos.

Conforme os resultados de Langhi (2004) confirmam, a formação inicial limitada em Astronomia dos docentes parece levá-los a algumas situações gerais de despreparo: sensação de incapacidade e insegurança ao se trabalhar com o tema, respostas insatisfatórias para os alunos, falta de sugestões de contextualização, bibliografia e assessoria reduzida, e tempo reduzido para pesquisas adicionais a respeito de tópicos astronômicos. Tentando superar essas dificuldades, os docentes vão em busca das mais variadas fontes de consulta para suas aulas. Dependendo da fonte consultada ou da resposta obtida, suas concepções alternativas podem ser alteradas ou reforçadas, ou ainda novas concepções poderão ser geradas. Algumas dessas concepções alternativas sobre fenômenos astronômicos podem ficar firmemente arraigadas no professor desde o tempo em que o mesmo estudava enquanto aluno, persistindo até durante a sua atuação profissional (LANGHI e NARDI, 2004).

Diminuído a importância dos saberes dos conteúdos, promoveu-se a idéia de que o conhecimento pedagógico geral era mais importante do que o conhecimento do conteúdo, e que bastavam os saberes pedagógicos por si próprios. Nesta perspectiva, os saberes de conteúdo seriam simplesmente adaptados às formas-padrões de ensinar, como se existissem ‘moldes’ ou ‘fôrmas’ pedagógicas de ensino, em que qualquer conteúdo pudesse ser ajustado ali para se trabalhar em sala de aula. No entanto, este modelo se tornou obsoleto quando resultados de pesquisas mostraram que o saber do conteúdo é essencial para o trabalho do professor. Shulman (1986) mostrou que frequentemente um professor novato experimenta o ensino de um tópico que não lhe fora ensinado antes. Nesta visão, a preocupação apresentada no trabalho de Shulman é o modo como o professor se prepara para ensinar algo que nunca aprendeu, ou seja, como o ‘aprendizado para o ensino’ ocorre. O autor demonstra que o professor se apóia, como conseqüência, nos curriculum materials, ou seja, nos livros didáticos. Porém, como apontam várias pesquisas, estes possuem sérios erros de conteúdos, falhas metodológicas, conceitos incompletos, falta (em alguns casos) ou excesso (em outros casos) de conteúdos considerados significantes (LANGHI e NARDI, 2007). A pergunta de Shulman (1986), portanto, é como o professor transforma estes textos didáticos em instruções para seus alunos compreenderem.

Outra importante questão sobre o conteúdo a ser ensinado é levantada por Gauthier et el (1998): como os professores selecionam os conteúdos? Esta é uma questão interessante, visto que as decisões dos professores quanto aos conteúdos a serem ensinados exercem uma influência considerável sobre o êxito dos alunos. Os próprios autores respondem a este questionamento com as seguintes inferências: depende do esforço percebido como necessário pelos professores para ensinar determinado tema; depende da percepção dos professores em relação à dificuldade que o conteúdo apresenta para os alunos; depende do sentimento de satisfação pessoal de ensinar um conteúdo específico. Para Garcia (1999):

As crenças, atitudes, disposições e sentimentos dos professores acerca da matéria que ensinam influenciam o conteúdo que selecionam e como ensinam esse conteúdo. Os professores têm temas preferidos e temas que não gostam de ensinar, assim como possuem um autoconceito relativamente à sua capacidade para ensinar umas disciplinas e não outras (GARCIA, 1999).

Por outro lado, Pacheco (1995) lembra que os conteúdos já são previamente selecionados, fragmentados e organizados em disciplinas ou áreas, antes de o professor tomar consciência de sua existência. Esta seleção prévia é realizada obedecendo-se a três critérios fundamentais, segundo Gimeno (1986, apud PACHECO, 1995): critério lógico (forças da estrutura da própria ciência); critério psicológico (variáveis do sujeito que aprende); critério social (forças sociais que buscam na educação algum tipo de qualidade). Quanto à organização destes conteúdos, segue-se diferentes modalidades: organização centrada nas disciplinas, organização centrada nas atividades, e organização centrada nos núcleos temáticos.

Apesar destas pré-organizações de conteúdos, compete ao professor ordená-los novamente (usando sua autonomia) e esquematizá-los de modo lógico e coerente para que sejam compreendidos pelos alunos. Nesta ordenação didática, seguem-se fatores lógicos e psicológicos, podendo optar-se por diferentes vias: multi-pluri-inter-trans-disciplinaridade. Os professores que obtém êxito em seu trabalho conhecem a matéria de um modo que lhes permite planejar a criação de aulas que ajudarão os alunos a relacionar os conhecimentos novos aos que já possuem, pois “ensinar exige um conhecimento do conteúdo a ser transmitido, visto que, evidentemente, não se pode ensinar algo cujo conteúdo não se domina” (GAUTHIER et al, 1998).

Para Pimenta (2000), os saberes do conhecimento ou do conteúdo dizem respeito a todo o referencial científico, tecnológico, teórico, técnico e cultural, das áreas específicas. Neste caso, conhecimento não é simplesmente informação. O docente precisa saber trabalhar as informações, mediando-as, atribuindo um significado a elas, classificando-as, contextualizando-as, e por fim vincular o conhecimento de modo que seja útil e pertinente, sabendo contemporaneizar os conhecimentos. Para esta autora, este saber inclui a capacidade do professor transformar pedagogicamente o conteúdo para uma linguagem compreensível ao aluno.

Definindo o saber acadêmico, no contexto do conhecimento profissional que normalmente existe nas instituições de ensino, Porlán e Rivero (1998) afirmam que é o conjunto de concepções disciplinares que os professores possuem sobre o currículo e as Ciências da Educação, tendo como principal fonte a sua formação inicial. O saber acadêmico organiza-se de acordo com uma lógica disciplinar, sem uma abordagem contextualizada, mas muito bem fragmentada, o que normalmente é chamada de “teoria”. Por outro lado, Porlán e Rivero (1998) o conhecimento profissional docente que deveria existir (desejável) inclui os saberes disciplinares básicos, que são compostos por cada uma das disciplinas que estudam variáveis implicadas nos processos de ensino-aprendizagem e cujo grau e tipo de organização se corresponde com a lógica interna de cada uma delas. Neste caso, envolveria as várias disciplinas das áreas curriculares (física, química, por exemplo), das áreas do ensino (pedagogia, história da educação), das áreas da aprendizagem (psicologia), e das áreas de estudo dos sistemas educativos (sociologia, estrutura), e muitas outras. Porlán e Rivero (1998) resumem em disciplinas da matéria, psicopedagógicas, e didáticas especificas, e apresentam um sub-saber do saber profissional desejável: o conhecimento da matéria a ensinar, cujos detalhes serão vistos no item seguinte. Mas, um conhecimento adequado da matéria implica compreender em profundidade o objeto de estudo, os princípios, leis e teorias mais relevantes, e as relações entre todos eles, o que levaria o professor a ter a atitude científica de aprofundar nos conhecimentos e estar pronto para adquirir novos, o que nos remete ao conhecimento substantivo da matéria, apresentado por Shulman (1987).

No entanto, Porlán e Rivero (1998) mostram que dentro deste saber, há os conceitos descritivos, explicativos e aplicativos, levando em conta que o conhecimento do conteúdo deve ser articulado, flexível, plural, crítico e integrador. Há também o conhecimento profissionalizado do conteúdo, quando os conhecimentos do conteúdo se relacionam com os conhecimentos das Ciências da Educação, os psicopedagógicos e as Didáticas Específicas. As Didáticas Especificas usam e reinterpretam os conhecimentos científicos e psicopedagógicos para explicar os processos de ensino e aprendizagem de uma matéria escolar e para propôr pautas de projeto e desenvolvimento curricular. Assim, o saber didático é um saber para a ação e é integrador, muito importante e especial para o conhecimento profissional, pois implica em saber explorar as idéias dos alunos. A nossa visão, porém, é a de que o saber didático deveria ser muito mais abrangente do que propõem os autores, sendo formado por um conjunto amplo de saberes, dentro do qual estaria incluído o saber disciplinar, pois o saber didático é uma espécie de saber que capacita o professor para a sua ação profissional de ensinar, independente de qual área do saber disciplinar o docente se especializou. Assim, propomos um repensar sobre a possibilidade de que o saber disciplinar seja um sub-saber do saber didático, e não o inverso, como apresentam Porlán e Rivero (1998).

Saberes dos conteúdos pedagógicos

Estes conhecimentos funcionam como ferramentas para se efetuar uma leitura da realidade social, conhecendo-a a ponto de intervir nos processos de ensino e aprimorar a compreensão da subjetividade de cada um, envolvendo os conhecimentos antropológicos, psicológicos, pedagógicos, e sociológicos (BORGES, 2004), ou seja, os conhecimentos das Ciências Sociais e Humanas. Para Gauthier et al (1998), que os chama de saberes das Ciências da Educação, estes são os conhecimentos que o professor adquire durante a sua formação inicial e, embora não o ajudem diretamente a ensinar, informam-no a respeito de facetas de seu ofício ou da educação de um modo geral, sendo as fontes principais destes saberes as disciplinas pedagógicas dos cursos de formação, tais como Sociologia, Antropologia, Psicologia da Educação, etc. Segundo os Referenciais para Formação de Professores (BRASIL, 2002a), este saber pedagógico envolve o conhecimento sobre o currículo e desenvolvimento curricular, questões de natureza didática, avaliação, interação grupal, relação professor-aluno, conteúdos de ensino, e sobre os procedimentos de produção de conhecimento pedagógico.

Para Shulman (1987), estes saberes incluem conhecimentos e teorias, princípios relacionados a processos de ensinar e aprender, conhecimentos de contextos educacionais, modos de gestão da sala, do currículo como política, conhecimento dos alunos, do programa oficial de ensino, fundamentos filosóficos e históricos, e são chamados pelo autor de conhecimento pedagógico geral. Um dos quatro componentes do conhecimento profissional dos professores apresentados por Garcia (1999) é o conhecimento psicopedagógico, ou seja, o conhecimento relacionado com a aprendizagem, com os alunos, com os princípios gerais de ensino, tempo de aprendizagem acadêmico, gestão de classe, técnica didáticas, planejamento de ensino, avaliação, aspectos legais da educação, etc.

Desta forma, este conjunto de saberes transmitidos pelas instituições de formação inicial ou contínua de professores inclui os saberes das ciências da educação e os saberes pedagógicos, conforme Tardif (2004), que os denomina de saberes da formação profissional. Os saberes pedagógicos são doutrinas ou concepções provenientes de reflexões sobre a prática educativa no sentido amplo do termo, e que se constituem em normas e orientações para a atividade educativa, articulando-se com os saberes das Ciências da Educação para legitimar “cientificamente” suas normatividades, através de estudos e trabalhos efetuados pelos teóricos e pesquisadores das Ciências da Educação, embora seja bastante raro vê-los diretamente no meio escolar, em contato com os professores. Para Demailly (1997), estes saberes constituem-se no saber-fazer pedagógico, cujos saberes são relacionados com procedimentos do trabalho em grupo na sala de aula, os meios de ensino, as tecnologias e as metodologias de ensino.

Saberes didáticos dos conteúdos a serem ensinados

Atuando recentemente na área da transposição didática, divulgado principalmente por Chevallard (1991), mas introduzido em 1975 pelo sociólogo Michel Verret, o estudo destes saberes tem sido um referencial para se trabalhar conhecimentos enquanto processo de ensino, pois para ensinar, não bastam apenas os saberes do conteúdo e os saberes pedagógicos, mas também dos saberes didáticos, que auxiliarão o professor na transformação da linguagem sobre a Ciência dos cientistas em linguagem sobre a Ciência dos alunos, ou seja, ensinar de um modo didaticamente compreensível para os alunos (PIMENTA, 2000). Para isso, necessita-se reinventar os saberes pedagógicos a partir da prática docente, constituindo novas Ciências da Educação, e superando a tradicional fragmentação dos saberes em disciplinas. A prática social pedagógica deve ser o ponto de partida e o ponto de chegada, levando em conta a experiência profissional. Trabalhos contemporâneos de pesquisa na área da Educação costumam enfocar apenas este saber didático dos conteúdos, ou apenas um, ou ainda alguns saber(es) em específico, deixando de contextualizar os demais. Esta característica nos textos pode tornar muito fragmentado o tratamento dos saberes, em detrimento dos outros, com uma ênfase demasiada em apenas um deles, prejudicando a idéia original do autor. Na área da Educação em Ciências, por exemplo, parece que o enfoque principal tem sido sobre como ocorre a transposição didática, em detrimento de outros saberes também importantes.

O saber a ensinar, conforme a transposição didática apresentada por Chevallard (1991), não é a mera simplificação ou trivialização formal do saber sábio (que se constitui no que conhecemos por conhecimento científico, fruto do trabalho de uma esfera composta de cientistas e intelectuais). Para se tornar saber a ensinar, é preciso que o saber sábio sofra uma espécie de degradação com uma perda do contexto original, permitindo uma reorganização e uma reestruturação de um novo saber, o saber a ensinar, que se constrói a partir do uso do saber sábio como referência, constituindo-se de uma nova linguagem (ALVES FILHO et al, 2005). A esfera do saber a ensinar compõe-se basicamente pelos autores de livros e manuais didáticos, os especialistas e professores da disciplina (não cientistas) que influenciam nos autores destas publicações, e a opinião pública em geral capacitada a influenciar o processo de transformação do saber. Para efetivamente ensinar, um professor deve saber algo que outros não saibam, especialmente seus alunos. O professor deve ser capaz de transformar entendimentos, habilidades, atitudes ou valores em ações e representações pedagógicas (SHULMAN, 1987).

Por fim, à luz da transposição didática, ocorre uma terceira transformação do saber, produzindo o saber ensinado, praticada pelo professor, que sofre pressões externas (por exemplo, as interferências dos interesses e opiniões da administração escolar, dos alunos e da comunidade) e internas (por exemplo, as interferências das concepções pessoais do professor) neste processo. No entanto, é necessário que o professor se responsabilize por esta transposição, o que só poderá acontecer se ele utilizar a sua autonomia por conhecer com profundidade o conteúdo de sua área do saber (ALVES FILHO et al, 2005).

Há ainda uma quarta situação, segundo Bejarano (2001), em que o saber assume outra transformação, numa esfera composta pelos alunos que apreenderam o conhecimento trabalhado pelo professor. Nesta linha, podemos usar o caso dos conteúdos de astronomia, e exemplificar como estes poderiam sofrer estas transposições, produzindo distintos saberes sobre um mesmo conteúdo, a saber, a astronomia dos astrônomos, a astronomia dos materiais didáticos, a astronomia dos professores, e a astronomia dos alunos.

Estes saberes didáticos dos conteúdos a serem ensinados são os mesmos que Shulman (1987) chamou de pedagogical content knowledge, e que já foi erroneamente traduzido por “conhecimento do conteúdo pedagógico” (Garcia, 1992), ao invés de mais corretamente “conhecimento pedagógico do conteúdo”. Há uma abismal discrepância de significado em nossa língua entre estas duas diferentes traduções, o que pode levar o leitor a concluir que “conhecimento do conteúdo pedagógico” é sinônimo de “conhecimento pedagógico geral”, quando na verdade, o autor original usou o primeiro para se referir ao “conhecimento pedagógico do conteúdo”, ou seja, a transformação que o professor efetua da matéria a ser ensinada numa linguagem compreensiva para os alunos (transposição didática). Por isso, é preciso lembrar dos cuidados na tradução de termos para que não permita confusões nas interpretações das intenções originais do autor-fonte. Conforme Shulman (1987), este novo tipo de conhecimento é construído constantemente pelo professor ao ensinar a matéria e é enriquecido e melhorado quando se amalgam os outros saberes (principalmente o conhecimento do conteúdo e o conhecimento pedagógico geral), sendo uma forma de conhecimento do conteúdo. Inclui a compreensão do que significa ensinar um tópico de uma disciplina específica assim como os princípios e técnicas que são necessários para tal ensino.

Denominando-os de saberes didáticos, Demailly (1997) identifica-os como importantes componentes da profissionalidade docente, em que ocorre a aplicação das ciências humanas para a transmissão e aquisição de um domínio de saber escolar, que por sua vez, pode ser subdividido em domínio disciplinar (didáticas das disciplinas), transdisciplinares (didática de uma língua ou de uma técnica, etc.), ou transversais (didática geral).

No caso da docência, este saber é bem específico da profissão, sendo o único conhecimento pelo qual o professor pode estabelecer uma relação de protagonismo, pois é de sua autoria, e aprendido no exercício profissional da docência, pois saber ensinar um determinado conteúdo envolve pensar nos alunos e como eles concebem aquilo que está sendo ensinado, levando em conta as limitações e capacidades individuais deles, e que o tempo de aprendizagem e o tempo de ensino são distintos, conforme Amigues (2004): “o tempo de ensino não é paralelo ao tempo de aprendizagem, não podendo essas duas temporalidades ser sobrepostas ou confundidas.” Embora tão importante, a maioria dos especialistas ainda pensa que um bom domínio dos saberes disciplinares dispensa saberes pedagógicos ou didáticos profundos (PERRENOUD, 2002). Contudo, como mostra Borges (2004), este saber ensinar assume uma posição importante no conjunto dos saberes docentes, pois envolve o saber explicar, transmitir, atrair os alunos, sintetizar, selecionar, e estruturar os conteúdos do programa, ter criatividade, metodologia, técnicas, didática, etc, enfim, ter conhecimentos sobre como ensinar a sua disciplina.

Defendendo o princípio da integração entre a formação de professores em relação aos conteúdos propriamente acadêmicos e disciplinares, e a formação pedagógica dos professores, Garcia (1999) salienta que este conhecimento didático do conteúdo a ser ensinado apresenta-se como um importante estruturador do pensamento pedagógico do professor. Para Gauthier et al (1998), este saber pedagógico do conteúdo não é visto como um conhecimento separado do conhecimento do conteúdo a ser ensinado, mas faz parte no saber disciplinar, de modo que o docente precisa conhecer os conteúdos para saber fazer a transposição didática, ou conhecimento pedagógico da matéria (ou do conteúdo), ou imagem operatória da ergonomia cognitiva.

Incluindo este saber entre os quatro componentes do conhecimento profissional dos professores, Garcia (1999) mostra que o conhecimento didático do conteúdo combina adequadamente o conhecimento da matéria a ensinar e o conhecimento pedagógico e didático de como a ensinar. Este tipo de conhecimento inclui conhecer o conteúdo de modo a conseguir fazer o aluno entender. A investigação sobre este tipo de conhecimento representa uma das contribuições mais importantes para as pesquisas sobre a formação de professores.

De fato, se considerarmos o conhecimento pedagógico geral (saberes dos conteúdos pedagógicos) e o conhecimento do conteúdo (saberes dos conteúdos a serem ensinados) como sendo iguais para professores da mesma área e com as mesmas formações, perguntamos: por que surgem diferentes maneiras de ensinar o mesmo conteúdo? A resposta poderia estar na reação que cada profissional possui, frente às situações únicas de uma aula, resultando em diferentes conhecimentos pedagógicos do conteúdo (saberes didáticos dos conteúdos a serem ensinados). Outra variável é a influência dos alunos na construção do conhecimento pedagógico do conteúdo pelo professor, fazendo com que, muitas vezes, o mesmo professor ensine de diferentes maneiras o mesmo conteúdo. Estas inúmeras formas de ensinar um mesmo conteúdo é chamado de “repertório representacional”, e conforme os autores da área, este é o saber menos codificado.

Saberes curriculares

Estes saberes correspondem aos discursos, objetivos, conteúdos e métodos a partir dos quais a instituição escolar categoriza e apresenta os saberes sociais por ela definidos e selecionados (TARDIF, 2004), apresentando-se sob a forma de programas escolares. Para Porlán e Rivero (1998), o conhecimento do currículo e dos programas oficiais governamentais faz parte tanto da experiência profissional no campo do conhecimento profissional desejável, como dos saberes acadêmicos no campo do conhecimento profissional dominante. Gauthier et el (1998) explicam que a instituição seleciona e organiza certos saberes produzidos pela Ciência e transforma num corpus que será ensinado nos programas escolares, assumindo a forma de conteúdos programáticos, vestibulares, livros didáticos, LDB e PCN, por exemplo.

A respeito dos livros didáticos, e o modo como eles são concebidos pela maioria dos professores brasileiros e pelas instituições onde trabalham, pesquisas têm demonstrado que eles parecem estar investidos de uma superior autoridade intelectual, ou seja, que eles devem ser obrigatoriamente seguidos (LANGHI, 2005). O professor precisa selecionar conteúdos que sejam significantes para o trabalho com a sua sala de aula específica, e suprimir outros que ele considera inapropriados para o contexto em que se insere. Esta atitude reflete a sua própria autonomia, que só deve ser conquistada a partir de suas próprias competências e habilidades. Outra característica de alguns destes materiais é a chamada organização didática que neles constam, muitas vezes copiados de ano em ano, e quando preparados por alguém, nem sempre consta uma autoria assumida ou responsabilidade intelectual. Sob diferentes perspectivas, analistas e professores teriam, cada qual, suas próprias opiniões e idéias sobre a melhor ordem didática dos conteúdos, pois cada profissional vivencia contextos diferenciados. Assim, não podemos afirmar que existe uma única seqüência didática correta para os livros-texto.

Por outro lado, a disposição de conteúdos nos materiais didáticos do Ensino Médio preparados por instituições particulares parecem caracterizar um treinamento para vestibulares, e a forma como são ministradas as aulas neste nível de ensino reforçam esta característica. Após o período da ditadura, o vestibular transformou-se, de classificatório, para eliminatório (ou mesmo discriminatório), sendo que atualmente, não há justificativas para a existência dos vestibulares em instituições particulares, dado o número de vagas. Em outras palavras, são os vestibulares que estão determinando os conteúdos que devem ser ensinados no Ensino Médio, comprometendo a autonomia dos professores que primam por um ensino de qualidade com conteúdos significativos. Além disso, conforme atesta Pietrocola (2005), ao término das avaliações tradicionais e dos exames para o ingresso no ensino superior, os alunos, em poucos dias, se esquecem do que lhes foi ensinado, e todo aquele conhecimento físico se esvanece, gerando um sentimento de tempo perdido estudando (ou decorando, ou ainda, “colando”) conteúdos que talvez jamais sejam revisados nas vidas dos alunos, tais como a Física do ensino médio com sua extensa lista de fórmulas.

Saberes dos contextos

Segundo os Referenciais para Formação de Professores (BRASIL, 2002a), formam esse âmbito, conhecimentos relativos à análise da realidade social e política do país, as relações sociais e sua repercussão na educação, as múltiplas expressões culturais e as questões de poder, o conhecimento do sistema educativo, a reflexão sobre a dimensão social e política do papel do professor, a discussão de leis relacionadas à infância, adolescência, educação e profissão, as questões da ética e da cidadania.

Para o ensino, o profissional da educação deve conhecer o seu entorno de trabalho, o contexto local, regional e mundial. Incluindo estes saberes dos contextos, Gauthier et al (1998) citam os saberes culturais juntamente com os pessoais como sendo adquiridos fora do exercício da profissão, mas que podem ser mobilizados para fins específicos ao ensino. Também denominado de saber cotidiano, Azzi (2000) explica que atividade cotidiana é diferente da práxis, no sentido de que a vida cotidiana é o conjunto de atividades que caracterizam a reprodução dos homens particulares, seguida da reprodução social, não havendo transformação. As características do comportamento e do pensamento cotidiano são: espontaneidade, economicismo, pragmatismo, probabilidade, imitação, analogia, ultrageneralização (ou juízo provisório cotidiano, em que estão os preconceitos). Tais características são necessárias, mas não podemos nos estagnar nelas, pois caso contrário estaríamos nos alienando, sendo que o cotidiano não pode se tornar uma barreira ao desenvolvimento do pensamento científico.

Segundo Azzi (2000), o saber cotidiano é o que guia as ações do particular, sendo influenciado pela arte, literatura, religião e ciência geral, necessitando o professor, de um mínimo de conhecimento (em geral muito fragmentado) nestes campos, pois ele o usará de forma pragmática durante a sua atuação docente. A instituição escolar é um ambiente em que encontramos os dois tipos de saberes, além do cotidiano e o não-cotidiano, o pensamento cotidiano e a teoria, a atividade cotidiana e a práxis. Para Borges (2004), estes saberes do contexto também são mais proeminentes nos contextos educativos, pois os saberes das finalidades educativas, segundo a definição da autora, fornecem ao professor uma visão ampla do processo de ensino, da educação, do papel da escola e do professor.

Outro saber importante e necessário à profissão docente, de acordo com Zeichner (1993), é o fato de que os professores precisam conhecer muito bem a comunidade escolar, mas deve ir além disso e saber envolver os pais e outros membros da comunidade no programa escolar, pois estes devem ser encorajados a participar na educação dos alunos: “a existência de boas relações entre a escola e a comunidade, bem como o desenvolvimento das capacidades dos professores para trabalharem eficazmente com os pais, são aspectos de grande importância, independentemente do contexto” (ZEICHNER, 1997). De fato, “a atividade do professor dirige-se não apenas aos alunos, mas também à instituição que o emprega, aos pais, a outros profissionais” (AMIGUES, 2004).

De fato, para Garcia (1999), o conhecimento do contexto é um dos quatro componentes do conhecimento profissional dos professores, e se refere a conhecer o local onde se trabalha, bem como o seu público-alvo (alunos), sabendo adaptar o conteúdo que ensinam às condições particulares da escola e dos alunos que a freqüentam. É preciso que conheçam o entorno de seu local de ensino, e as características sócio-econômicas e culturais da comunidade e do bairro.

Saberes culturais

Conforme comentado acima, os saberes culturais envolvem o campo da cultura geral (GAUTHIER et al, 1998) bem como de saberes pessoais culturais, provenientes de sua educação anterior a uma formação inicial. Porém, para Borges (2004), os saberes culturais vão mais além de cultura geral, pois abrange temas de interesse dos jovens e de outros campos científicos, visando relacionar com a sua disciplina, incluindo conhecimentos das novas tecnologias e das novas descobertas científicas. Por isso, Borges (2004) os denominam de conhecimentos gerais e de outros campos científicos. Este tipo de saber, conforme os Referenciais para Formação de Professores (BRASIL, 2002a), inclui desde o contato com as diferentes produções da cultura popular e erudita e da cultura de massas, até a atualização em relação ao que acontece em âmbito mundial, sob o ponto de vista de diferentes realidades, principais debates em pauta no país e no mundo, conhecer e interagir com organizações sindicais e associações de caráter científico e cultural.

Saberes sobre os alunos

Preocupado com o princípio da inclusão social, Zeichner (1993) cita alguns saberes que os professores deveriam construir a respeito dos jovens a quem ministram suas aulas: conhecimentos socioculturais gerais sobre o desenvolvimento da criança e do adolescente, sobre a adoção de uma segunda língua, sobre a maneira como as circunstâncias socioeconômicas, a língua e a cultura modelam o desempenho e o sucesso escolar, além de conhecimentos específicos acerca das línguas, culturas e particularidades dos alunos da sua sala de aula. Em nosso caso, no Brasil, esta inclusão social na sala de aula implica em o professor construir saberes acerca da linguagem brasileira de sinais (LIBRAS), braile, relações psico-sociais com portadores de necessidades especiais (deficiências auditivas, de visão, físicas, mentais, etc).

Segundo os Referenciais para Formação de Professores (BRASIL, 2002a), este saber envolve compreender quem são os alunos e identificar as necessidades que exigem atenção, sejam elas relacionadas com os afetos, emoções, cuidados corporais, nutrição e saúde, sejam relativas às aprendizagens escolares e de socialização, aspectos psicológicos, desenvolvimento físico e dos processos de crescimento, assim como das aprendizagens dos diferentes conteúdos escolares em diferentes momentos do desenvolvimento cognitivo.

Saberes pessoais

Além dos contextos, o professor precisa aprender a descobrir e construir saberes sobre si mesmo. Como explica Tardif (2004), os saberes pessoais podem fazer parte dos saberes experienciais, ou seja, da própria experiência, não só profissional como também das experiências vividas na família, na escola enquanto aluno, e na sociedade. Envolvem também, segundo Borges (2004), algumas características pessoais relacionadas com o trabalho docente: gosto pela profissão, o gostar do que faz, o gostar de interagir com crianças e/ou jovens, independente de suas condições sociais, econômicas, culturais, etc. Por isso, a autora reforça a importância do saber ser, ter postura, saber agir, demonstrar valores, aplicando estes conhecimentos tanto a nível pessoal como conhecer bem seus alunos, pois envolveriam saberes que ajudam nos julgamentos do professor em sala de aula: valores, regras, princípios morais, incluindo posturas e relações interpessoais, saber agir, saber ser, saber fazer em situações diversas, flexibilidade, tato, autoridade, autoconhecimento, reconhecer seus próprios limites, os do sistema educacional e os dos seus alunos.

Saberes pré-profissionais

Antes do profissional da educação tomar a decisão de escolher tal carreira, ele passou por trajetórias em sua vida que acrescentaram vivências e experiências sobre a sua futura profissão, mesmo que nem se dê conta disso. Como enfatizam Gauthier et el (1998), todo indivíduo já viu alguém ensinando; e estas experiências discentes do professor influenciam em seu futuro saber-ensinar. A vivência com a escola enquanto aluno influencia o professor, o que poderá determinar se ele vai querer ser professor. Estes saberes pré-profissionais são, então, construídos antes da profissão docente, e que serão, com certeza, retomados durante o trabalho como professor. Têm como pano de fundo uma espécie de tradição, e para Gauthier et al (1998), leva o nome de saber da tradição pedagógica, pois o professor, ao se dirigir a todos ao mesmo tempo, esta “ordem” cristaliza-se em tradição pedagógica.

Atuando como um conhecimento profissional desejável, Porlán e Rivero (1998) apresentam estes saberes, que contribuem para a profissão em momentos antes de esta ser exercida, como saberes metadisciplinares, em que as teorias gerais e cosmovisões dos professores possuem um auto grau de integração do tipo generalista. Para os autores, é também um conhecimento acadêmico, e permitem fazer uma análise crítica de outras disciplinas, ou seja, conhecer o conhecimento, ter uma visão global do conhecimento, envolvendo teorias gerais, tais como o construtivismo, a complexidade, o evolucionismo, a teoria crítica, etc.

Saberes experienciais da profissão docente

Os Referenciais para Formação de Professores (BRASIL, 2002a) apresentam este tipo de saber como o conhecimento construído na experiência articulado a uma reflexão sistemática sobre ela, não devendo ser confundido com o conhecimento sobre a realidade. No entanto, não baseia-se apenas em vivências, mas apóia-se em referenciais teóricos para que haja a reflexão sobre a experiência, pois, durante a sua trajetória de vida profissional, o professor adquire experiências e “macetes” característicos aprendidos na prática do seu trabalho com os alunos, a instituição, o currículo, o contexto, e a burocracia escolar. Neste sentido, Pimenta (2000) alerta contra as ilusões de saberes: ilusão do saber disciplinar, do saber didático, do saber das ciências do homem, do saber pesquisar, do saber-fazer. Por exemplo, saber sobre Educação e Pedagogia não geram saberes pedagógicos. Estes só se constituem a partir da prática, mas não só com a prática e experiência. Por prática, remetemo-nos à definição de Borges (2004): “refere-se ao exercício da docência propriamente dito, que pode ser posterior à formação inicial ou até mesmo anterior a ela.”

Denominado de saber experiencial por Gauthier et al (1998), este se constitui como uma experiência própria adquirida no cotidiano de sua profissão e, acima de tudo, privada e pessoal, não sendo testado com pesquisas científicas. Muitos professores consideram o saber experiencial como o fundamento de sua prática e de sua competência, constituindo-se em jurisprudências particulares dos professores, cuja socialização contribuiria para o trabalho de outros docentes. Conforme explica Tardif (2004), os saberes experienciais possuem três objetos, ou seja, há três condições da profissão: a) relações com outros atores no campo de sua prática; b) diversas obrigações e normas às quais seu trabalho deve se submeter; c) a instituição enquanto meio organizado e composto de diversas funções. Durante a formação inicial, não se garante essas três condições, pois não se estabelece relações entre estes saberes experienciais e os saberes da formação.

Tendo como fonte o próprio contexto escolar, e com forte poder socializador, os saberes baseados na experiência (PORLÁN e RIVERO, 1998) fazem parte do conhecimento profissional dominante, orientando a conduta profissional, com um alto grau de organização interna, pois pertencem ao conhecimento de senso comum. Apresentam características que revelam o seu alto grau adaptativo, com contradições internas, e impregnado de valorizações morais e ideológicas. Estes saberes constituem-se, assim, um conjunto de idéias conscientes que os professores desenvolvem durante o exercício da profissão acerca de diferentes aspectos dos processos de ensino-aprendizagem, manifestando-se como crenças, princípios de atuação, metáforas, e imagens de conhecimento pessoal. Esboçando uma “epistemologia da prática docente”, Tardif (2004) mostra algumas características principais do saber experiencial: ele é ligado às funções rotineiras dos professores, é prático, interativo, sincrético e plural, heterogêneo, complexo, aberto, personalizado, existencial, pouco formalizado, temporal, social, evolutivo e dinâmico.

Além dos saberes baseados na experiência, há as rotinas e guias de ação (PORLÁN e RIVERO, 1998), formando o conjunto de esquemas tácitos que predizem o curso dos acontecimentos na aula e contém pautas de atuação concretas e padronizadas para abordá-los. As rotinas e guias de ação ajudam a resolver uma parte importante de nossa atividade cotidiana, especialmente aquela que se repete com certa freqüência. Neste caso, os professores têm de evocar suas lembranças sobre acontecimentos em sala de aula para poder identificar estas rotinas. Este saber é gerado muito lentamente, e por processos de impregnação ambiental, vendo e convivendo com professores que se comportam com suas rotinas básicas. A organização deste saber ocorre no âmbito do concreto e se vincula a contextos muito específicos, respondendo implicitamente a situações diversas na aula.

Partindo para um conhecimento profissional desejável, Porlán e Rivero (1998) citam os saberes da experiência profissional, com três componentes: os saberes rotineiros (rotinas e guias de ação), os princípios e crenças pessoais (baseados na experiência), e os saberes curriculares sistematizados, que representam um conjunto de idéias, hipóteses de trabalho e técnicas, com cinco aspectos: conhecer a existência de concepções nos alunos e saber usá-las didaticamente; conhecer como se formula, organiza, e sequencia o conhecimento escolar; saber desenhar um programa de atividades válido para se tratar de problemas interessantes com potenciais para aprendizagem (problematizar); saber dirigir o processo de aprendizagem do aluno; saber o que e como avaliar.

É neste sentido que dizemos que o professor é investigativo, pois não deve depender totalmente de teorias previamente estabelecidas, mas pode interpretar diferentes problemas de diferentes maneiras. Deste modo, quando o professor experimenta repetições de situações, vai construindo um repertório de conhecimentos que influencia as suas decisões. Daí a importância da reflexão, pois conforme Contreras (2002), quando o professor se depara com novos episódios, há a necessidade de uma atitude reflexiva, que segue os passos da investigação. Assim, como é impossível determinar como se transcorrerá determinada situação educacional, exige-se dos professores uma reflexão usando a sua experiência acumulada. Por isso, a reflexão sobre determinada ação não pode proceder de outros ou externamente, senão dos próprios envolvidos. Assim, para Freire (2000), a reflexão sobre a prática deve ser crítica, e é uma exigência da relação teoria/prática.

Seguindo a analogia das jurisprudências, Gauthier el al (1998) explicam que o saber experiencial pode se tornar público e testado através de pesquisas (investigações) realizadas em sala de aula, ou então, em discussões com um grupo de professores que relatam suas experiências pessoais, ou jurisprudências individuais, o que receberia a denominação de saber da ação pedagógica.

 Para Azzi (2000), a experiência é construída enquanto o professor atua no cotidiano de seu trabalho, fundamentando-se em sua ação, e é chamado de saber pedagógico. Este é o saber que possibilita ao professor interagir com todo o contexto escolar, havendo uma diferença entre o saber pedagógico e o conhecimento pedagógico: ao passo que o primeiro é construído pelo próprio professor, o segundo é elaborado por pesquisadores e teóricos da Educação. O saber pedagógico é variável porque o contexto, além de afetar a prática, também é afetado por ela. Assim, diferentes professores terão diferentes atitudes e decisões ao tomarem decisões em sua prática, pois a sua qualificação (capacidades e habilidades) também determinará esta variação de saber. A prática determina o conhecimento, mas não é em si mesma o conhecimento. Assumindo o conceito de idéia como o ato de negar a realidade educacional, e a ação como o ato de transformar esta realidade, podemos atingir uma cristalização da idéia e da ação que se caracteriza como sendo a própria prática ou trabalho docente, uma expressão do saber pedagógico (que é variável), que por sua vez, pode vir a ser a fonte de desenvolvimento da teoria pedagógica.

O conceito de saberes da experiência, para Pimenta (2000), é mais amplo e abrange o item considerado anteriormente sobre os saberes pré-profissionais, pois para a autora, a experiência inclui toda a trajetória de vida e a construção de sua personalidade profissional. Os alunos de um curso de formação inicial possuem saberes sobre o que é ser professor, e as fontes destes saberes podem vir a ser: sua experiência como aluno, sua experiência socialmente acumulada sobre o exercício da profissão de professor, e sua experiência como professores, atuando reflexivamente em sua prática. Tardif (2004) também não fragmenta os saberes experienciais em pré-profissionais, mas comenta que há influências que antecedem à profissão.

Dando uma atenção especial à questão dos saberes experienciais, Tardif (2004) explica que no exercício de sua prática, os professores desenvolvem saberes específicos, baseados em seu trabalho cotidiano e no conhecimento de seu meio, brotando da experiência. Eles se incorporam à experiência individual e coletiva sob a forma de habitus (já comentado no item anterior), de habilidades, de saber-fazer e de saber-ser. São denominados de saberes experienciais ou práticos. O professor ideal desenvolve um saber prático baseado em sua experiência, mas reúne com destreza os diversos tipos de saberes, que incluem conhecer bem a matéria a ser ensinada, a sua disciplina, seu programa, possuindo conhecimentos sobre Ciências da Educação, Pedagogia. No entanto, conforme apresentam os resultados das pesquisas por Tardif (2004), os professores apontam saberes que denominam de práticos ou experienciais como sendo os de maior importância, gerados pela prática cotidiana, em detrimento dos demais saberes. Os saberes experienciais constituem-se em um conjunto de saberes atualizados, adquiridos e necessários no âmbito da prática da profissão docente e que não provêm das instituições de formação nem dos currículos, não se encontrando sistematizados em doutrinas ou teorias. São saberes práticos e não da prática, pois há situações singulares que não são passíveis de definições acabadas, e que exigem improvisação e habilidade pessoal, bem como a capacidade de enfrentar situações transitórias e variáveis.

Esta complexidade do trabalho docente é acentuada pelo fato de que o trabalho educacional é sempre singular e contextual, isto é, ocorre sempre em situações específicas. Por isso, é praticamente impossível ter consciência de tudo o que é realizado durante todo o tempo de aula (BRASIL, 2002a), levando o docente a uma forma de proceder pouco consciente que o possibilita reagir de modo imediato às questões do cotidiano escolar, o chamado habitus, ou seja, seu próprio estilo de ensino, sua personalidade profissional, resultado das constantes interações com os alunos, com outros professores, com o meio (escola), com suas obrigações, com os programas, com os pais, etc.

Mostrando que a experiência do trabalho docente exerce uma poderosa influência neste habitus, Diniz e Campos (2005) afirmam que a disciplina de Prática de Ensino deveria visar a construção de saberes que os licenciandos necessitarão para a sua prática profissional, promovendo discussões e reflexões entre os licenciandos para que focalizem as escolhas feitas por eles, tanto do ponto de vista da seleção dos conteúdos, como da organização e do preparo da aula. Por outro lado, Borges (2004) salienta que, embora a Prática de Ensino nos cursos de formação inicial seja um dos momentos mais importantes na edificação dos saberes docentes, ela não é suficiente, pois é somente na prática profissional que os professores se vêem confrontados com os alunos, com um determinado contexto de trabalho, com os elementos que constituem o trabalho docente propriamente dito. Como dizem os Referenciais para a Formação de Professores: “tudo isso se aprende a fazer, fazendo” (BRASIL, 2002a).

Todos os saberes obedecem a uma hierarquia de importância, e conforme mostra Tardif (2004), os professores dão uma especial importância aos saberes experienciais, pois têm origem na prática cotidiana em confronto com as condições de sua profissão, seja individual ou coletivamente. De fato, os saberes experienciais são o núcleo vital do saber docente, e não possuem características semelhantes aos demais. São formados de todos os demais, como uma espécie de transposição dos demais saberes somados às certezas do cotidiano (ou seja, às teorias particulares que os docentes formulam sobre sua própria prática). Assim, o caminho para a profissionalização docente percorre as trilhas destas certezas subjetivas, que deveriam ser sistematizadas a fim de transformarem num discurso da experiência capaz de informar ou de formar outros docentes, ou seja, deve-se sistematizar suas certezas vindas da prática para se constituírem em teorias ensináveis aos formandos. Para o autor, o ato de partilhar saberes, trocar idéias e informações entre os professores, fazer reuniões pedagógicas produtivas, ter conversas construtivas na sala de professores, e participar de congressos, provocam uma retroalimentação de saberes, filtrando, ou selecionando, saberes julgados úteis ou não, incorporando novos saberes e rejeitando os de menos importância, numa espécie de re-tradução (transposição, ou adaptação) dos outros saberes. De fato, Borges (2004) confirmou isto segundo os resultados de sua pesquisa em entrevistas com uma amostra de professores, ressaltando que o exercício do magistério é fundamental no processo de vir a ser professor. Nota-se, assim, que os professores ocupam, no campo dos saberes, um espaço estrategicamente tão importante quanto aquele ocupado pela comunidade científica, merecendo, portanto, o mesmo prestígio.

Saberes profissionais gerais

Estes saberes são diferentes dos demais analisados até agora, pois estes não são tão específicos ao trabalho docente, embora muito necessários e desejáveis para a carreira de professor, bem como para qualquer profissão, pois incluem saberes comuns a qualquer profissão, como por exemplo, a ética no trabalho, organização do local de trabalho, a estética do serviço, e assim por diante. De fato, os saberes profissionais gerais e alguns dos competenciais (como analisados a seguir) também podem e devem ser encontrados nos indivíduos de outras profissões, ao passo que os saberes acima considerados são bem mais indicados e específicos para o profissional de ensino.

Sob um contexto mais amplo para os saberes e competências profissionais gerais, não se referindo necessariamente ao trabalho docente em especial, Araújo (1999, apud SENAC, 2004) destaca algumas qualidades pessoais que conferem grande importância aos atributos pessoais do trabalhador comum:

-Espírito de equipe: a necessidade do trabalho em equipe e a identificação com os objetivos da empresa constituem a base do espírito de equipe;

-Responsabilidade: refere-se ao esforço de fazer cumprir o compromisso assumido com a empresa;

-Autonomia: refere-se à capacidade do trabalhador de se antecipar aos comandos das chefias e agregar voluntariamente várias tarefas e intensificar seu próprio ritmo de trabalho;

-Iniciativa: é definida como a disposição para assumir e desenvolver um trabalho de forma espontânea e rápida;

-Capacidade de comunicação: é requerida por exigência da responsabilização grupal pela produção, de maneira a facilitar a troca de idéias e opiniões sobre um assunto até que se alcance o consenso;

-Flexibilidade: constitui-se em uma reatualização de valores, sob a ótica empresarial; é a capacidade do trabalhador de mudar hábitos arraigados;

-Cooperação: é definida como uma disposição de trabalhar eficazmente com outras pessoas em um grupo; prontidão de oferecer espontaneamente ajuda aos outros, sem tirar proveito da situação. A identificação com os objetivos da empresa reflete uma atitude de cooperação em torno dos seus objetivos;

-Interesse e atenção: são definidos como a vontade de dirigir os sentidos para situações de aprendizagem ou trabalho durante certo período. Referem-se, ainda, à valorização da aprendizagem no trabalho pelo operário.

Embora tais qualidades não estejam diretamente relacionadas com o trabalho profissional docente, o seu desenvolvimento é apoiado pela LDB para a educação profissional, que explicita a pessoa competente quando constitui, articula, mobiliza valores, conhecimentos e habilidades para a resolução de problemas rotineiros e inusitados em seu campo de atuação. “Assim, um indivíduo considerado competente seria aquele que age com eficácia diante do inesperado, superando a experiência acumulada e partindo para uma atuação transformadora e criadora” (SENAC, 2004). Segundo esta visão, as competências são definidas como capacidades ou saberes em uso, envolvendo conhecimentos, habilidades e valores.

Visando uma compreensão a respeito dos saberes do perfil profissional, Manfredi (1996) busca respostas às seguintes questões: O que esse profissional precisa saber (que conhecimentos são fundamentais)? O que ele precisa saber fazer (que habilidades são necessárias para o desempenho de sua prática de trabalho)? O que ele precisa saber ser (que valores, atitudes, ele deve desenvolver)? O que ele precisa saber para agir (que atributos são indispensáveis à tomada de decisões)? Procurando responde-las, Manfredi (1996) realiza a seguinte conceituação:

-Saber fazer: recobre dimensões práticas, técnicas e científicas adquiridas formalmente (curso/treinamento) e/ou por meio da experiência profissional;

-Saber ser: inclui traços de personalidade e caráter, que ditam os comportamentos nas relações sociais de trabalho, como capacidade de iniciativa, comunicação, disponibilidade para a inovação e mudança, assimilação de novos valores de qualidade, produtividade e competitividade;

-Saber agir: é subjacente à exigência de intervenção ou decisão diante de eventos (saber trabalhar em equipe, ser capaz de resolver problemas e realizar trabalhos novos, diversificados).

 Saberes competenciais

Concomitante com os saberes e conhecimentos profissionais construídos pelo professor durante a sua trajetória pessoal e profissional, há certas competências e habilidades que devem fazer parte de sua prática docente. Apesar de as competências e as habilidades estarem estreitamente ligadas com os saberes docentes, não acreditamos que sejam sinônimos, pois possuem significados epistemológicos e etimológicos diferentes. Mas, conforme Perrenoud (2002) enfatiza em seus trabalhos, as competências mobilizam saberes, mostrando a estreita relação entre os significados de ambos os termos. Por isso, preferimos denominar de saberes competenciais o conjunto de competências e habilidades que o docente precisa dominar ao exercer o seu ofício, juntamente com os demais importantes saberes, reconhecendo, porém, que são as competências que permeiam todos os processos do trabalho educativo, enquanto os saberes docentes se fazem presentes e atuantes em situações específicas.

Mas, como definir competência? O modelo da competência (sem necessariamente estar ligada diretamente à educação) sugere que a qualificação de um indivíduo está diretamente ligada à sua “capacidade de agir, intervir, decidir em situações nem sempre previstas ou previsíveis” (MANFRED, 1998). Apesar de existirem múltiplos significados para competência, dependendo do contexto de análise, Perrenoud (1999) a define, do ponto de vista da Educação, como sendo:

Uma capacidade de agir eficazmente em um determinado tipo de situação, apoiada em conhecimentos, mas sem limitar-se a eles. Para enfrentar uma situação da melhor maneira possível, deve-se, via de regra, pôr em ação e em sinergia vários recursos cognitivos complementares, entre os quais estão os conhecimentos (PERRENOUD, 1999).

Para não causar confusões sobre o significado de competência, Perrenoud (1999) declara que esta não é objetivo de aprendizado, nem desempenho observado, nem uma faculdade genérica como uma potencialidade de qualquer mente humana. Do latim,

Competentia significa proporção, simetria. Refere-se à capacidade de compreender uma determinada situação e reagir adequadamente frente a ela, ou seja, estabelecendo uma avaliação dessa situação de forma proporcionalmente justa para com a necessidade que ela sugerir a fim de atuar da melhor maneira possível (PERRENOUD, 2002).

 Há situações da vida que não se apresenta a necessidade de possuir competências especializadas. Muitas das situações inéditas da vida são simples o bastante para serem lidadas sem competências particulares, por meio da óbvia observação, atenção e “inteligência” (PERRENOUD, 2002). Por outro lado, alguém que dominasse um conjunto maior de grandes meios de observação, informação, análise e experimentação, conseguiria se livrar de um número grande de situações inéditas, pois para ele, situações que seriam complexas para outros, tornar-se-iam simples. Entendida deste modo, as competências são importantes metas da formação e os professores, conforme Garcia (1999) deveriam se comprometer em desenvolver pelo menos seis tipos de competências: a) empíricas (saber o que ocorre na classe, recolhendo dados e descrevendo situações); b) analíticas (capacidade interpretar os dados recolhidos para inferir a teoria); c) avaliativas (saber emitir juízos sobre situações educacionais); d) estratégicas (capacidade de planejar ações utilizando a análise realizada); e) práticas (relacionar a análise e a prática, visando produzir o efeito esperado); f) comunicação (saber comunicar e partilhar suas reflexões e idéias).

Além disso, o texto da Resolução do Conselho Nacional de Educação 01/2002, citado por Borges (2004), também se refere a seis competências: a) comprometimento com os valores inspiradores da sociedade democrática; b) compreensão do papel social da escola; c) domínio dos conteúdos a serem socializados, aos seus significados em diferentes contextos e sua articulação interdisciplinar; d) domínio do conhecimento pedagógico; e) conhecimento de processos de investigação que possibilitem o aperfeiçoamento da prática pedagógica; f) gerenciamento do próprio desenvolvimento profissional.

Conforme Demailly (1997), os saberes e competências são componentes da profissionalidade docente e incluem as competências organizacionais, que mobilizam saberes relacionados com as metodologias de trabalho coletivo e de organização profissional de caráter geral, estabelecendo comunicações com o meio interno e externo. Segundo os Referenciais para a Formação de Professores (BRASIL, 2002a), a perspectiva de competência permite realizar a formação prática sem ater-se aos limites do tecnicismo, de modo que o professor aprenda a criar e recriar sua prática, apropriando-se de teorias, métodos, técnicas e recursos didáticos desenvolvidos por outros educadores, se submeter-se a um receituário externamente programado por outros fora de seu contexto. O desenvolvimento da competência profissional permite ao professor uma relação de autonomia no trabalho, criando propostas pedagógicas, lançando mão de saberes pessoais.

Há também o que se denomina habilidades que, segundo Garcia (1999), é sinônimo de competências, porém, para Perrenoud (1999), as habilidades fazem parte da competência, pois esta relaciona-se ao “saber fazer algo”, que por sua vez, envolve uma série de ações habilidosas. A partir do momento que o sujeito fizer “o que tem que ser feito” sem sequer pensar, pois já o fez, não se fala mais em competência, mas sim em habilidades ou hábitos. Do latim, habilitas, significa aptidão, destreza, disposição para alguma coisa, enquanto capacidade, do latim capacitas, significa qualidade que uma pessoa ou coisa tem de possuir para um determinado fim, atuando com habilidade e aptidão. Perrenoud (2002) re-define competência, relacionando-a com as habilidades da seguinte forma: "aptidão para enfrentar uma família de situações análogas, mobilizando de uma forma correta, rápida, pertinente e criativa, múltiplos recursos cognitivos: saberes, capacidades, microcompetências, informações, valores, atitudes, esquemas de percepção, de avaliação e de raciocínio" (PERRENOUD, 2002).

Todos estes recursos não provêm da formação inicial nem contínua, pois alguns deles são constituídos ao longo da prática, ou seja, os saberes da experiência, por meio da acumulação ou da formação de novos esquemas de ação enriquecem ou modificam o que Bourdieu chama de habitus (já comentado no item anterior), contribuindo com a construção de habilidades. Apesar disso, a formação inicial deveria fornecer a base para desenvolver certos recursos básicos da prática, conforme sugere Perrenoud (2002).

Aludindo aos saberes competenciais, Zeichner (1993) afirma que “se os professores lidassem com os destinos dos seus alunos como lidam os dos seus próprios filhos, estaríamos mais próximos de compreender a finalidade do ensino numa sociedade democrática”. Considerando igualmente importantes como componentes da profissionalidade docente, Demailly (1997) apresenta saberes e competências, sendo que um destes são as competências éticas, vistas como um conjunto de competências que representa a capacidade do professor de se posicionar como adulto e cidadão que reflete aos jovens alunos uma certa idéia das relações entre os homens.

Para Perrenoud (2000), as competências docentes podem ser divididas em macro-competências (competências de referência) e micro-competências (competências mais específicas), e identifica as seguintes macro-competências atribuídas ao professor: administrar a progressão das atividades; administrar a sua própria formação contínua; conceber e fazer evoluir os dispositivos de diferenciação; enfrentar os deveres e os dilemas éticos da profissão; envolver os alunos em suas aprendizagens e em seu trabalho; informar e envolver os pais; organizar e dirigir situações de aprendizagem; participar da administração da escola; trabalhar em equipe; utilizar novas tecnologias.

Seguindo uma linha que, ao nosso ver, se aproxima da definição de competências, Freire (2000) lista alguns saberes de ordem basicamente pessoais e experienciais: alegria e esperança; apreensão da realidade; bom senso; compreender que a educação é uma forma de intervenção no mundo; comprometimento; consciência do inacabamento; convicção de que mudar é possível; criticidade; curiosidade; diálogo; estética e ética; humildade, tolerância; liberdade e autoridade; pesquisa; querer bem; reconhecer que a educação é ideológica; reconhecimento e assunção cultural; reflexão crítica sobre a prática; rejeição a qualquer forma de discriminação; respeito aos saberes e a autonomia do ser dos educandos; rigorosidade metódica; saber escutar; segurança e competência profissional; tomada consciente de decisões.

Deste modo, apresentamos um quadro esquemático, na tabela 06, onde procuramos efetuar possíveis aproximações entre as diferentes tipologias destes saberes, segundo os autores da área, até agora comentados, trazendo os nossos próprios termos. Vale um comentário adicional sobre os saberes competenciais, os quais preferimos alocá-los em uma posição diferenciada na tabela. Conforme já comentado, há certas competências e habilidades que devem fazer parte de sua prática docente, simultaneamente aos saberes e conhecimentos profissionais construídos pelo professor durante a sua trajetória pessoal e profissional. Apesar de as competências e as habilidades estarem estreitamente ligadas com os saberes docentes, não acreditamos que sejam sinônimos, pois possuem significados epistemológicos e etimológicos diferentes. Mas, conforme Perrenoud (2002) enfatiza em seus trabalhos, as competências mobilizam saberes, mostrando a estreita relação entre os significados de ambos os termos.

 

Tabela 06 – Saberes docentes: possíveis aproximações entre as tipologias de alguns autores.

 

Por isso, preferimos denominar de saberes competenciais o conjunto de competências e habilidades que o docente precisa dominar ao exercer o seu ofício, juntamente com os demais importantes saberes, reconhecendo, porém, que são as competências que permeiam todos os processos do trabalho educativo com autonomia, enquanto os saberes docentes se fazem presentes e atuantes em situações específicas. Assim, acreditamos que os saberes competenciais, tais como os denominamos, estariam permeando todos os demais saberes durante a atuação do professor, conforme as abordagens dos seguintes autores: Manfred (1998), Garcia (1999), Demailly (1997) e Zeichner (1993), mas especialmente Perrenoud (1999, 2000 e 2002) e Freire (2000).

Mas, quais são as fontes destes saberes? Os professores constroem saberes ao longo de sua trajetória pessoal e profissional a partir de determinadas fontes que contribuem para isso. Neste sentido, Borges (2004) lança mão de algumas questões introdutórias: onde e como os professores aprenderam a ensinar? Nas experiências pré-profissionais? Pela experiência profissional? Na prática pedagógica durante o estágio supervisionado? Na formação inicial? Ou nasceram com essas qualidades, ou seja, tinham o dom e o talento para ensinar?

Através destas perguntas, é possível notar uma possível classificação de fontes variadas para os saberes docentes. Mas, para Pacheco (1995), todos os saberes dos professores podem ser provenientes de dois tipos básicos de fontes, as formais e as informais, e:

 

O saber do professor é preenchido por vários conhecimentos provenientes de várias fontes. Se o conhecimento profissional do professor é um processo aquisitivo – analisado numa perspectiva construtivista e numa racionalidade técnica e prática – então aquilo que o professor faz e pensa é o resultado de um processo pessoal, de raciocínio e ação pedagógica, determinado por um ato de ensino e por um quadro de valores, crenças, projetos, etc (PACHECO, 1995).

 

Apresentando quatro fontes básicas dos conhecimentos profissionais dos saberes docentes, Shulman (1987) especifica:

a) o ambiente escolar com os conteúdos de disciplinas e áreas específicas de conhecimento, proveniente do processo formal e acadêmico no âmbito das ciências da especialidade do nível de ensino em que o docente se situa. Conforme já analisado, envolve dois tipos de conhecimento: substantivo e sintático.

b) os materiais educacionais e estruturas organizacionais e curriculares; o território do professor é mais amplo do que a sala de aula, pois ele está inserido em uma comunidade escolar em que sua autonomia e ação são determinadas pela cultura organizacional em que ele se insere, alterando suas expectativas, interesses e realizações.

c) o ambiente escolar com o conhecimento da educação formal, referente a processos de escolarização, de ensino e de aprendizagem e desenvolvimento humano, sobre os fundamentos normativos, filosóficos e éticos da educação, tudo sendo proveniente das teorias educacionais e pedagógicas, com quatro sub-fontes, conforme Pacheco (1995): a prática pedagógica (estudo da bibliografia dedicada ao conhecimento sistematizado do processo didático); a reflexão filosófica (ato introspectivo do professor, em que reflete sobre sua própria prática); a documentação bibliográfica (estudo dos principais pedagogos e teóricos da educação); a investigação (questiona e problematiza o que se faz).

d) a sabedoria da prática, proveniente de modo significativo da prática, com a característica de que não é possível ensina-la. Abrangendo três aspectos (experiência individual, prática observada de outros professores, e prática partilhada com outros professores), esta é a menos codificada de todas as fontes.

No entanto, ao se considerar a construção dos saberes a partir de fontes variadas, Tardif (2004) alerta contra o perigo de se reduzir o saber a processos meramente mentais cujo suporte é a atividade cognitiva dos indivíduos, sendo uma forma de subjetivismo. Este mentalismo possui algumas ramificações, tais como a do construtivismo ou do socioconstrutivismo radical, sendo esta a concepção mais predominante na Educação. De maneira oposta, há o sociologismo, que tende a eliminar a contribuição individual para a construção do saber, não levando em conta as individualidades de cada professor e transformando os atores sociais em bonecos de ventríloquo. Para Tardif (2004), porém, o saber do professor é, ao mesmo tempo, individual e social, estando assentado em transações entre o que são (emoções, cognição, expectativas, história pessoal) e o que fazem. O autor apresenta seis fios condutores para situar o saber entre o individual e o social:

a) saber e trabalho; o saber relaciona-se com a pessoa (tipo de trabalhador que foi e que é) e com o trabalho (o que ele fez e faz), sendo o saber modelado no/pelo trabalho.

b) diversidade do saber, com o pluralismo dos saberes no tocante ao saber-fazer pessoal, conhecimentos, saberes curriculares, dos programas, dos livros didáticos, própria experiência, vindos de fontes variadas, tais como a família do professor, a escola que o formou, cultura pessoal, universidades, seus pares, cursos de reciclagem, etc.

c) temporalidade do saber; o saber é construído no decorrer de uma trajetória de vida, de uma historicidade, de uma carreira profissional, levando tempo para aprender a ensinar, sendo que este processo nunca termina. Os futuros professores já foram alunos (cerca de 15 mil horas) e adquiriram crenças, representações, concepções sobre a prática do professor. Esse saber herdado da experiência escolar anterior é muito forte e persiste através do tempo de tal maneira que a formação universitária não consegue transforma-lo nem abala-lo.

d) experiência de trabalho enquanto fundamento do saber; os professores tendem a hierarquizar seus saberes, com ordem de importância, sendo que os saberes oriundos da experiência de trabalho cotidiana parecem constituir o alicerce da prática e da competência profissionais, ou seja, a experiência é o melhor saber, de acordo com uma amostra de professores pesquisados por Tardif (2004).

e) saberes humanos a respeito de seres humanos; o paradigma do trabalho produtor de bens materiais (racionalidade técnica) não serve para a educação, embora esta idéia seja a mais difundida, promovendo a idealização da organização escolar a partir das organizações industriais.

f) saberes e formação de professores; a formação do professor deve levar em conta os saberes do cotidiano dele, e não apenas as disciplinas fragmentadas de sua formação inicial. Seguindo a racionalidade técnica, os conhecimentos sobre educação são geralmente produzidos na universidade numa espécie de redoma de vidro, sem nenhuma conexão com a ação e a realidade profissional, devendo, em seguida, serem aplicados na prática por meio de estágios disfarçados ou de outras atividades do gênero.

Sintetizando as variadas fontes dos saberes docentes, Borges (2004) encontrou, nos resultados de sua pesquisa, as quatro principais fontes sociais: saberes oriundos da vida pessoal e da experiência familiar; saberes oriundos da experiência discente; saberes oriundos da formação inicial e contínua; saberes oriundos da experiência profissional.

O profissional reflexivo constrói de forma idiossincrática o seu próprio conhecimento profissional (PÉREZ GÓMEZ, 1997), e apesar de provenientes da mesma formação inicial e possuírem diversas semelhanças em suas trajetórias formativas, cada professor constrói o seu próprio conjunto de teorias individuais sobre a sua prática profissional de ensinar, conhecido também por sínteses pessoais, teorias implícitas, teorias particulares e constructos teóricos, conforme já comentado em um capítulo anterior. Outros termos usados por outros autores, segundo Garcia (1997) são: conhecimento prático pessoal, construções pessoais, epistemologias, modos pessoais de entender, filosofias instrucionais, teorias da ação, paradigmas funcionais, autocompreensão prática, sabedoria prática, metáforas, crenças.

Os professores modificam os seus constructos em função das experiências que vão sendo vivenciadas e das reflexões individuais ou em grupo. Conforme Garcia (1999), ao longo de sua experiência, os professores desenvolvem teorias implícitas e concepções pedagógicas, de modo que aparecem muitas vezes como explicações interiorizadas, embora tácitas, da prática docente, e que podem estar profundamente enraizadas em seu pensamento.

Neste trabalho, preferimos classificar as teorias implícitas como permeando todo o trabalho do professor, de modo interdependente de todos os demais saberes, e não como um saber a mais, como parece indicar o texto de Porlán e Rivero (1998) em sua classificação dos saberes profissionais dominantes. As teorias implícitas formam, segundo estes autores, mais um não-saber do que um saber, no sentido de que são as teorias que podem dar razão às crenças e as ações dos professores em função de categorias externas. Os professores não conseguem perceber a existência destas possíveis relações entre formas de pensar e atuar e determinadas formalizações conceituais. Este tipo de concepção só se coloca em evidência com a ajuda de outras pessoas (colegas de trabalho, pesquisadores, formadores), já que não são teorizações conscientes dos professores, nem rotinas, nem crenças. Para que ocorra a codificação da prática dos professores, apontando para um conhecimento profissional desejável prático, é necessário que haja uma reestruturação nos sistemas de idéias, articulando todos os saberes docentes de modo a permitir o surgimento de novos saberes e a reelaboração dos saberes já existentes, estimulados pela reflexão coletiva.

Mostrando que a prática do professor pode possibilitar a construção de teorias, Pimenta (2000) mostra que um dos caminhos para isso seria utilizar instrumentos de registros, tais como documentar a memória e a experiência dos professores, suas práticas na sala de aula, e suas reflexões. De fato, Gauthier et al (1998) lembram que estamos em busca de uma construção teórica baseada nos saberes da ação pedagógica, que podem ser testados com pesquisas, a fim de analisar as teorias particulares dos professores ou seus constructos teóricos.

As preocupações de Shulman (1986) a esse respeito também parecem se remeter, sobretudo, aos aspectos da sistematização deste corpus de conhecimentos relacionados ao ensino sob a forma do que ele denomina casos educacionais e métodos de ensino. Os casos, para Shulman (1986), podem ser trabalhados por qualquer profissional, não necessitando a apropriação de títulos especiais, pois, para o autor, um PhD em Ciências Sociais ou um Educador podem aprender a preparar materiais de caso. Os casos analisados de modo reflexivo podem fornecer teorias e princípios que fundamentariam a base para processos formativos de professores, construindo, desta maneira, pontes entre teoria e prática. Por isso, os casos devem ser mais do que simples relatos do trabalho educacional, ou uma justaposição de narrativas, mas como explica Shulman (1986), em um caso, o “conhecimento estratégico (ou julgamento) deve ser manifestado”. Esta afirmação lembra a proposta de Gauthier (1998), em que realiza analogias do professor com casos de julgamentos de um juiz, representando um acréscimo nas várias comparações até então realizadas com o trabalho docente (professor como artista, professor como técnico, professor como juiz, etc), embora este continue ainda sem identidade.

Como lembra Shulman (1986), não há respostas prontas devido à incerteza e surpresa dos casos que ocorrem em situações de sala de aula, e por isso, o professor recorre a julgamentos. Os casos de ensino executam um papel fundamental para a experiência, ou saber experiencial, pois um caso é uma versão relembrada, recontada, revivida de uma experiência direta, podendo ser entendido como uma narrativa que promove o fornecimento de teorias educacionais, se forem devidamente registrados e utilizados como ferramentas para processos formativos. Sendo diferentes de meras descrições de um evento, os casos deveriam ser corretamente apresentados em contextos de discussões, sendo reescritos após conversações e reflexões, servindo de fontes de experiências escritas para futuros professores.

Em suma, sistematizar o corpo de conhecimentos (saberes) dos professores, através dos casos de ensino, ou casos instrucionais, segundo Shulman (1986) visa a profissionalização da atividade docente. Semelhantemente, Perrenoud (2002) apresenta o que ele denomina de aprendizagem por problemas, que dá aberturas para realizarmos algumas aproximações dos casos de Shulman, uma vez que a proposta é a de analisar clinicamente as situações de aprendizagem (ou casos, conforme a denominação de Shulman) relacionadas com os aportes teóricos e construindo novos saberes. Zeichner (1997) também aponta para o practicum, “momentos estruturados de prática pedagógica (estágio, aula, prática, tirocínio) integrados nos programas de formação de professores”, ficando este termo popularizado na literatura da área. De modo similar às propostas de Shulman (1986) e Perrenoud (2002), Zeichner (1993) inclui todos os tipos de observação e práticas de ensino num curso de formação inicial, abrangendo as experiências de campo durante os estágios, experiências de ligação à prática no âmbito de disciplinas específicas e experiências educacionais dos alunos-mestres no âmbito da prática da docência.

Apoiando-se no fato de que os “professores também possuem teorias que podem contribuir para uma base codificada de conhecimento de ensino, [...] é bastante claro que a melhoria das escolas não pode depender só dos conhecimentos produzidos nas universidades” (ZEICHNER, 1993). Comentando sobre os trabalhos de Shulman, Mizukami (2004) reconhece que ainda faltam, para os profissionais de ensino, os saberes profissionais para saber o que e como ensinar conteúdos, pois os professores necessitam de um corpo de conhecimento profissional codificado e codificável que os guie em suas decisões quanto ao conteúdo e à forma de trata-lo em seus cursos e que abranja tanto conhecimento pedagógico quanto conhecimento da matéria.

Um dos caminhos para a codificação destas teorias particulares docentes é o trabalho reflexivo, pois pode tornar mais consciente alguns destes saberes tácitos (teorias particulares), que frequentemente não se exprime, uma vez que “a prática de todo professor é o resultado de uma ou outra teoria, quer ela seja reconhecida quer não. Os professores estão sempre a teorizar, à medida que são confrontados com os vários problemas pedagógicos” (ZEICHNER, 1993). Estas teorias pessoais, formuladas pelos professores para explicar algum episódio de ensino, devem ser vistas com o mesmo status das teorias sobre o ensino geradas nas universidades: ambas precisam ser avaliadas quanto à sua qualidade, mas ambas são teorias sobre a realização de objetivos educacionais, passíveis de análise e crítica, expondo e examinando publicamente durante reuniões em grupo.

Apontando para um estudo do processo de construção da teoria a partir da prática (reflexão deliberativa, reflexão da ação, conhecimento prático, conhecimento prático pessoal), Garcia (1999) apresenta outros autores, cujos trabalhos salientam que os professores, enquanto profissionais do ensino, desenvolvem um conhecimento próprio, produto das suas experiências e vivências pessoais, que racionalizaram e rotinizaram, ou seja, "em qualquer prática de ensino existe uma teoria subjacente em relação à qual os professores estão mais ou menos conscientes, e que determina, juntamente com outros fatores, a sua prática educativa." Este conhecimento tácito dos docentes é construído pela prática, servindo como teorias particulares sem verbalização. Por exemplo, podemos imaginar um motorista tentando verbalizar todas as ações automáticas (ou rotineiras) no ato de dirigir o seu carro de uma esquina a outra, distinguindo uma enorme quantidade de decisões, ações e procedimentos colocados em ação em tão pouco tempo. Fazendo uma analogia à tecnologia industrial, esta metodologia seria semelhante à identificação minuciosa de todas as ações que devem ser programadas (ou verbalizadas) para que um robô execute um determinado procedimento e, segundo Gauthier (1998), alguns pesquisadores estão transferindo estes conceitos da inteligência artificial e da robótica para a Educação, numa tentativa de utilizar a verbalização de professores experientes a respeito de seus próprios planos e práticas, o que tem introduzido na área alguns novos conceitos, como o de Especialista em Educação.

Comentando sobre a construção pessoal de teorias, ou os constructos particulares dos professores ao experienciar casos, Azzi (2000) afirma que, ao enfrentar situações específicas em sala de aula, o professor utiliza seus próprios entendimentos e elabora uma intervenção que lhe é muito característica, e realizada de uma forma empírica, sem uma organização intencional destes conhecimentos, nem uma investigação ou sistematização. A invenção de soluções para problemas singulares resulta em respostas e intervenções que constituem o gérmen do seu saber pedagógico, pois ao usar os conhecimentos, os saberes e a sua própria vivência, o docente é capaz de estabelecer uma relação teoria/prática que se traduzirá em sua práxis. Por sua vez, como atividade humana, a práxis pressupõe uma idealização consciente para transformar a realidade. Contudo, esta idealização é teórica, e é só por meio da idealização é que a ação poderá ser considerada uma práxis. Portanto, a união entre a idéia e a ação transformadora é a prática docente, que é a própria expressão do saber pedagógico. Conforme a autora há três níveis de práxis: repetitiva (repetição de atos), mimética (criação a partir de modelos), e criadora (revolucionária).

Algumas considerações finais a respeito dos saberes docentes nos remetem aos seus aspectos mencionados por Gauthier et al (1998): a) são adquiridos em parte numa formação universitária específica; b) a aquisição destes saberes é acompanhada de uma socialização profissional associada a uma experiência da prática docente; c) são mobilizados numa instituição especializada, a escola, e ligam-se a este contexto; d) são utilizados no âmbito de um trabalho, o ensino; e) têm como pano de fundo a tradição, pois todo indivíduo já viu alguém ensinando. Um sexto aspecto a acrescentar provém de Tardif (2004) ao afirmar que os professores usam seus conhecimentos pessoais e um saber-fazer personalizado, construído a partir de fontes tais como a família, a escola que o formou, sua cultura pessoal. Assim, os saberes docentes não são provenientes da pesquisa e nem podem ser ensinados como sendo soluções prontas (racionalidade técnica), pois há singularidades nas situações de sala de aula.

Sobre a natureza destes saberes, Gauthier et al (1998) resume que: a) a questão do repertório de conhecimentos comporta diferentes dimensões, que estão sempre interligadas: ideológicas, políticas, normativas, científicas; não promover a idéia de que se tem de aprender a teoria sobre o ensino antes da prática ou ao contrário, mas simplesmente mostrar que é importante haver um saber teórico sobre o ensino e que uma parte desse saber seja tirada da prática na sala de aula e comprovado pela pesquisa; b) os saberes são oriundos da prática, no exercício da atividade; c) deve-se examinar o que o professor faz na sala de aula e identificar os saberes que ele mobiliza para exercer sua atividade; d) verbalizar as ações inconscientes dos professores, compilando, analisando, e refletindo; e) os saberes são oriundos de uma reflexão dos professores sobre sua prática; f) há uma dimensão afetiva, devendo-se organizar e manter a ordem para facilitar as aprendizagens.

Afinal, um professor qualificado é, segundo Azzi (2000), aquele que usa o saber cotidiano na medida certa, possui o conhecimento e o saber pedagógico, tem um compromisso com o processo de ensino-aprendizagem, e é consciente de sua práxis, pois qualidade de ensino é sinônimo de qualificação docente. Ao construir estas habilidades, competências e saberes, alguns autores da área atribuíram aos professores analogias diversas: professor como artista (SCHÖN, 1983), como músico (STENHOUSE, 1985), como jardineiro (STENHOUSE, 1987), como advogado (GAUTHIER et al, 1998). Porém, não é nosso objetivo neste texto discutir cada uma destas analogias com suas propriedades e limitações, mas apenas cita-las como exemplos.

Referindo-se a uma síntese dos trabalhos de outros autores, Garcia (1999) aponta para algumas características que os professores podem atingir, levando-os a um nível de desenvolvimento profissional altamente desejável e participativo nas decisões políticas:

 

Existe neles uma preocupação pela melhoria da escola, aceitando as responsabilidades necessárias para conseguir este objetivo. São professores com capacidade para exercer a liderança tanto formal como informal, tanto dentro como fora da escola, com um amplo quadro conceitual para compreender as relações entre as decisões a diferentes níveis no sistema educativo, e estão bem informados sobre política a diferentes níveis.

 

Anunciando nove características de um bom professor universitário, Centra (1987, apud GARCIA, 1999) cita: capacidade de comunicação; atitudes favoráveis aos alunos; conhecimento do conteúdo; boa organização do conteúdo e do curso; entusiasmo com a matéria; justo nos exames; disposição para a inovação; estimular o pensamento dos alunos; capacidade de reflexão. Complementando estas características, Perrenoud (2002) afirma que o ideal é que se desenvolva a cidadania, atingindo o seguinte perfil de professor: pessoa confiável, mediador intercultural, mediador de uma comunidade educativa, garantia da lei, organizador de uma vida democrática, transmissor cultural, intelectual. No tocante à construção de saberes e competências, o mesmo autor cita um professor que deveria ser: organizador de uma pedagogia construtivista, garantir o sentido dos saberes, criador de situações de aprendizagem, administrador da heterogeneidade, regulador dos processos e percursos de formação.

Portanto, entendemos que um dos caminhos para a profissionalização do ensino seja a definição destes saberes docentes, considerados neste item e a construção de novos saberes, além de uma valorização pública do professor como um verdadeiro profissional do ato de ensinar. Por outro lado, o próprio professor também precisa se conscientizar individualmente e se auto-valorizar, envolvendo-se nas decisões institucionais, nas seleções de materiais didáticos, e nas pesquisas educacionais, pois assim, este se manifestará perante a sociedade enquanto um sujeito que se fundamenta em argumentos científicos para convencer e persuadir outros de que ele é, de fato, um profissional específico com identidade própria e autonomia. Como conseqüência, profissional algum de outra área poderia ocupar o seu lugar na docência, e o trabalho de professor deixaria de ser concebido como um serviço de sacerdócio voluntário, ou como falta de algo melhor, em virtude de sua suposta simplicidade.

 

 

Este texto é parte integrante da tese de doutoramento:

LANGHI, R. Astronomia nos anos iniciais do ensino fundamental: repensando a formação de professores. 2009. 370 f. Tese (Doutorado em Educação para a Ciência). Faculdade de Ciências, UNESP, Bauru, 2009.