2.1.3

2.1.3 Autonomia e profissionalização da ocupação de professor

A Educação Básica, no Brasil, é composta pela Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio. O objetivo da Educação Básica é assegurar a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhes os meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores, conforme os artigos 21 e 22 da LDBEN (BRASIL, 1996). Há um órgão que atua no desempenho das funções e atribuições do poder público federal em matéria de educação, o Conselho Nacional de Educação - CNE. Os dois principais documentos norteadores da Educação Básica são: a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDBEN, Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (BRASIL, 1996) e o Plano Nacional de Educação - PNE, Lei nº 10.172/2001. O primeiro documento, a LDBEN, regulariza a base comum do currículo, a carga horária e presença mínima em aula e as formas de promoção de série, mas cabe aos estados, municípios e escolas, a normatização das peculiaridades locais. O segundo documento estabelece metas decenais para todos os níveis e etapas da educação.

Mas, qual é a profissão daquele que trabalha nestes níveis de ensino na educação brasileira? Uma primeira resposta seria: professor. No entanto, no Brasil, há 53 profissões regulamentadas pelo MTE (Ministério do Trabalho e Emprego), com suas próprias normas regulamentadoras (BRASIL, 2002). Todas as profissões que não estão oficialmente regulamentadas não fazem parte da listagem destas 53 profissões, e são vistas, portanto, como ocupações. Para categorizar as ocupações existentes no país, o MTE utiliza um sistema de nomenclaturas e classificações denominado CBO (Classificação Brasileira de Ocupações), que funciona como um documento normalizador do reconhecimento, da nomeação e da codificação dos títulos e conteúdos das ocupações do mercado de trabalho brasileiro. Porém, o reconhecimento da CBO é apenas para fins classificatórios, sem função de regulamentação profissional. O ofício de professor não aparece nesta listagem por se tratar de uma profissão não regulamentada, e por isso, considera-se esta atividade como uma ocupação. Os empregos são agrupados em conjuntos (campo profissional) e identificados por processos, funções ou ramos de atividades. Estes campos profissionais são denominados de grupos de base ou família ocupacional (BRASIL, 2002).

Apesar do ofício de docente não ser classificado oficialmente como uma profissão, o MTE apresenta 118 categorias variantes para a ocupação específica de professor. Dentre elas, estão três famílias ocupacionais de especial interesse em nossa pesquisa, conforme classificados pelo MTE (BRASIL, 2002): professores leigos que atuam no ensino fundamental, professores com formação em ensino médio que atuam no ensino fundamental, e professores com formação em nível superior que atuam no ensino fundamental (nos anos iniciais), cujas atividades, competências, formação e saberes são apresentados em sua homepage.

Esta classificação assumiu, em 1997, as seguintes estatísticas, conforme censo realizado pelo INEP (1999): do total de 616.956 docentes que atuavam no ensino fundamental de 1ª a 4ª séries naquele ano, 74.965 professores brasileiros tinham apenas o ensino fundamental (completo ou incompleto), 382.217 possuíam o ensino médio completo, e 157.432 professores eram formados em cursos de graduação ou além. Uma pesquisa mais recente, segundo o INEP (2007), a situação em 2006 era a seguinte: o número de estabelecimentos com ensino fundamental, que atendiam até a 4ª série, eram de 146.033, e o número de matrículas no ensino fundamental, até a 4ª série, foi cerca de 18.338.600. O número de funções docentes no ensino fundamental era de 1.665.341 atuantes no Brasil (lembrando que um mesmo docente pode atuar em mais de um nível/modalidade de ensino e em mais de um estabelecimento). Destes, 840.185 professores trabalhavam no ensino fundamental de 1ª a 4ª séries, e 865.655 de 5ª a 8ª séries. Naquele ano, 8.538 docentes de 1ª a 4ª séries possuíam apenas a formação fundamental completa. Os docentes de mesmo nível, apenas com a formação média completa, perfaziam um total de 346.855 profissionais. Os formados em cursos completos de graduação eram de 484.792 (estas são as informações mais atualizadas disponíveis até a elaboração deste texto). Isto significa que, em termos de percentagem, cerca de 42% dos professores dos anos iniciais do ensino fundamental, em exercício no país, não cursaram, em 2006, uma graduação, a qual constitui-se em uma importante trajetória formativa docente, normalmente denominada de formação inicial.

Não considerar a significância de uma formação profissional específica para atuar na área é o mesmo que não determinar a ocupação de professor como uma profissão. Tal problemática pode reforçar a concepção de senso comum de que ensinar não é um trabalho complexo. No caso do ensino de ciências, Cachapuz (2005) e Carvalho e Gil-Pérez (1998) comentam que estas são tradições docentes e sociais extremamente enraizadas, constituindo-se em uma falsa visão que consideram o ensino como uma tarefa essencialmente simples, para a qual basta conhecer a matéria, ter alguma prática docente e ter alguns conhecimentos “psicopedagógicos” de caráter geral. No Brasil, esta concepção ainda é bem persistente, segundo os Referenciais para Formação de Professores (BRASIL, 2002a), e muitos acreditam que o professor é um mero técnico, e que ensinar é algo simples, dependendo apenas de boa vontade e treinamento.

De fato, Masetto (2001) mostra que muitos acham que o trabalho docente parece fácil. Conforme Giovanni (2000), esta é uma concepção linear e simplista dos processos de ensino, segundo a qual, para que um professor realize seu trabalho, basta que se lhe assegure o conhecimento do conteúdo e das formas de ensinar, sem se levar em conta a variedade das situações de ensino, que costumam ser complexas e incertas.

Acrescentando esta concepção simplista do ensino ao fato de que o trabalho em sala de aula não é uma profissão regulamentada, o resultado é um conjunto de consequências muitas vezes prejudiciais ao educando. Uma delas é o caso de profissionais de outras áreas assumirem salas de aulas, sem o mínimo prepararo didático-pedagógico, com uma visão distorcida e vulgar do ensino. Por outro lado, “ensinar, que é algo que qualquer um faz em qualquer momento, não é o mesmo que ser um professor” (GARCIA, 1999).

De fato, com relação à formação inicial específica de professores, um relatório especial, produzido pelo MEC (BRASIL, 2007a), aponta para algumas conclusões, como por exemplo, o baixo percentual de professores com formação inicial na área da disciplina que lecionam. Por exemplo, na disciplina de Física, apenas 9% cursaram, de fato, uma Licenciatura em Física. Para a disciplina de Química este percentual está em 13%. Além disso, devido à situação atual da educação brasileira, embora professores não tenham formação inicial específica, o indivíduo pode ser considerado habilitado, desde que tenha realizado alguma qualificação fora da formação inicial, por meio de processos de formação continuada. Talvez este fato tenha ocorrido devido à escassez de docentes suficientes para atuarem como profissionais na/para a educação.

O mesmo relatório, acima citado (BRASIL, 2007a), aponta para uma necessidade crescente no ensino médio que irremediavelmente afeta os níveis inferiores: a escassez de pelo menos 235 mil professores para o ensino médio no país, particularmente nas disciplinas de Física, Química, Matemática e Biologia. Por exemplo, para a disciplina de Física, precisa-se de 55 mil professores; talvez isto se deva ao decrescente número de interessados na profissão docente, uma vez que, entre 1990 e 2001, terminaram a formação inicial apenas 7.216 professores nas licenciaturas de Física, e algo similar também se observou na disciplina de Química (BRASIL, 2007).

Por que há esta escassez na profissão docente? O relatório identifica algumas causas, que apresentamos de forma resumida: redução do número de jovens interessados em ingres­sar na carreira do magistério; baixos salá­rios oferecidos ao ofício de professor; condições inadequadas no trabalho de ensinar; o aumento da violência no local de trabalho (escolas); ausência de uma perspectiva motivadora de formação continuada associada a um plano de carreira atraente (BRASIL, 2007a). Os próprios Referenciais para Formação de Professores (BRASIL, 2002a) atestam que a função de professor é hoje uma profissão muito desvalorizada, não só pelos baixos níveis salariais, mas também pelo tratamento que o professor recebe, tanto do poder público como da sociedade.

Isto leva à outra concepção de senso comum normalmente divulgada: o ofício de professor parece transmitir a idéia, para muitos, de que a ocupação docente é um cargo de sacerdócio voluntário. Por muito tempo, a função docente tem sido relacionada com um conjunto de virtudes: abnegação, sacrifício, bondade, paciência, sabedoria. Mas, atualmente, o discurso educacional, segundo Referenciais para Formação de Professores (BRASIL, 2002a), volta-se para outros substantivos: profissionalização, autonomia, revalorização. De fato, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica mostram que há a necessidade de se quebrar este paradigma do professor voluntário, mediante a mudança de foco dos cursos de formação, que devem oferecer uma ênfase diferencial aos professores da educação básica, mudando a visão tradicional desse professor de “voluntário” para um profissional com qualificação específica (BRASIL, 2001), apontando um caminho para a profissionalização do ofício de docência.

Após analisar diversas visões de outros autores e suas definições que caracterizam um profissional de uma área específica, Contreras (2002) conclui, sob o ponto de vista destas definições, que os professores são semiprofissionais. De fato, a área da Sociologia das Profissões, segundo Gauthier et al (1998), não enxerga uma diferença de natureza, mas sim de grau. São cinco níveis relacionados aos graus de profissionalização: profissões marginais, ocupações que aspiram a profissionalização, semiprofissões (aqui inclui-se o professor, conforme os autores), novas profissões, e as profissões tradicionalmente estabelecidas. Há três enfoques teóricos no estudo das profissões: enfoque do processo, enfoque estrutural funcionalista, e o enfoque do poder. Não entraremos em detalhes sobre cada enfoque, pois este não é o objeto de nosso trabalho, mas convém mencionar que todos estes enfoques dão a mesma ênfase ao saber.

De fato, a questão dos saberes, ou o corpus de conhecimentos especializados, é tão importante que uma profissão pode ser ameaçada caso não se leve em conta os seus saberes específicos (GAUTHIER et al, 1998). Por exemplo, caso se reduza o preparo pedagógico (saberes específicos ao trabalho docente) e se dê mais ênfase à formação disciplinar (saberes não específicos ao trabalho docente), então qualquer pessoa que detenha o saber disciplinar poderia ter livre acesso ao ato de ensinar. Em outras palavras, um engenheiro poderia dar aulas de Física, ou uma enfermeira poderia lecionar Biologia. Em ambos os exemplos, a profissão de professor, o Profissional da Educação, fica ameaçada.

Então, por que a ocupação de professor não se profissionaliza? Gauthier et al (1998) apresentam alguns problemas que representam obstáculos para a profissionalização do ensino: é uma profissão de massa; é uma atividade altamente sindicalizada; o ensino possui uma imagem estereotipada de “carreira para mulheres” ou “carreira por falta de algo melhor”; há falta de professores de carreira no debate sobre a profissionalização; há fortes limites políticos e fiscais.

Porém, defendendo a profissionalização docente, Brault (1994) afirma que ela já se compõe como uma imposição, visando a necessidade tanto em termos de imagem do professor na sociedade civil, quanto em termos de dinâmica de formação. No entanto, para pensar a profissionalização do ensino, deve-se levar em conta que o ato de ensinar em uma sala de aula constitui-se em um trabalho docente com nuances próprias, distinguindo-o do trabalho comum em determinados aspectos. Alguns deles são citados por Gauthier et al (1998), ao analisarem os estudos de outros autores: complexidade, incerteza, instabilidade, singularidade, conflitos de valor, contradições impossíveis de serem superadas. Esta complexidade do trabalho docente é acentuada pelo fato de que o trabalho educacional é sempre singular e contextual, isto é, ocorre sempre em situações específicas.

Neste sentido, dizemos que o trabalho do professor é diferente da maioria de outros ofícios, apoiado nas três das principais dimensões da profissionalidade do educador, segundo identificadas por Contreras (2002), dada a sua importância relacionada à autonomia docente: a obrigação moral, o compromisso com a comunidade, e a competência profissional. Segundo Perrenoud et al (2001), a profissão professor possui especificidades que a diferenciam de demais profissões, a saber, ela é um trabalho interativo com duas funções ligadas entre si e complementares: uma função didática (estruturação e gestão de conteúdos) e uma função pedagógica (gestão e regulação interativa dos acontecimentos em sala de aula). Além disso, o ensino não deixa de ter a sua componente artística ímpar e identificadora, pois como é impossível dominar as variáveis e relações científicas, o professor vale-se de intuições artísticas. No entanto, esta componente artística não abrange apenas uma criatividade sem critério, mas baseia-se na maneira em que os docentes buscam respostas singulares a situações incertas e complexas (CONTRERAS, 2002). Por isso, a racionalidade técnica, como veremos adiante, não pode resolver os dilemas de determinadas circunstâncias do trabalho docente, pois os professores não são operários de uma linha de montagem. A educação não pode ser determinada a partir de fora, mas os docentes devem tomar as decisões sobre as suas próprias aulas, o que distingue o profissional da educação com o de outras áreas.

O trabalho no ensino, afinal, não é tão simples conforme consideramos anteriormente nas visões de alguns. Esta ocupação possui fatores definidores de sua complexidade, a qual, conforme Gauthier et al (1998), apresenta seis características fundamentais: multidimensionalidade (quantidade de acontecimentos e tarefas na aula), simultaneidade (várias destas dimensões acontecem ao mesmo tempo), imediatez (rapidez do ritmo com que estes acontecimentos ocorrem), imprevisibilidade (caráter inesperado desses acontecimentos), visibilidade (dimensão pública ou o gesto público do professor diante dos alunos), historicidade (impacto deste gesto sobre os acontecimentos ainda por ocorrer na aula).

Analisando a Lei n. 5692/71 sobre a profissionalização do ensino, o INEP (1982) define trabalho como atividade transformadora do homem sobre a natureza, com o intuito de produzir os bens necessários, não só à sua própria subsistência, mas também à do grupo em que vive. No caso da educação, mesmo que não implique necessariamente uma qualificação profissional específica, não há como formar as novas gerações para "o exercício consciente da cidadania", na época atual, se se elimina da escola a preparação para o trabalho. Em uma sociedade na qual se espera que seus membros exerçam alguma atividade produtiva — mesmo que seja gerir o capital — não se pode dissociar educação de trabalho.

Por isso, para Azzi (2000), dois aspectos principais diferenciam o trabalho docente do trabalho material: a) as características dos elementos do processo de trabalho (atividade humana e meios de produção) e a maneira como estes elementos são combinados na docência (o objeto de trabalho – aluno – é também um sujeito que partilha da atividade); b) a (des)qualificação docente decorrente da especialização (fragmentação): o profissional perde o poder de decisões, sua autonomia, o controle sobre o objetivo, os meios e o processo de seu trabalho. Embora o trabalho docente possa ser decomposto metodologicamente, este só pode ser desenvolvido em sua totalidade. E para Brzezinski (2006), o trabalho docente é a expressão do saber pedagógico, sendo que este é, ao mesmo tempo, o fundamento e produto da atividade docente que acontece no contexto escolar, ou fora dele, em instituições sociais historicamente construídas.

Desta maneira, o professor precisa sentir-se sujeito do trabalho que ele mesmo desenvolve para que se caminhe em direção à profissionalização do ensino, e construir a identidade profissional docente. Isto nos remete ao conceito de autonomia, que, conforme Giovanni (2000), é concebido como o direito e a responsabilidade de tomar decisões profissionais, ou seja, a não dependência de receitas ou pacotes prontos. Autonomia pressupõe interligação crescente, cooperação entre idéias e entre pessoas. Trata-se da independência intelectual para o estudo e para o exercício da reflexão.

Segundo os Referenciais para Formação de Professores (BRASIL, 2002a), para se desenvolver a autonomia como capacidade pessoal, é necessária a vivência de relações sociais não autoritárias, nas quais haja participação, liberdade de escolha, possibilidade de tomar decisões e assumir responsabilidades. Ao mesmo tempo, a efetivação de relações democráticas exige a participação de pessoas autônomas, ou seja, capazes de fazer escolhas, tomar decisões e assumir responsabilidades compartilhadas. Autonomia é, portanto, o espaço da liberdade com responsabilidade. Conforme os PCN, a autonomia não existe em sua forma pura, pois ela só se realiza como um processo coletivo, numa articulação entre a dimensão pessoal e social, trabalhando na superação da dicotomia entre perspectivas individualistas e coletivistas (BRASIL, 1997b). Neste sentido, a função do professor é coletiva e individual, e a sua autonomia é o exercício de cooperação e criatividade, práticas de transformação com base na realidade social.

A autonomia didática é vista, de acordo com Azzi (2000), como uma poderosa ajuda para enfrentar os desafios do processo de ensino-aprendizagem, que muitas vezes representam uma barreira. A autonomia didática só pode ser adquirida pelo professor e expressa no cotidiano de sua prática. Porém, a autonomia possui limites e possibilidades. Por exemplo, os professores dos anos iniciais do ensino fundamental possuem certa autonomia relativa, organizando e direcionando a dinâmica da sala de aula. Contudo, as condições materiais de cada escola e os processos de controle exercidos sobre os professores constituem-se em fatores determinantes para limitar esta autonomia.

Neste sentido, Giovanni (2000) evidencia a necessidade da autonomia para o estudo e para o exercício da indagação e da reflexão do professor, reconhecendo que há diferentes fontes de construção do conhecimento disponível ao professor: recursos de natureza teórico-acadêmica construídos pela freqüência em cursos, palestras, seminários, consultas a livros, artigos; especialistas de ensino ou professores das áreas específicas do conteúdo escolar; troca de experiências entre colegas, e a observação atenta, crítica e reflexiva (individual ou coletivo) das situações, atos e decisões que permeiam a prática docente. Por este motivo, Contreras (2002) esclarece que a autonomia é uma prática social, permeando situações. Assim, não existem pessoas autônomas, mas pessoas que agem autonomamente (MONTEIRO, 2006).

Segundo Freire (2000), encontramo-nos em um momento de desvalorização do trabalho do professor, e uma pedagogia da autonomia apresenta elementos constitutivos da compreensão da prática docente enquanto dimensão social da formação. No entanto, Contreras (2002) nos adverte contra uma autonomia relativa, ilusória, e aparente. Mas confirma a importância de uma autonomia profissional docente, apresentando diferentes significados para autonomia. Segundo o autor, a autonomia profissional possui diferentes significados, pois suas concepções definem-se em função de três modelos de profissionalidade docente. Analisando estes modelos, procuramos identificá-los com as abordagens “CHART” conforme consideradas no capítulo anterior e sintetizadas na tabela 04. Assim, Contreras (2002) e Giroux (1997) deixam claro que a reflexão do professor deve ir além de um limite humanista e pessoal, mas seguir na direção de um intelectual crítico e transformador.

Tabela 04 – Diferentes concepções de autonomia profissional, segundo Contreras (2002) e suas possíveis relações com as abordagens CHART.

 

                                

 

Por autonomia da escola, Mello (1993) entende que é a capacidade de elaboração e realização de um projeto educativo próprio em beneficio dos alunos e com a participação de todos os intervenientes no processo educativo, não sendo um descompromisso do Governo com o ensino, nem da própria escola com seus alunos, pois diretrizes centrais mínimas e flexíveis sobre o que se deve essencialmente garantir para todos são imprescindíveis. Isto corrobora com a LDB, que assume a autonomia como um direito dos profissionais da educação e das comunidades escolar e local em participar na elaboração do projeto pedagógico e em conselhos escolares. Quanto às unidades escolares, ela prevê progressivo grau de autonomia pedagógica, administrativa e de gestão financeira (BRASIL, 1996).

E, destacando que a educação deve ser um processo de socialização e individualização voltado para a autonomia, o PDE – Plano de Desenvolvimento da Educação (BRASIL, 2007) defende uma visão sistêmica do ensino, ou seja, a educação deve ser tratada como unidade, sem segmentação. Isto significa que a formação inicial e continuada do professor deve ser aprimorada, para que esta melhoria se reflita na educação básica. Assim, “um dos principais pontos do PDE é a formação de professores e a valorização dos profissionais da educação.” No caso específico do ensino de ciências, o decreto nº 6.095, de 24 de abril de 2007 (BRASIL, 2007) cria os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, que devem, dentre outras finalidades, oferecer programas especiais de formação pedagógica inicial e continuada.

No entanto, para compreender o conceito de autonomia do indivíduo, segundo o PDE (BRASIL, 2007), é necessário perceber a dialética presente na relação entre socialização e individualização. Daí a importância atribuída aos programas de formação continuada que, segundo o MEC (BRASIL, 2008), devem ser planejados de forma que a autonomia se construa pela colaboração, e a flexibilidade encontre seus limites na articulação e na interação, e devem contribuir para que haja o desenvolvimento da autonomia intelectual e profissional dos docentes.

Desta maneira, a formação de professores, tanto inicial como permanente, deve levar em consideração a reflexão epistemológica da prática, de modo que o aprender a ensinar seja realizado através de um processo em que o conhecimento prático e o teórico possam integrar-se num currículo orientado para a ação, o que implica a não consideração da Prática de Ensino como “mais uma disciplina” (GARCIA, 1999). Deste modo, o professor enfronha-se em uma aprendizagem com a própria prática. De fato, segundo Guarnieri (2000), há uma parte da aprendizagem da profissão docente que só ocorre e só se inicia em exercício, quando se consolida o processo de tornar-se professor, ou seja, o aprendizado da profissão a partir de seu exercício possibilita configurar como vai sendo constituído o processo de aprender a ensinar. Há indicadores que sugerem que, para ter sucesso profissional na tarefa de ensinar, é necessário ao professor conhecer, dominar e articular os vários elementos que compõem o seu trabalho. Perspectivas de autores na área da formação de professores têm apontado para a necessidade de investigar como os professores vão adquirindo e construindo as competências para o desempenho da função docente ao longo de seu processo de desenvolvimento profissional.

Portanto, o professor não deveria ser uma espécie de técnico que aplica à sua prática, teorias transmitidas nos cursos de formação, mas deveria ser um profissional que adquire e desenvolve conhecimentos a partir desta prática e no confronto com as condições da profissão. Tais conhecimentos permitem ao professor avaliar a própria prática e detectar, nas condições em que seu trabalho acontece, os problemas, as dificuldades que limitam sua atuação e que exigem dele a tomada de decisões, desde as de natureza pragmática até as que envolvem aspectos morais. Contudo, parece que há uma tradição bem estabelecida que endossa a concepção de que a universidade detém o monopólio e a responsabilidade da geração de novos conhecimentos através dos resultados de suas pesquisas, e que estes devem ser repassados para professores do ensino médio, fundamental e infantil (GIOVANNI, 2000).

Comentando esta dicotomia da teoria/prática, Zeichner (1993) afirma que há uma concepção sobre a separação entre teoria e prática, de modo que a teoria é produzida nas universidades e a prática ocorre nas escolas, sendo que o professor deve aplicar, durante a sua prática, as teorias produzidas e aprendidas nas universidades. Mas, o conhecer e o fazer, quando tratados de forma dissociada no âmbito da formação profissional, ocasiona limitações e não dá conta dos saberes docentes (BORGES, 2004), sendo um aspecto característico do modelo disciplinar e aplicacionista, em que há a concepção de que os conhecimentos produzidos pelos pesquisadores são transmitidos na formação inicial aos futuros professores, os quais, devem aplicar esses conhecimentos durante a sua prática. Segundo Schön (1997), em primeiro lugar, ensinam-se, na universidade, os princípios científicos que consideram relevantes, e depois, pensam na aplicação destes princípios. Por último, “tem-se um practicum cujo objetivo é aplicar à prática cotidiana os princípios da ciência aplicada”. E os programas de formação ajudam muito pouco os futuros professores a lidarem com esta defasagem. Segundo Maldaner (2000), o “practicum reflexivo” de Schön (1983 e 1987) nada mais é do que simplificadamente o “aprender fazendo”, geralmente desconsiderado durante a formação inicial de professores.

A concepção de um professor como técnico aplicacionista de regras e esquemas de ação deriva do modelo da racionalidade técnica, trazendo conseqüências para a acima comentada relação teoria-prática nos cursos de formação inicial de professores (PÉREZ GÓMEZ, 1988), pois isto causa um reducionismo do papel do professor e dos problemas da prática como sendo prioritariamente técnicos. A racionalidade técnica trata-se de uma concepção epistemológica da prática, herdada do positivismo (CONTRERAS, 2002), servindo de referência também para a educação, conforme Pérez Gómez (1997). Segundo este modelo, a atividade do profissional é instrumental e centralizada para a solução de problemas através da aplicação rigorosa de teorias e técnicas científicas.

Desta maneira, Pérez Gómez (1997) apresenta duas razões fundamentais que impedem o uso da racionalidade técnica na resolução de problemas educacionais: qualquer situação de ensino é incerta, única, variável, complexa e repleta de conflitos de valores; não existe uma teoria única e objetiva, que permita a identificação de regras, técnicas ou esquemas para se utilizar na prática educacional. E Contreras (2002) acrescenta mais um forte motivo contra a racionalidade técnica: ultimamente, percebeu-se uma perda da autonomia da parte do professor por causa da racionalidade técnica e do aumento da burocratização, que o fez ficar sem controle de suas próprias tarefas. Assim, no campo da educação, a racionalidade técnica, segundo o autor, não encontra aplicação na grande parte do conhecimento pedagógico, e é senso comum achar que basta aplicar soluções já existentes para os problemas que devem surgir durante o ensino.

Embora alguns autores apresentem a racionalidade técnica com conotações negativas, Pérez Gómez (1997) mostra que há diversas tarefas concretas na realidade escolar em que a melhor, e às vezes a única, forma de execução eficaz consiste na aplicação de técnicas e regras esquemáticas. O fato é que simplesmente não se pode considerar o trabalho docente como uma atividade exclusivamente técnica, sendo mais correto encará-la como uma atividade reflexiva e artística. Corroborando com a idéia de que não se deve abandonar completamente a racionalidade técnica, Pacheco (1995) afirma que o conhecimento profissional não deixa de ter por base um interesse técnico, um saber-fazer ou um modelo de racionalidade técnica, um conhecimento herdeiro do positivismo, marcado pela noção da objetividade e da verdade, com as seguintes características: especializado, firmemente limitado, científico e padronizado. Neste caso, o saber profissional será mais um saber-em-ação (know-in-action), identificado pelo saber-fazer (know-how), pelo saber baseado em regras e planos de atuação, cuja atuação não provém de uma operação intelectual prévia, mas de uma experiência interiorizada com tendência para se rotinizar.

O saber-em-ação (ou conhecimento-na-ação como também costuma ser traduzido) é um dos três componentes básicos do pensamento prático. Esclarecendo estes conceitos e reforçando a idéia de que a competência de um profissional está ligada às capacidades de autodesenvolvimento reflexivo, Schön (1983 e 1987) apresenta este tripé do professor reflexivo: conhecimento-na-ação, reflexão-na-ação, reflexão sobre a ação e sobre a reflexão-na-ação. 

a) O conhecimento-na-ação, também chamado por Habermas (conforme Pérez Gómez, 1997), de conhecimento técnico ou solução de problemas, e orienta toda a atividade do ser humano, compondo o seu saber fazer, cujo conhecimento é implícito na atividade humana, sendo resultado da experiência e reflexão anterior, e que se consolida em rotinas ou esquemas quase automáticos.

Conforme Schön (1983), o saber-em-ação (ou conhecimento-na-ação) compõe-se de diversos tipos de saber que revelamos nas nossas ações inteligentes (atividades físicas e privadas), onde o saber está na ação (andar de bicicleta, por exemplo). Desta maneira, executamos uma atividade espontaneamente e com perícia, sem ser capazes de tornarmos estas atividades verbalmente explícitas. O termo saber-em-ação é o mais popularizado, mas de acordo com Pacheco (1995), há outras denominações encontradas na literatura da área para este termo: modo característico do saber prático habitual; processos não lógicos (em oposição aos processos lógicos); saber tácito (aquilo que muitas vezes sabemos, mas não sabemos explicar); saber envolvido na prática (ações espontâneas que realizamos e sobre as quais não pensamos).

Por isso, acreditamos que o significado do termo know-in-action apresentado por Schön (1987) seria mais bem expresso em nossa língua por “reflexo-em-ação”, ou “reflexo-na-ação”, uma vez que, conforme o autor, não há nenhuma reflexão da parte do profissional ao tomar repentinamente decisões práticas em seu trabalho, mas há simplesmente um reflexo no sentido de improvisar rapidamente uma ação que responda à situação singular pela qual o profissional está passando.

Isto se explica pelo fato de que, desde o momento em que nascemos, dispomos de alguns poucos esquemas hereditários e, a partir destes, construímos outros de maneira contínua (PERRENOUD, 1999). O conjunto dos esquemas constituídos em dado momento de nossa vida forma o que os sociólogos, como Bourdieu (1972), chamam de habitus, definido como um “pequeno lote de esquemas que permitem gerar uma infinidade de práticas adaptadas a situações sempre renovadas, sem jamais se constituir em princípios explícitos”, ou ainda:

 

Sistema de disposições duráveis e transponíveis que, integrando todas as experiências passadas, funciona a cada momento como uma matriz de percepções, apreciações e ações analógicas de esquemas que permitem resolver os problemas da mesma forma (BOURDIEU, 1972).

 

b) A reflexão-na-ação ocorre quando se pensa sobre o que se faz ao mesmo tempo em que se atua. Segundo Pérez Gómez (1997), Habermas chama este conhecimento de deliberação prática, cujo processo de reflexão não possui o rigor ou a sistematização da análise racional, embora este seja o melhor instrumento de aprendizagem para o profissional da Educação, pois em contato com a situação prática, ele constrói novas teorias, esquemas e conceitos. O tipo de ensino sob a forma de reflexão-na-ação exige do professor, segundo Schön (1997), uma “capacidade de individualizar, isto é, de prestar atenção a um aluno, mesmo numa turma de trinta, tendo a noção do seu grau de compreensão e das suas dificuldades”:

 

Existe, primariamente, um momento de surpresa: um professor reflexivo permite-se ser surpreendido pelo que o aluno faz. Num segundo momento, reflete sobre esse fato, ou seja, pensa sobre aquilo que o aluno disse ou fez e, simultaneamente, procura compreender a razão por que foi surpreendido. Depois, num terceiro momento, reformula o problema suscitado pela situação; talvez o aluno não seja de aprendizagem lenta, mas, pelo contrário, seja exímio no cumprimento das instruções. Num quarto momento, efetua uma esperiência para testar a sua nova hipótese; por exemplo, coloca uma nova questão ou estabelece uma nova tarefa para testar a hipótese que formulou sobre o modo de pensar do aluno. Este processo de reflexão-na-ação não exige palavras (SHÖN, 1997, p. 83).

 

Pacheco (1995) ajuda a entender este aspecto quando explica que reflection-in-action é aquilo que um prático sabe quando realiza uma ação em que mantém uma conversação aberta com uma situação dada na base da imediatez e improvisação. É uma distinção muito sutil do saber-em-ação, pois neste caso, também não há descrição verbal da ação tomada. Aqueles que são bons improvisadores ficam sem saber o que dizer ou então dão respostas totalmente inadequadas quando se pede que digam o que fazem ou que acabaram de fazer.

c) A reflexão sobre a ação e sobre a reflexão-na-ação, ou como Habermas o define, segundo Pérez Gómez (1997), reflexão crítica, é realizada depois da própria ação, utilizando o conhecimento para descrever, analisar e avaliar as intervenções anteriores, sendo esta a componente essencial do processo de aprendizagem permanente em que consiste a formação do profissional. Conforme Schön (1997):

 

É possível olhar retrospectivamente e refletir sobre a reflexão-na-ação. Após a aula, o professor pode pensar no que aconteceu, no que observou, no significado que lhe deu e na eventual adoção de outros sentidos. Refletir sobre a reflexão-na-ação é uma ação, uma observação e uma descrição, que exige o uso de palavras (SHÖN, 1997, p. 83).

 

 Contudo, precisa-se cuidar do perigo de a prática se tornar tão repetitiva e rotineira, que o profissional acaba reproduzindo automaticamente a sua aparente competência prática, perdendo oportunidades de reflexão-na-ação e reflexão sobre a ação (PÉREZ GÓMEZ, 1997).

Diferenciando o conhecimento prático do técnico, Pacheco (1995) mostra que o interesse técnico pressupõe uma ação objetiva, enquanto que o interesse prático pressupõe uma ação subjetiva, o que Habermas (1987) denomina de ação comunicativa. No entanto, este saber subjetivo não é totalmente personalizado e arbitrário, pois é fruto de um consenso, no mínimo de dois indivíduos, ou seja, de intersubjetividade. É nesta linha que Schön (1983) propõe o conceito de “epistemologia da prática” (e que impulsionou diversas pesquisas posteriores, segundo Mizukami et al, 1996), diretamente contra a racionalidade técnica, pressupondo que em qualquer prática profissional há um forte entendimento próprio daquilo que os práticos podem fazer, sem haver dúvidas com relação à ação a ser tomada, pois as situações práticas são eventos únicos (situações singulares), caracterizado pela: complexidade, incerteza, instabilidade, singularidade, e conflito de valores. Em termos profissionais, trata-se do próprio conhecimento prático, ou conforme Schön (1987), uma reflexão-em-ação ou reflexão-na-ação (reflection-in-action). Pérez-Gomez (1988) o denomina de conhecimento de segunda ordem ou metaconhecimento.

Por isso, Pacheco (1995) afirma que o conhecimento do professor possui uma dimensão técnica (saber técnico), e uma dimensão prática (um saber prático, ou um saber pragmático, ou um saber do senso comum profissional das situações de ensino, ligado a destrezas, intuições, atitudes, valores). O conhecimento prático resulta do trabalho cotidiano do professor e pode também ser chamado de conhecimento artesanal, com um interesse prático, uma reflexão-em-ação, racionalidade prática, adquirido pela experiência. É um conhecimento íntimo, social, tradicional, que se expressa em ações pessoais e que é composto de experiência pessoal e da transmissão oral de outros professores, com confronto de experiências. Visando diferenciar este conhecimento prático dos demais tipos, o mesmo autor mostra algumas de suas características: reconstrução (proveniente da experiência, enriquecendo-se com a mesma); singularidade (há situações singulares que são tratadas com a individualidade que cabe a cada professor, pois cada professor pode resolver o problema do seu próprio modo); contextualização (ligação entre os conhecimentos que provém de interações sociais e profissionais); intersubjetividade (dentro da subjetividade, há uma objetividade no discurso partilhado por um conjunto de professores).

Apresentando uma proposta de definição do conhecimento profissional como um conhecimento prático, epistemologicamente diferenciado e radicalmente distinto ao até hoje apresentado pela maioria, Porlán e Rivero (1998) afirmam que a construção deste tipo de conhecimento é gradual e progressista, tomando em consideração as concepções e atuações de partida dos professores, seus obstáculos, e possíveis hipóteses de progressão que facilitem sua evolução.

Este conhecimento prático é formado por cinco tipos de conhecimentos, conforme Elbaz (1983, apud PACHECO, 1995): a) conhecimento de si próprio (habilidades, capacidades, personalidade, atitude, valores); b) conhecimento do contexto de ensino (meio em que o professor se movimenta); c) conhecimento dos conteúdos escolares (conteúdos específicos da disciplina que leciona e sua transposição didática); d) conhecimento do desenvolvimento do currículo (conhecer o currículo e do programa oficial); e) conhecimento da instrução (processos didáticos de ensino e aprendizagem dos alunos). Achando esta categorização discutível, Pacheco (1995) acrescenta mais uma categoria: o conhecimento pessoal, uma vez que um determinado professor se distingue dos demais pela sua individualidade e idiossincrasia, e pela sua ação individual, ou seja, diferentes pessoas que são professores, explicam a mesma matéria de diferentes modos, ainda que tenham a mesma formação. Contudo, há outras diferenças que contribuem para este conhecimento pessoal: idade, experiência, base cultural e social, sexo, matérias, habilidades, além das escolas também diferirem em vários modos. Assim, todas estas diferenças levam a diferentes formas de ensino.

Dando continuidade à idéia das diferentes ações tomadas por profissionais práticos, há ainda a reflexão sobre a reflexão-em-ação quando ocorre uma boa descrição verbal das atitudes e decisões práticas durante o trabalho de sala de aula. Além disso, pode ocorrer também uma reflexão acerca desta própria descrição (SCHÖN, 1987). Neste caso, ocorre uma reflexão da parte do profissional, cuja idéia de “pensamento reflexivo” como um fim educacional remonta a Dewey (1959, apud GIOVANNI, 2000), segundo o qual, é a capacidade para o ato de pensar reflexivo que nos emancipa da ação unicamente impulsiva e rotineira. Também, ela não é inerente à ação, mas consiste num esforço consciente e voluntário da razão humana sobre a ação. Zeichner (1993) aponta taxativamente em seus trabalhos para a importância de “preparar professores que assumam uma atitude reflexiva em relação ao seu ensino e às condições sociais que o influenciam”, e Pacheco (1995) lembra que foi Dewey quem apresentou primeiramente a estratégia de formar o professor pela reflexão/investigação, e esta idéia consolida-se com Schon e Stenhouse. Como se percebe, o conceito de reflexão não é tão novo assim, mas ele tem sido, atualmente, o mais utilizado por especialistas e pesquisadores para indicar uma nova cultura de formação de professores (NÓVOA, 1992), ou as novas tendências da formação e prática dos professores (GARCIA, 1992). Conforme Zeichner (1993), grande parte do que Dewey abordou no início do século passado sobre este tema, foi dirigido aos professores e continua relevante em nossos tempos; e, segundo Dewey, a reflexão implica intuição, emoção e paixão, não sendo, portanto, um conjunto de passos ou técnicas a serem usados pelos professores. Ele define três atitudes necessárias para a ação reflexiva: a) espírito aberto (admitir que está sujeito a erros, ouvir mais do que uma única opinião, e atender a possíveis alternativas); b) responsabilidade (ponderação cuidadosa das conseqüências de determinadas ações que pretende tomar); c) sinceridade (encarar os dois itens anteriores de modo sincero e verdadeiro, fazendo parte do seu íntimo, e não como uma mera fachada profissional).

O principal defensor contemporâneo da idéia de reflexão como condição para um trabalho profissional competente em educação vem do próprio Schön (GIOVANNI, 2000). Este conceito de “prática reflexiva” apresentado por Schön (1987), é uma versão do pensamento reflexivo de Dewey, e repõe a importância da unidade entre o conhecimento e a ação, reconhecendo os práticos como investigadores de sua própria ação.

Com o tempo, outros autores somaram pesquisas a respeito do conceito de reflexão, e contribuíram com o aumento do uso de termos diferentes, mas com alusões ao mesmo significado para reflexão. Referindo-se a esta dispersão semântica sobre as diversas definições que se têm dado a este termo, Garcia (1999) alista-os: prática reflexiva, formação de professores orientada para a indagação, reflexão-na-ação, professor como investigador, professor como sujeito que toma decisões, professor como profissional, professor como sujeito que resolve problemas. E num trabalho posterior, Garcia (1997) acrescenta outros termos relacionados à reflexão, contribuindo para a diversidade de propostas metodológicas: professor como controlador de si mesmo, professores reflexivos, professor como pessoa que experimenta continuamente, professores adaptativos, professor como investigador na ação, professor como cientista aplicado, professores como sujeitos com um ofício moral, professores como sujeitos que colocam hipóteses, professores como indagadores clínicos, professores auto-analíticos, professores como pedagogos radicais, professores como artesãos políticos, professor como acadêmico. Além de alistar termos em comum aos já citados acima, encontramos em Pérez Gómez (1997) outros diferentes, cuja característica é também superar a relação linear entre o conhecimento científico-técnico e a prática na sala de aula: ensino como um processo de planejamento e tomada de decisões, ensino como um processo interativo, professor como prático reflexivo. Não distanciando muito dos significados, e referindo-se ao processo prático de formação de professores, Pérez Gómez (1997) apresenta outros termos semelhantes encontrados na literatura da área: formação clínica, formação prática reflexiva, aprendizagem baseada na reflexão prática.

Isto ilustra a crescente popularidade do termo reflexão, tornando-se “o conceito mais utilizado por investigadores, formadores de professores e educadores diversos, para se referirem às novas tendências da formação de professores” (GARCIA, 1997). Desta maneira, os termos prático reflexivo e ensino reflexivo transformaram-se em slogans da reforma de ensino e da formação de professores em vários países (ZEICHNER, 1993), tornando-se moda em todos os setores da comunidade da formação de professores. De fato, desde que se publicaram os trabalhos de Schön (1983), a idéia de professor reflexivo passou a ser o paradigma corrente na literatura pedagógica (CONTRERAS, 2002), tornando-se slogan e perdendo o seu real significado. Assim, temas como o ensino reflexivo, prático reflexivo, investigação-ação, professores-investigadores, passaram a constituir-se em lemas, com certa confusão sobre o significado do termo reflexão, investigação pelos professores, professores investigativos, emancipação.

A reflexão vem de encontro com o fato de os professores serem encarados como técnicos que se limitam a cumprir o que outros lhes ditam fora do seu campo de trabalho, num esquema de “cima para baixo”, e o conceito de professor prático reflexivo reconhece a importância da experiência que reside na prática dos ‘bons’ professores (ZEICHNER, 1993).

Embora a prática profissional tenha muita importância, conforme o acima discutido, Guarnieri (2000) alerta que a prática reflexiva não ensina por si só: dizer que o professor aprende a partir do exercício da profissão não significa dicotomizar teoria e prática, ou seja, desconsiderar o papel da formação, ou dizer que a prática ensina por si mesma de modo completo, ou mesmo que a prática não esteja repleta de princípios teóricos. Embora muitos autores exponham negativamente a racionalidade técnica, Pacheco (1995) lembra que o ensino é uma realidade técnica, embora seja muito mais uma realidade intuitiva, artística e moral. Perrenoud (2002) também é contra a formação meramente prática, pois para ele a formação é teórica e prática simultaneamente.

Assim, Gauthier et al (1998) afirmam que a racionalidade técnica tem sua validez, pois é preciso reconhecer que há técnica no ensino, porém, isso não reduz a atividade docente a somente esta dimensão técnica, forçando uma postura cientificista radical. Por outro lado, não aceitar resultados de pesquisas para determinar a ação (esta seria uma postura não cientificista radical) significaria encarar o ensino como uma tarefa que não pode ser realizada por meio da simples repetição de regras estabelecidas por pesquisadores. Gauthier et al (1998) afirmam que a posição de Schön com relação à racionalidade técnica é extremista, e parece ignorar totalmente a importância da parte do reservatório de conhecimentos oriundo da formação de base, na qual o profissional vai buscar elementos para orientar sua prática. Contrariamente ao que diz Schön, Gauthier et al (1998) mostram que ao formular e resolver um problema, o profissional reflexivo não recorre somente aos saberes experienciais, pois ele traz consigo toda uma bagagem de saberes provenientes de sua formação profissional, bagagem certamente incompleta, mas cuja importância não se pode desprezar. Schön parece se esquecer que o saber teórico possui um papel que não se pode desprezar na prática de uma profissão. Por isso, Gauthier et al (1998) propõem pensar um estado intermediário entre os extremos da racionalidade técnica e da racionalidade prática, diferindo-o do que ele chama de “reflexismo” de Schön.

Por isso, há uma crescente valorização no que se denomina “professor reflexivo”, desde o início da década de 80, e que se opõe à racionalidade técnica, garantindo um desenvolvimento contínuo (continuum) em sua formação, desde que ocorra, no âmbito coletivo, a troca de experiências e práticas, num constante processo de construção de seu practicum (PIMENTA, 2000), e que, de acordo com Baptista (2003), o professor deveria ser ensinado a ser reflexivo desde a sua formação inicial, pois segundo ele, a reflexão e discussão oferecidas aos licenciandos permitem que estes se posicionem criticamente em relação às suas futuras atividades pedagógicas, desenvolvendo as suas consciências de que ser professor é assumir uma postura pedagógica de investigação e não de mero repetidor de conhecimentos, fazendo dele um profissional com autonomia mais desenvolvida. Esta preocupação aponta para os caminhos da formação reflexiva do professor-pesquisador (ALARCÃO, 1996;GRILLO, 2000; MALDANER, 1991).

Apesar de tantas divulgações e pesquisas sobre a emancipação e reflexão de professores, Zeichner (1993) mostra que há ainda a desconsideração de todo o conhecimento prático de bons professores por parte de alguns investigadores que tentam definir uma base de conhecimentos de ensino, sem ao menos ouvir professores em exercício, ou por parte de publicações da área que citam poucas referências a trabalhos produzidos por professores. Teóricos, que se auto-proclamam por críticos sociais, frequentemente fornecem exortações vagas a futuros professores, pois não possuem qualquer envolvimento direto com o ensino básico, secundário ou de formação de professores.

De qualquer modo, uma provável reforma na formação profissional de professores deveria levar em conta que a identidade do professor vai sendo construída como um profissional da educação, e não apenas como um sujeito de uma ocupação, onde outros profissionais de áreas distintas podem ocupar o seu lugar no ato de ensinar. Mas, para produzir uma identidade ao professor, é necessário definir, segundo Gauthier et al (1998), saberes, habilidades e atitudes. Para que ocorra a profissionalização do ofício de docente, faz-se necessário constituir um núcleo de saberes, ou um repertório de conhecimentos, o qual é definido no campo do ensino como sendo um conjunto de saberes, conhecimentos, habilidades e atitudes, que um professor precisa para realizar o seu trabalho de modo eficaz num determinado contexto de ensino.

Portanto, segundo Gauthier et al (1998), estamos vivendo um período histórico importante para a profissionalização do ensino. Nóvoa (1997) também vê a forte possibilidade de uma reforma educativa coerente e inovadora, uma vez que a formação de professores está sendo encarada pelas pesquisas como algo mais do que simplesmente aperfeiçoar o professor através de cursos de curta duração, predominantemente conteudista, ou qualificá-lo para receber mais títulos e certificações, visando progressão financeira na carreira docente. Também, de acordo com Zeichner (1993), localizamo-nos num ponto crítico no que se refere à formação de professores; conforme Machado (2004), encontramo-nos em um momento histórico em que a profissão professor encontra-se em jogo e no centro das discussões educacionais.

 

Este texto é parte integrante da tese de doutoramento:

LANGHI, R. Astronomia nos anos iniciais do ensino fundamental: repensando a formação de professores. 2009. 370 f. Tese (Doutorado em Educação para a Ciência). Faculdade de Ciências, UNESP, Bauru, 2009.