2.1.1

2.1.1 Definições e conceitos relacionados à formação docente

 

Encontramo-nos em um contínuo processo de formação, pois estamos constantemente aprendendo desde os primeiros dias de vida. Por isso, a formação não pode ser concebida como um processo finito e completo em si mesmo, o que implica em um provável repensar no significado do termo normalmente usado para os alunos de graduação que estão terminando ou terminaram recentemente seu curso: formandos. Em certo sentido, todos os seres que detenham uma capacidade de aprender durante sua vida podem ser chamados de formandos, pois o aprendizado não termina ao se completar, após poucos anos, um curso normalmente chamado de superior. Assim, não existe formação completa e acabada, pois todos somos formandos enquanto seres pensantes, e jamais atingimos o grau de formados.

No caso específico dos professores, sua formação deve promover o contexto para o seu desenvolvimento intelectual, social e emocional, segundo Garcia (1999); e visto que os indivíduos adultos devem contribuir para o processo da sua própria formação a partir das representações e competências que já possuem, entende-se que a formação não é um mero treino de professores.

Para Pacheco (1995), o conhecimento profissional do professor nem é um conhecimento limitado temporalmente nem se pode dar como terminado em termos de aquisição, localizando quatro componentes formativas para a profissão docente: a) formação pessoal, uma espécie de autodesenvolvimento, que sempre está presente na formação; b) formação científica específica; c) formação pedagógico-didática; d) prática pedagógica.

Mas, como podemos definir o termo formação de professores? De modo sucinto, a formação de professores é o ensino profissionalizante para o ensino (GARCIA, 1999), onde ocorre o encontro entre pessoas adultas, uma interação entre formador e formando, com uma intenção de mudança, desenvolvida num contexto organizado e institucional mais ou menos delimitado. Defendendo o princípio de que o aprendizado profissional continua mesmo após a formação inicial do professor, Garcia (1999) concebe a formação de professores como um contínuo, não pretendendo que a formação inicial ofereça “produtos acabados”, mas trata-se da primeira fase de um longo e diferenciado processo de “desenvolvimento profissional” (GARCIA, 1999), de modo que se precisa conceber os professores como sujeitos em constante evolução e desenvolvimento. Segundo Zeichner (1993), é preciso reconhecer que o processo de aprender a ensinar se prolonga durante toda a carreira do professor, e independente do que os programas de formação inicial fazem, o essencial é que ensinem e preparem o professor a começar a ensinar, de modo que estes se sintam responsáveis pelo seu próprio desenvolvimento profissional. Por isso, a formação deve ser encarada como um “processo permanente” (NÓVOA, 1997).

Procurando definir esta formação contínua, Garcia (1999) reúne inúmeros conceitos de outros autores e apresenta diversas definições, e prefere adotar o termo desenvolvimento profissional de professores, para o qual primeiramente se refere em seu texto como toda a atividade que o professor em exercício realiza com a finalidade formativa profissional ou pessoal, individualmente ou em grupo, para atingir uma eficácia maior no desempenho de suas tarefas atuais ou futuras. Conforme o mesmo autor, especialmente desde a década de 90, tem ocorrido internacionalmente uma notável evolução na formação de professores em exercício, tanto na quantidade como na qualidade, surgindo outros termos para formação continuada na literatura especializada: aperfeiçoamento, formação em serviço, formação contínua, reciclagem, desenvolvimento profissional e desenvolvimento de professores, muitas vezes usados como termos equivalentes.

A formação continuada, para Pacheco (1995), é um processo destinado a aperfeiçoar o desenvolvimento profissional do professor, nas suas mais variadas vertentes e dimensões. A natureza desta formação encerra duas idéias principais: mudança para novos saberes relacionados com a prática profissional; e atividades conducentes a uma nova compreensão do fazer didático e do contexto educativo. Segundo este autor, a formação contínua se dá através de três critérios: critério pessoal (necessidade de desenvolvimento e autoconhecimento), critério profissional (necessidades profissionais individuais e de grupo), critério organizacional (necessidades contextuais da escola; mudanças que refletem alterações sociais, econômicas e tecnológicas).

Definindo este processo de desenvolvimento profissional, os Referenciais para Formação de Professores (BRASIL, 2002a) o declaram como permanente, e como uma articulação entre a formação inicial e a continuada: a formação inicial corresponde ao período de aprendizado dos futuros professores nas escolas de habilitação, devendo estar articulada com as práticas de formação continuada. De fato, o aluno de um curso de formação de professores deveria aprender a valorizar a formação continuada desde a sua formação inicial, e obter subsídios para continuar se formando, ao mesmo tempo em que poderia integrar ensino-aprendizagem-pesquisa, num processo contínuo de auto-aprendizagem, aprendendo a aprender (metacognição), o que envolveria a produção de artigos e a elaboração de trabalhos (MASETTO, 2001).

O Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), elaborado pelo governo, reconhece este vínculo entre as formações inicial e continuada quando afirma que as universidades públicas devem se voltar para a educação básica, visando a melhoria de sua qualidade como dependente da formação de seus professores, o que decorre diretamente das oportunidades oferecidas aos docentes (BRASIL, 2007). Do mesmo modo, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores afirmam que, durante a graduação, a instituição de ensino superior deve tocar nesta questão da continuidade formativa (BRASIL, 2001). Estes documentos apóiam-se sob uma base legal única, afirmando que programas de formação continuada para os profissionais de educação dos diversos níveis devem ser oferecidos e mantidos pelos Institutos Superiores de Educação, conforme o artigo 63, parágrafo terceiro, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1996). E o artigo 14, parágrafo segundo, das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica (BRASIL, 2001), enfatiza a flexibilidade de cada instituição formadora para construir projetos inovadores e próprios, concebendo um sistema de oferta de formação continuada, que propicie oportunidade de retorno planejado e sistemático dos professores às agências formadoras. Assim, no Brasil, a formação continuada é “exigência” por lei (BRASIL, 2008).

No entanto, mais que uma preocupação quantitativa, os cursos de formação continuada devem atuar no sentido qualitativo. Preocupando-se com a qualidade destes, Guarnieri (2000) mostra que devem articular a formação teórico-acadêmica com o conhecimento da prática de sala de aula. Logo, assume-se a escola como o locus de formação continuada dos professores, segundo Garcia (1999), Silva (2000), Mizukami (2002) e Nóvoa (1997). Porém, para os Referenciais para Formação de Professores (BRASIL, 2002a), a formação continuada pode ocorrer dentro ou fora da escola, mas sempre com repercussão em suas atividades. Quando ocorre no âmbito escolar, deve haver uma reflexão compartilhada com toda a equipe, nas tomadas de decisão, na criação de grupos de estudo, na supervisão e orientação pedagógica, na assessoria de profissionais especialmente contratados, etc. Outras formas sugeridas por este documento oficial são os programas desenvolvidos com outras instituições de ensino, cursos, palestras, seminários, etc.

Por isso, assumimos em nosso trabalho a noção de que o termo formação continuada abrange um lastro muito maior de oportunidades formativas, indo muito além da concepção do senso comum de que ela só ocorre no âmbito profissional, geralmente cristalizando-se sob a forma de cursos. Existem outras fases marcantes durante a vida do indivíduo, que contribuem com processos formativos, podendo exercer uma grande influência em seu cotidiano escolar. De fato, esta contínua e evolutiva formação do trabalho docente parece ser marcada, conforme afirmam alguns autores que veremos a seguir, por etapas ou trajetórias que lhe atribuem processos formativos e momentos de aprendizagem construtiva da, na, e além da, carreira profissional. Assim, a formação de um profissional (que ainda se tornará um professor) tem início em momentos bem anteriores a um curso de graduação, contrário à idéia de que é na formação inicial onde a construção da identidade profissional docente começa a se estruturar, pois é lá que supostamente irá vivenciar experiências que expõem os seus saberes (DINIZ e CAMPOS, 2005).

Diversos autores apresentam estas etapas, que formam um profissional da educação, com diferentes terminologias, e Pacheco (1995) cita algumas delas como sinônimos: trajetória profissional, formação contínua, formação continuada, processo de formação, e itinerário formativo. Outros termos são: percurso formativo, ou ciclos vitais dos professores (GARCIA, 1999).

De fato, aprender a ensinar significa percorrer uma trajetória, ou percurso, de sobrevivência profissional, reconhecendo que tal ato é, segundo Pacheco (1995), individualizado, personalizado, diferenciado, que depende de suas crenças, atitudes, experiências prévias, motivações, interesses e expectativas, com diversas influências, interações complexas, negociadas e provisórias. Classificando estas influências, Pacheco (1995) cita os trabalhos de: a) Zeichner e Tabachnik (de 1987), com as influências pré-formativas, formativas, e a experiência escolar; b) Jordell (de 1987), com apenas dois tipos principais de influência (pessoal e estrutural), mas com quatro níveis que os interligam: pessoal (experiências pessoais), classe (alunos), institucional ou escolar (condições de trabalho), e social (economia e política); c) Lacey (de 1977), com períodos metafóricos que influenciam o processo de formação de um professor: período de lua de mel (quando o professor iniciante possui idealismos e sonhos para mudar situações), período de crise (quando o professor toma consciência das dificuldades reais da escola), período de adaptação (quando o professor aprende a aceitar o fracasso, podendo socializar ou não os seus problemas). Segundo Silva (2000), a continuidade da aprendizagem docente é marcada por pelo menos três trajetórias de formação: a vida do indivíduo, a formação acadêmica que teve, e a escola onde ele trabalha.

Mesmo levando em conta que o processo formativo de um professor jamais estará concluído, Pacheco (1995) identifica cinco etapas de formação de um professor: aluno, enquanto criança e adolescente; aluno de um curso de formação de professores, estagiário, professor principiante, e professor com experiência. Comentando sobre o ciclo de vida profissional dos professores, Huberman (2000) identifica estados da alma dos docentes: entrada na carreira, quando está descobrindo e explorando para a sobrevivência; estabilização com independência e emancipação, pertencendo a um corpo profissional; diversificação de métodos e materiais de ensino; questionamento sobre seu trabalho, desencantando-se devido à monotonia das aulas; serenidade e distanciamento afetivo, com perda de ambição, aceitando a realidade; lamentações e queixas devido aos alunos e à política educacional; desinvestimento com relação à carreira, retirando-se para “cultivar o seu jardim”.

Diante de tantas classificações de vários autores para as etapas pelas quais o professor experimenta, tentamos organizá-las e aproximá-las de acordo com suas características comuns, de modo que passaremos, a partir de agora, a analisar com mais cuidado cada trajetória formativa com suas respectivas fases, segundo o nosso olhar.

Apoiando a nossa idéia de que a formação de um futuro professor tem início bem mais cedo do que a dita formação inicial, Silva (2000) mostra que as situações vividas pelo profissional do ensino antes mesmo de escolher esta carreira influenciam o seu modo de ensinar, pois o professor age em conformidade com sua personalidade, seus hábitos, caprichos, preferências, automatismos, angústias ou culpabilidades e sem um controle da racionalidade.

Para construir o seu “eu profissional”, segundo Tardif (2004), o agora educador se lembra (consciente ou inconscientemente) de algum professor que lhe chamou a atenção enquanto era criança, e pode incorporar as qualidades ou truques dele, pois a temporalidade estrutura a memorização de experiências educativas marcantes para a construção de sua “personalidade profissional”. A visão que os professores possuem sobre o ensino, remonta de suas experiências como alunos. Assim, boa parte dos professores sabe algo sobre a sua profissão antes mesmo de pensarem em escolher esta carreira profissional, o que não acontece com a maioria das profissões. Os professores são trabalhadores que já estiveram em seu lugar profissional enquanto ainda crianças, e num período de aproximadamente 15 mil horas durante 16 anos (TARDIF, 2004). A vontade de ser professor pode ter tido origem durante sua idade infantil, ou esta decisão pela carreira talvez tenha sido influenciada pela família, ou pelo incentivo de seus próprios professores, ou ainda por simplesmente ajudar colegas de classe sobre a matéria. Muitos professores pesquisados por Tardif (2004) mostraram que há uma afeição muito grande por crianças, além de afirmarem que o ato de ensinar lhes é inato, um dom, uma arte. Para o autor, estas fontes pessoais de saberes são chamadas de fontes pré-profissionais do saber-ensinar, e a socialização pré-profissional compõe-se das experiências familiares e escolares.

Vivenciando estas fases da vida, repleta de experiências pré-profissionais, pré-escolares, familiares, pessoais e enquanto aluno do ensino fundamental e médio, o futuro professor (muitas vezes sem saber que escolherá tal carreira profissional) atravessa uma trajetória de sua vida que lhe agregam conceitos e concepções acerca do ensino e da aprendizagem em etapas que antecedem em muito a chamada “formação inicial”, mediante um curso de graduação.

e sua posterior doc e da aprendizagem, contribuindo para um processo formativo essor ao mesmo tempo. Assim, analisando o fato de ocorrer inicialmente uma formação do indivíduo que ainda atuará como professor, acreditamos ser apropriado denominarmos tal etapa de sua vida, conforme descrita nos parágrafos acima, de trajetória formativa docente inicial.

A partir do momento que o sujeito faz sua opção pela carreira docente e se envolve num curso de graduação, cujo objetivo é a formação profissional de professores, fases diferentes são experimentadas (novos conceitos pedagógicos e didáticos, conteúdos disciplinares, atividades como estagiário), influenciando e afetando a sua trajetória de vida. A partir deste momento, acreditamos que o indivíduo encontra-se em uma etapa intermediária, pois os processos formativos apresentados neste curso de formação de professores posicionam-se entre sua anterior trajetória de vida pré-profissional (e inicial, de fato) e a sua futura e próxima carreira profissional. Assim, preferimos denominar a trajetória formativa que detalharemos a seguir de trajetória formativa docente intermediária, e não como normalmente costuma ser chamada, a saber, formação inicial.

O termo inicial refere-se, sobretudo, ao princípio de uma carreira que foi escolhida pelo indivíduo, e não entendemos como sendo o início de uma formação em si. Nesta introdução para a futura profissão, são construídos saberes que não permanecem inalterados, pois a formação inicial não passa apenas de uma fase da profissionalização docente, uma vez que os futuros professores já chegam carregados de concepções sobre o ensino, sendo que a sua formação inicial pouco pode modifica-las (GARCIA, 1999). Por exemplo, os estudos realizados por Camargo (2003) com licenciandos de Física mostram que, embora estes futuros professores tenham sido ensinados a lecionar de um modo inovador em relação ao ensino tradicional, eles voltam a ministrar suas aulas em conformidade com as milhares de horas vivenciadas a partir de experiências enquanto alunos do ensino fundamental e médio, com aulas predominantemente expositivas.

Esta trajetória formativa docente intermediária, que abrange as fases do curso de formação de professores e o período de estágio, antecede uma das mais turbulentas trajetórias da vida profissional, que chamaremos de trajetória formativa docente na carreira, passando por difíceis fases de adaptação no ofício de ensinar, enquanto um professor principiante. A duração desta turbulência varia, segundo alguns autores que veremos a seguir, de três a sete anos iniciais. Fases posteriores à adaptação podem acarretar ao professor certa estabilidade e experiência que, por sua vez, podem lhe atribuir períodos de questionamento, inovações, conformações, lamentações, ou até mesmo desistência.

Mencionando o professor iniciante, Pacheco (1995) o identifica como aquele que não completou ainda seus três anos de carreira após ter se graduado. É um período de intensa aprendizagem e assimilação, em concomitância com uma fase de adaptação profissional. Embora o ato de aprender a ensinar seja um continuum, ele é marcado por uma importante descontinuidade significativa, através da passagem da posição de aluno para professor. Este momento da “crua e dura realidade da vida cotidiana da aula” é conhecido por “choque da realidade”, termo popularizado por Simon Veenman em 1984, conforme aponta Garcia (1992), e também denominado por outros autores de “choque com a realidade”, “choque de transição”, “choque cultural”, todos significando o confronto inicial com a dura e complexa realidade do exercício da profissão, que pode gerar a desilusão e o desencanto (TARDIF, 2004). Há frustração e desconcerto dos professores principiantes que tentam enfrentar problemas usando os conhecimentos, estratégias e técnicas que lhes foram ensinadas na formação, mas que parecem inúteis nos primeiros momentos de sua atuação profissional, segundo Pérez Gómez (1997), uma vez que estes cursos apresentam um abismo entre a teoria e a prática, sendo a prática definida como a aplicação no contexto escolar das normas derivadas do conhecimento científico, e geralmente situada no final do currículo de formação inicial. De fato, Pacheco (1995) menciona pesquisas que indicam 3/4 dos professores considerando a formação inicial como não lhes servindo para nada.

Este choque, acredita-se, possui como uma de suas profundas raízes, a forma como são introduzidas as disciplinas de Prática de Ensino nos cursos de formação inicial das universidades, onde se dissocia a teoria da prática, mesmo que um estágio supervisionado seja considerado como ‘prática’ pela instituição formadora de educadores. Neste sentido, Garcia (1999) aponta que as práticas de ensino só podem contribuir para a formação quando respondem a algumas condições, tais como: os professores em formação devem melhorar sua disposição e competências para a aprendizagem, devem aprender a desenvolver um olhar crítico sobre o que vêem, pensam e fazem, e por último, encarar a prática como o princípio de sua aprendizagem contínua e não como uma aplicação da teoria ou um ponto culminante do processo de formação.

Durante esta fase de adaptação profissional no início da carreira, o professor passa por diversas sub-etapas, segundo outros autores citados por Tardif (2004). Ao vivenciar estas trajetórias formativas durante o tempo de serviço, o professor vai construindo um padrão próprio de comportamento, resultando na costumeira resolução de problemas em sala de aula. Nestas resoluções rotineiras, existem antecedentes internos, caracterizados por suas crenças, que influenciam nos seus processos cognitivos (GARCIA, 1999). De acordo com Mizukami et al (1996), a aprendizagem de como ser professor e de como ensinar, ocorre, grande parte das vezes, nas situações de sala de aula. Para responder a determinadas situações, algumas vezes o professor recorre à sua intuição, que vem permeada pelas experiências, leituras e cursos acumulados nos seus anos de carreira. Por fim, ao serem requisitados para que expliquem verbalmente suas atitudes e escolhas de ações nos momentos de seu trabalho, os professores acabam fornecendo suas próprias explicações, muitas vezes isentas de teorias pedagógicas aprendidas na formação inicial, e transformam tudo isso em teorias particulares ou pessoais, e declaram como sendo importante tanto a teoria como a prática.

A trajetória na carreira profissional do professor é marcada por situações complexas e ímpares, as quais determinam ações e decisões do professor que vão, ao longo dos anos, construindo a sua “personalidade profissional” (TARDIF, 2004), ou como denomina Marland e Osborne (1990): suas teorias implícitas, pessoais, ou ainda conforme Mizukami et al (1996): suas sínteses pessoais. Estes momentos, que na maioria das vezes se traduzem em problemas que “não encontram respostas pré-elaboradas” (PÉREZ GÓMEZ, 1992), são únicos, e vivenciados pelo professor na maioria das vezes dentro da sala de aula. Tais momentos não conseguem ser previstos e trabalhados durante a sua formação inicial, pois conforme Contreras (2002), as situações educativas são singulares, não sendo possível uniformizar ou generalizar os processos educativos. Por esta razão, afirma-se que a formação acadêmica, que procura introduzir o futuro professor à profissão de ensinar, não tem atingido os objetivos de entregar para a escola um profissional pronto e acabado a fim de cumprir o seu papel como educador. Assim, a trajetória de vida, formada pela família, escola (enquanto estudante), formação inicial e formação pós-inicial, determinam um conjunto de conhecimentos característicos da profissão docente, baseando-se em um constructo pessoal, teorias particulares e individuais que os professores adquirem ao longo de sua vida pessoal, acadêmica, e profissional. Acreditamos que todos estes momentos na vida do professor formam o que se chama de trajetória de vida do professor (NÓVOA, 2000), aludindo a muito mais do que uma simples trajetória profissional docente.

Em suma, baseando-se nos autores acima citados, podemos reconsiderar que há pelo menos três trajetórias formativas docentes importantes e principais na vida do profissional do ensino, que denominaremos de:

Trajetória formativa docente inicial: experiências de vida pessoal, familiar, social e escolar, ocorridas antes da escolha da carreira docente, e que certamente influenciarão futuramente atitudes e decisões enquanto um profissional do ensino.

Trajetória formativa docente intermediária: concepções construídas acerca do ensino através dos conteúdos e práticas que lhe são apresentados durante um curso acadêmico de formação de professores. Normalmente é chamada de formação inicial ou curso de graduação.

Trajetória formativa docente na carreira: experiências formativas profissionais e cotidianas que incrementam a sua formação como professor, as quais ocorrem após o término do curso que o habilitou. Normalmente é chamada de formação continuada.

Há uma quarta trajetória que sugerimos acrescentar, contribuindo direta ou indiretamente com a experiência de vida pessoal e profissional da parte do professor que finalizou sua carreira, mas que dá continuidade com suas atividades extracurriculares, mesmo após ter se retirado para “cultivar o seu jardim” (HUBERMAN, 2000). Este tipo de profissional não se permite uma posição estática com relação à ocupação de ensinar e aprender, e suas preocupações persistem em se voltar para prestar um trabalho à comunidade escolar e de continuar aprendendo, mesmo depois de ter encerrado oficialmente a sua carreira, e por isso, poderemos denominar este percurso de trajetória formativa docente pós-carreira.

Nota-se que o aprendizado do professor, e consequentemente sua formação, ocorre constantemente, desde a tenra idade até a sua velhice. Por este motivo, acreditamos que o termo formação continuada estaria mais bem adaptado para explicar a inteira e completa trajetória de formação, abarcando as quatro acima simultaneamente. Pensando deste modo, a formação continuada não ficaria limitada apenas a momentos que ocorrem após a formação inicial, como normalmente é encarada, mas iria além deste significado.

Como os momentos experienciados antecedentes à formação inicial contribuem para o profissionalismo, conforme atestam os autores já citados, podemos concluir que tais situações fazem parte de sua formação. Deste modo, a continuidade formativa já ocorre antes de qualquer inicialização através de um curso profissional, e é neste período que acontecem, de fato, os primeiros momentos de formação, ou seja, a sua verdadeira formação inicial ocorre em instantes localizados nesta trajetória de sua vida pessoal, familiar, escolar enquanto aluno, e que preferimos denominar de trajetória formativa docente inicial. Durante o chamado curso de formação inicial, o professor também experimenta eventos formativos, que o influenciarão em sua profissão, indicando que seu aprendizado está continuando, e não simplesmente começando ou iniciando, pois nem mesmo sua formação inicial seria de fato, um início em sua formação. Acreditamos, portanto que o termo formação intermediária se aplicaria mais adequadamente a estes momentos na trajetória formativa do professor, onde se inclui o curso que o habilita como tal.

Como esta continuidade de aprendizagem, ou formação profissional, se dá antes mesmo de uma formação dita inicial, e continua após a mesma, isso nos leva a reformular também o significado do termo formação continuada, atribuindo-lhe um significado mais amplo, pois acaba permeando todo o processo formativo, que se inicia a partir do momento em que o sujeito possui a capacidade de aprender.

Portanto, a nosso ver, a formação continuada envolve todas as trajetórias de vida pessoal e profissional acima citadas, e não como ela costuma ser normalmente apresentada, a saber, determinadas situações formativas após a formação inicial (ver a última coluna da tabela 01). De fato, a formação continuada abrange toda a continuidade da vida, incluindo todas as fases identificadas pelos autores comentados, algumas das quais podem ocorrer simultaneamente (ver a primeira coluna da tabela 01).

 

Tabela 01 – Trajetórias formativas docentes: possíveis aproximações a partir de diferentes autores.

Mediante esta breve análise, podemos notar quão rápida ocorre a chamada formação inicial (a mais curta de todas). Por isso, é preocupante imaginar que a trajetória de menor dimensão temporal possa ser concebida pelo senso comum como uma forma de entregar ao mercado de trabalho escolar professores prontos e preparados para exercer suas atividades profissionais a contento. De fato, é consenso da maioria dos pesquisadores da área de Educação a existência de falhas durante a formação inicial de professores (BRASIL, 2002a). Por exemplo, mostrando resultados de avaliações sobre a formação inicial (ou como preferimos chamar, trajetória formativa intermediária), Garcia (1999) apresenta diversos relatos negativos da parte de professores principiantes, concluindo que a formação de professores é um conjunto de experiências fracamente coordenadas, concebidas para manter os professores preparados para as escolas primárias e secundárias. Também comprovando carências na formação inicial, especialmente no caso de conteúdos, Nóvoa (1997) relata algumas “deficiências científicas” juntamente com “pobreza conceitual”, e professoras entrevistadas por Giger (2004) consideraram ter tido uma formação inicial muito limitada. Gauthier et al (1998) mostram que “uma crítica severa tem sido dirigida aos professores. [...] Também são criticados aqueles que os formam, ou seja, as faculdades de educação ou as instituições que exercem tarefa semelhante.”

Apresentando outros problemas de formação, Pimenta (2000) afirma que a formação inicial é insuficiente e falha, principalmente com relação a conteúdos, estágios, burocracia, e a disciplina de Didática. Além destes problemas, há um atual descaso com as chamadas disciplinas das ciências humanas (ou disciplinas pedagógicas) no interior dos institutos e departamentos das ciências naturais e tecnológicas (MALDANER, 2000).

Para Pimenta e Anastasiou (2005), uma das soluções contra estas falhas da formação inicial, é a formação continuada, que, segundo Pinto e Vianna (2008), atingem especificidades e assumem formatos diferenciados em relação aos seus objetivos, conteúdos, modalidades (presencial ou à distância, direta ou por meio de multiplicadores) e o tempo de duração, indo desde um curso rápido até programas que se estendem por vários anos. Ela tem se configurado em diferentes ações: cursos, oficinas, seminários e palestras que procuram atender às necessidades pedagógicas mais imediatas dos professores. Conforme os Referenciais para Formação de Professores (BRASIL, 2002a), a formação continuada refere-se à formação de professores já em exercício, em programas promovidos dentro e fora das escolas, considerando diferentes possibilidades (presenciais ou à distância). A afirmação deste documento nos leva à interpretação de que a formação continuada parece se resumir à execução de cursos para professores.

Porém, de acordo com Sampaio (1998), os cursos e orientações técnicas que vêm sendo oferecidos crescentemente no âmbito da formação continuada, representam ganhos principalmente individuais aos professores, ao passo que seus resultados efetivos são dissolvidos na prática de sala de aula, em geral, sem mudanças perceptíveis em suas práticas pedagógicas. Segundo Pietrocola (2005), cursos calcados unicamente em conteúdos não garantem mudanças significativas nas práticas docentes, enquanto que cursos centrados em questões metodológicas da sala de aula podem contribuir mais efetivamente para isso. Conforme Pimenta (2000), muitos cursos que levam o nome de formação continuada, não passam de meras atualizações de conteúdo, não alterando significativamente a prática docente. Para Mizukami et al (2002), os cursos de curta duração (de 30h a 180h) fornecem informações aos professores apenas para alterarem, às vezes, o seu discurso, de modo que contribuem muito pouco para uma mudança efetiva. Citando o exemplo de alguns cursos de curta duração, Garcia (1999) conclui que não provocaram qualquer efeito significativo nos seus participantes, sendo que “uma das críticas geralmente feita aos cursos de formação é a pouca incidência que têm na prática. Ou seja, os professores dificilmente aplicam ou incluem no seu repertório docente novas competências” (GARCIA, 1999).

Conduzindo à idéia de que a formação inicial é apenas uma breve etapa formativa, e que a formação continuada não se resume em apenas breves momentos (ou horas) de curso, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica mostram que a formação inicial deve ser complementada ao longo da vida (BRASIL, 2001), o que exige uma formação continuada em larga escala, e não em algumas dezenas de horas. De fato, os princípios norteadores de implementação de programas de formação continuada do Ministério da Educação (BRASIL, 2008) mostram que este tipo de formação ultrapassa cursos compostos por apenas algumas horas, pois: a formação continuada vai além da oferta de cursos de atualização ou treinamento; a formação, para ser continuada, deve integrar-se no dia-a-dia da escola; a formação continuada é componente essencial da profissionalização docente (BRASIL, 2008).

Assim, estamos cientes da questão levantada por Carvalho e Gil-Pérez (1998) ao mencionar que o problema não pode ser resolvido apenas através de informações mais detalhadas aos professores por meio de manuais ou cursos, pois faz-se necessária uma profunda revisão da formação inicial e continuada. Portanto, o fato de que cursos de curta duração não funcionam é um consenso que está se formando, segundo Maldaner (2000), pois não conseguem responder às exigências formativas para a mudança da prática em sala de aula (atualmente, acreditamos que este consenso esteja bem estabelecido). Além disso, há o fato de que as atividades de desenvolvimento profissional (formação continuada) são normalmente planejadas fora do contexto escolar, e tais medidas nem sempre condizem com as reais necessidades dos professores em exercício, caracterizando uma heteroformação, segundo Garcia (1999). Quando as inovações nacionais são implementadas sem consulta prévia dos professores, são rejeitadas pela sua maioria, pois pode transmitir a idéia de que os docentes são meros utentes, ou bonecos de ventríloquo, conforme Tardif (2004).

Por estes motivos, o assessor não tem sido visto pelos professores participantes como profissional que pode prestar ajuda, mas como “cúmplice” da política administrativa, não neutro, ou, quando no âmbito da pesquisa universitária, como investigador “sugador de dados” para seus trabalhos e posterior divulgação dos “defeitos” da atuação dos professores. Procurando amenizar esta situação, Pimenta (2000) afirma que as licenciaturas deveriam desenvolver, nos alunos-futuros-professores (ou professorandos) conhecimentos, habilidades, atitudes, valores, e a capacidade de investigar a própria prática, de modo contínuo e reflexivo. A mesma autora sugere que a formação inicial deveria contemplar a disponibilização dos resultados das pesquisas sobre a atividade docente para os alunos-futuros-professores, e o desenvolvimento com eles de pesquisas da realidade escolar, a fim de instrumentalizá-los para a sua própria investigação durante suas atividades docentes. Além disso, Perrenoud (2002) sugere confrontar o estudante com situações próximas daquelas que ele encontrará no trabalho e construir saberes a partir dessas situações. Isto ultrapassaria um modelo formativo baseado na primazia do conhecimento de conteúdos.

 

Vários cursos de formação inicial e continuada estão baseados mais em uma visão prescritiva da profissão do que em uma análise precisa de sua realidade (PERRENOUD, 2002). Como ele mesmo já havia citado num trabalho anterior, o sistema educacional tem sido construído sempre “a partir de cima” (PERRENOUD, 1999). Porém, deve-se rejeitar esta visão de “cima para baixo” das reformas educativas, nas quais os professores parecem aplicar passivamente planos e cursos desenvolvidos por outros atores sociais, institucionais e/ou políticos (ZEICHNER, 1993).

 

 

Este texto é parte integrante da tese de doutoramento:

LANGHI, R. Astronomia nos anos iniciais do ensino fundamental: repensando a formação de professores. 2009. 370 f. Tese (Doutorado em Educação para a Ciência). Faculdade de Ciências, UNESP, Bauru, 2009.